O cenário incerto e volátil que espera por Lula

Por Marcelo Zero (*)

Quando o presidente Lula foi eleito pela primeira vez, ao final de 2002, o cenário mundial era completamente diverso do atual.

Com efeito, naquela época, a ordem internacional reunia as seguintes características:

1. Os EUA eram a única e inconteste superpotência mundial. Sua hegemonia era praticamente absoluta e se estendia pelo campos econômico, financeiro, político, militar, tecnológico etc. O planeta vivia uma fase de grande prevalência do unilateralismo norte-americano.

2. A China, embora estivesse crescendo a taxas muito altas, ainda era basicamente uma “fábrica de baixo custo”, que montava, produzia e exportava bens para as grandes companhias norte-americanas, europeias, japonesas etc. Era, portanto, uma economia complementar à dos EUA, que não concorria em setores estratégicos e mais sofisticados.

3. A Rússia, muito fragilizada pela crise dos anos 90 e pelo desmembramento da URSS, não se constituía em desafio para a Pax Americana.

4. A política de segurança e defesa dos EUA, após os atentados de setembro de 2001, estava totalmente focada no combate ao terrorismo.

5. Se iniciava o chamado “ciclo das commodities”, impulsionado pelo grande crescimento da China, que acabaria por criar um ambiente econômico propício ao desenvolvimento dos demais países emergentes.

6. O paradigma neoliberal ainda era amplamente aceito e as políticas ortodoxas a ele vinculadas eram vistas como a única solução para promover o crescimento.

7. A integração regional soberana, corporificada no Mercosul, era muito limitada e sofria com limites político-ideológicos, associados à perspectiva de que os países da região deveriam, na realidade, integrar-se aos grandes países industrializados, ainda que de forma assimétrica.

Em contraste, a ordem mundial de hoje caracteriza-se por:

i. Redução da antiga hegemonia norte-americana. Os EUA, embora ainda sejam uma grande potência, enfrentam a concorrência de países como China e Rússia, numa ordem mundial que tende inexoravelmente à multipolaridade e à multilateralidade.

ii. A emergência da China como superpotência, com uma economia complexa e sofisticada, que concorre exitosamente com EUA, Europa e Japão em setores de alta tecnologia. Já é a primeira economia mundial medida em PPP e caminha a passos largos para substituir os EUA como primeira economia mundial medida em dólares. Faz movimentos para enfrentar a hegemonia do dólar e investe pesadamente em outros países para viabilizar a Nova Rota da Seda, projeto estratégico que a consolidará como locomotiva econômica do planeta.

iii. Fortalecimento da Rússia, que agora disputa influência na Eurásia e enfrenta a política dos EUA e da Otan de continua expansão militar em direção às suas fronteiras.

iv. Foco da política externa e da política de defesa dos EUA na disputa pelo poder mundial com páises como China, Rússia e aliados, vistos como “autocracias” que ameaçam valores da democracia e direitos humanos. Cria-se, assim, uma nova Guerra Fria, cuja face mais imediata e visível é o conflito na Ucrânia.

v. Um cenário econômico bastante difícil. A persistente crise mundial, muito agravada pela pandemia e, mais recentemente, pela guerra na Ucrânia, vem impondo gargalos à produção, provocando inflação e carestia, notadamente a de alimentos e energia, e desarranjando e fragmentando as cadeias produtivas globais, as quais tendem a se regionalizar.

vi. Esgotamento do modelo neoliberal e implantação de políticas anticíclicas em muitos países, inclusive os EUA, destinadas a reduzir os impactos da crise e promover a recuperação das economias.

vii. Necessidade premente de se investir substancialmente na integração regional, como forma de superar a crise econômica, nesse cenário mundial restritivo, e como maneira de aumentar o protagonismo internacional dos países do subcontinente.

viii. Centralidade dos temas ambientais nas relações internacionais.

Neste novo cenário, bem mais difícil, conflitivo e volátil daquele que predominava no início do século, avulta a guerra na Ucrânia.

A Rússia pretendia fazer uma intervenção rápida, de modo a assegurar alguns objetivos básicos, como a neutralidade do território ucraniano e uma solução para o sangrento conflito no Donbas, de maioria russófona, no qual já haviam morrido cerca de 14 mil russos.

No entanto, o apoio dos EUA e da Otan ao regime russofóbico e com tintes neonazistas de Zelensky vem prolongando, intensificando e alargando um conflito que poderia ter sido negociado há bastante tempo.

Após seis meses de guerra, os EUA anunciaram mais apoio militar para o regime de Zelensky. São cerca de US$ 3 bilhões adicionais para alimentar a guerra, inclusive com armas ofensivas. Esforços para a paz? Nenhum. Biden quer prolongar o conflito para enfraquecer Putin e Zelensky prefere posar para a Vogue.

Ao contrário do que vem sendo ventilado na mídia ocidental, a Rússia vai, aos poucos, conseguindo atingir seus objetivos militares, no Donbas e no sul da Ucrânia. O ritmo lento deve-se mais à preocupação russa em preservar a população civil, entre a qual há russos, do que à resistência ucraniana. Afinal, os ucranianos, como denuncia a própria Anistia Internacional, usam civis e instalações civis como “escudo” em suas operações militares.

Na realidade, se a Rússia quisesse “destruir” a Ucrânia e sua resistência, já teria feito isso há bastante tempo. Não é o caso. A Rússia não quer destruir, ocupar e se apropriar de toda a Ucrânia, como a propaganda ocidental sugere. Seus objetivos são mais módicos, defensivos, e podem ser realizados com operações de intensidade moderada, localizadas e de ritmo mais cauteloso.

Entretanto, esse avanço lento, mas constante, das tropas russas está levando o regime de Zelensky ao desespero. Os bombardeios na central nuclear de Zaporizhzhia, sob controle russo, o assassinato da filha do filósofo Alexander Dugin, em plena Moscou etc. demonstram uma escalada perigosa de irracionalidade. Escalada essa que vem se espalhando para outros países da região. Na Letônia, por exemplo, o presidente Egils Levits propôs que a população russa de seu país seja “isolada”. Só faltou sugerir campos de concentração. Os países bálticos, a Polônia, República Tcheca etc. vêm pressionando os EUA e a Otan para que se envolvam mais diretamente no conflito, o que seria um desastre mundial.

Por outro lado, as sanções draconianas contra a Rússia, além de levar fome e carestia para vastas regiões do planeta, já provocam grande insatisfação social em países da Europa, como Alemanha, Itália, Reino Unido etc., em razão do aumento dos preços de combustíveis e gás.

Infelizmente, a estratégia dos EUA e aliados é a de provocar conflitos com Rússia e China, com vistas a enfraquecê-los. O incentivo ao separatismo taiwanês faz parte dessa estratégia fútil e perigosa que visa fazer retroceder o mundo ao início deste século, quando a Pax Americana reinava soberana e inconteste.

Nesse quadro de nova Guerra Fria (não tão fria assim), o principal erro do Brasil seria subsumir sua política externa nessa lógica arcaica e aceitar “escolher um lado”, como fez o governo Bolsonaro, tanto em política externa quanto em política de defesa. Tal “escolha” limita nossa soberania, nossa projeção internacional e nosso desenvolvimento.
Por isso, a política externa de um eventual e provável próximo governo Lula deverá ativa, altiva e rigorosamente independente, centrada na integração regional, no eixo geopolítico Sul-Sul, no fortalecimento e alargamento do BRICS e na busca de uma ordem mundial multipolar, multilateralista, pacífica, simétrica e cooperativa.

E preciso que se entenda que o Brasil não tem e não quer ter “países inimigos”. Um país como o nosso não pode se dar ao luxo de ter boas relações apenas com nações que são consideradas “democráticas” pelos EUA e aliados, os quais usam, de forma hipócrita, a bandeira da “democracia e dos “direitos humanos” para perseguir regimes que não estão alinhados aos seus interesses.

Os reais “inimigos” do Brasil são a fome, a pobreza, as desigualdades, os desequilíbrios ambientais, o racismo, o autoritarismo, a guerra etc. Por conseguinte, o Brasil deveria cooperar com todos os países para derrotar esses “inimigos”. Assim, nossa nova política externa teria de visar aprofundar os laços de cooperação com todas as nações do planeta, em condições de igualdade e de respeito mútuo.

O “lado” do Brasil não é o “lado” dos EUA e aliados. O “lado” do Brasil é o Brasil, um país que tem interesses próprios e soberanos.

Um país que, em breve, deverá ter Lula, de novo, como um grande estadista de nível mundial, capaz de contribuir para a paz e o desenvolvimento.

O Brasil ganhará. O planeta também.

(*) Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.

 

 

 

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