Por Fausto Antonio (*)
Epigrafia da carne e do couro
Além do dinheiro surrupiado religiosamente da igreja, ele tinha certas e surtidas ofertas amorosas no currículo. O pastor se servia das irmãs, que queriam entregar a alma e antes, por razões de foro íntimo, a carne. Algumas entregavam a carne , a delícia, outras; o couro, o dinheiro, refletiu.
O pastor quis saber as razões da traição. No entanto, diante da igreja, no púlpito, usou uma estratégia que somente o arguido, em conformidade com o dito e não dito na salinha de confissões reservadas, saberia diretamente , é claro, sem as dúvidas da rede jogada à deriva e à sorte pelo pastor. Outros pecadores, bem provavelmente, se reconheceriam por livre associação e seriam salvos ou condenados. Era a rede que purgaria , na igreja, as intenções contidas e os erros selados pela carne. Quem estaria livre? A irmã fora fisgada antes pelo anzol da paixão; o esposo, num ato de desespero, pediu socorro ao pastor. Eis a razão do domínio dos fatos, mas não do livre arbítrio. A conversa na salinha teve começo, meio e fim. Mas no culto, como de costume, o pastor retomaria o caso e, com o auxílio da palavra, transformaria o ocorrido no objeto do sermão. A purgação individual ganharia, dessa maneira, os contornos de coletiva.
Antes da empatia coletiva, no grau pendular da aproximação da história, é útil ouvir o enredo e suas rugosidades e reentrâncias. A história é simples; o enredo tem o escorregadio intrincado do dito e do não dito em voltas e nas voltas. Pois bem, a irmã, que não cortava e alisava o cabelo desde a mais tenra idade, abaixou a cabeça. Depois, revendo intimamente o que era o domínio de Deus e do Diabo, encarou o pastor. Olho no olho, ela sabia que ele não era flor que se cheire. Além do dinheiro surrupiado religiosamente da igreja, ele tinha certas e surtidas ofertas amorosas no currículo. O pastor se servia das irmãs que queriam entregar a alma e antes, por razões de foro íntimo, a carne. Algumas entregavam a carne , a delícia; outras o couro, o dinheiro, refletiu. Desse modo, afinal, por que não encarar de frente o representante de Deus? Ele, na recepção de si, se reconhecia assim; ela o tinha na margem oposta dos desvios. Sim, Deus e o Diabo puxavam, à guisa de um imemorial equilíbrio, a corda do bem, do bom e do belo ao mesmo tempo. O segredo era atuar na intersecção dessas duas forças, que eram internas. Ela confirmara depois de deslizar, ao sabor e amargor do livre arbítrio, para a direita e para a esquerda.
Deixou, então, olhando fixamente o pastor, a conversa fluir. Ela contou a sua versão do amor e do amor intruso sobreposto. Para falar do íntimo, ela usou uma máscara, que lhe caiu muito bem. A rigor, ela e a igreja tinham muitas máscaras. Quem ela era? Certamente ninguém diria que ela, variando e a base de calmantes, era a protagonista da história. Ela também não se reconhecia no que era e no que fizera, desde sempre, pelo bem ou pelo mal. Ela era agora uma ficção. Ela, o pastor e o marido, espécie de “Bentinho do Jardim Leonor”, saberiam, em profundidade, do narrado. A narradora, insubmissa personagem, ganhou posição de destaque; a história, no entanto, foi em parte ficcionalizada. As pessoas, o espaço e o tempo foram cobertos pela roupagem de sucessivas e encadeadas nuvens de mistérios. Na senda de um conto contido, ela iniciou a narrativa; a igreja em silêncio tinha, na unidade, um único ouvido. No inesperado, ela tomou , roubou mesmo, a fala tradicional do pastor.
O que segue é realidade e é também ficção. Palavras parabólicas da irmã: O casal, com dois filhos pequenos, na década de 1960, mudara da área central de Campinas para o Bairro Jardim Leonor , rua Antoniel Mota. O número, quer saber a recepção, vou ocultá-lo para preservar o mistério, a dúvida e não os moradores, que já morreram e estão bem ou mal noutros planos da existência. Sei e posso revelar para as coautorias, sempre abertas às recriações, as razões de ordem material. Aliás, a base material é o liame também de criação e igualmente de destruição. A traição se alimenta da traição;os amantes são secundários. A traição tem como alvo punir o traído. Por conseguinte, havia um duplo prazer na traição; o da carne que sugava o fruto proibido e o da punição ao marido imperfeito. A igreja estava atenta e em silêncio. Ela seguiu, então, sinuosamente. A vida é espírito e carne, mas a matéria, que encapsula a chama eterna, precisa do alimento. Sem um mote moral, a vida, é o livre arbítrio, muitas vezes come a carne alheia.
A matéria é o fogo da traição e dos arrependimentos. Aprendemos com a matéria que é, como veículo, transitada pelo fogo eterno. O fogo no corpo;paixão, pode queimar tudo. Os deslocamentos internos e externos são movidos por outro fogo. São as recorrentes necessidades se impondo. Ajustes financeiros, pontuou a santinha, mandam nos deslocamentos; por vezes nas separações. Não obstante, muitos encontros são selados pela mesma relação, que ora se inverte. Flutuando além das razões digressivas das mudanças, pelo menos inicialmente, o casal se encontrava no universo da contenção dos gastos . Era necessário, de modo objetivo, sair do aluguel e começar a vida, agora, na casa própria. Bairro novo, com roupas no varal, sempre tem olhos e ouvidos atentos aos ilustres acontecimentos.
Além de contar o dinheiro e acertar as dívidas, falar da vida alheia é algo muito apreciado, principalmente quando há casais e intimidades envolvidos. Instalados numa parte da casa, seguiu a irmã, o casal fazia a luta possível. No bairro, certos olhares reparavam que o casal andava de mãos dadas. Havia, de certo, relativa admiração e uma pontinha de inveja. Com olhos atentos e palavras de aprovação externa, assim foram ou se passaram exatos seis meses do casamento perfeito. Seis meses no Jardim Leonor, pois o casal fizera o casamento há precisamente treze anos. No entanto, casa nova, vida nova; novos tempos chegaram. Os olhares não mudaram; as aprovações eram bem-vindas e contínuas. O marido, entretanto, percebendo as mudanças de humor e calor da esposa, chegou a pensar baixinho: melhor me fora não haver sido reconhecido como parte do casal perfeito. A corda, esticada por Deus e pelo Diabo, motor íntimo, deslocara a recepção afetiva. A propósito, então, da recepção que captara o amor do casal; ele devia se referir ao casal quase perfeito.
O casal perfeito era obra de Deus e do Diabo? Assim, Deus e o Diabo se fazem e se refazem em nós: mas não por nós. Pois bem, as imperfeições, como constelação em desalinho, sepultaram os afetos. O amor interno, de casal, secou; a folha seca virou. Na outra face estava espelhado o intruso. Depois,isto bem mais tarde, ele descobriu que o amor do casal foi secado por uma paixão externa. A igreja, ainda em comunhão com a santinha que pregava, foi calmamente recolhendo, sem a distinção exata do bem e do mal, o que era de Deus e do Diabo. Ora, sem a devida distinção, a irmã, santinha para muitos, se deu por satisfeita. Para encerrar a pregação, ela convidou a igreja para os cumprimentos finais. O pastor e o marido, meio paralisados, talvez procurando uma terceira explicação para a parábola, permaneceram sentados. No conjunto, a igreja estava dividida. Os que consideraram a parábola diabólica ficaram numa fila à direita e respeitosamente cumprimentaram a irmã.
Os que consideraram a parábola divina, de modo entusiasmado, ficaram à esquerda. O marido traído e o pastor saíram bem mais tarde. Em silêncio, fecharam a igreja e quando atravessavam a ponte que liga o Bairro Jardim Leonor ao Bairro São Bernardo, o pastor jogou as chaves da igreja no rio. A lição do domínio dos fatos, por conseguinte, se fez e se refez em encruzilhadas. A chave alojada no fundo do rio deve ser, com efeito, paradigmática relativamente à forma de evocar e de cultuar Deus e o Diabo. Enquanto a igreja reluzia no evocar e no cultuar, ficou a certeza de que a delícia e o fruto proibido não eram nem de Deus e nem do Diabo.
(*) Fausto Antonio é escritor, poeta, dramaturgo e professor da Unilab- Bahia
Respostas de 2
Adorei o conto, ou quem sabe a parábola do triângulo do amor, a paixão e o pecado. A difícil existência humana qd fica presa dos ditames da religião. Jogar a chave da igreja ou a toalha dos milagres? Para seguir em direção ao desconhecido dos paradigmas ideológicos da fé cega e da faca amoloda
Perfeito Irmão.
Mais uma obra sua que aprecio e me deleito.
Parabéns!!!