O futuro do Planeta é ancestral

Por Guta Assirati (*)

Texto publicado na edição 14 da revista Esquerda Petista

Somente em 1988, com a promulgação da Constituição Federal, foram devidamente reconhecidos aos povos indígenas no Brasil “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. O Estado, a partir de então, passa a reconhecer o caráter pluriétnico e pluricultural do Brasil, a diversidade de identidades e a multiplicidade de modos de vida, tão históricas quanto contemporâneas. Como consequência, os povos indígenas conquistaram o direito a políticas específicas e diferenciadas. Os direitos originários dos povos indígenas aos seus territórios implicam no reconhecimento de que esses direitos precedem a quaisquer outros, sendo anteriores ao projeto colonial e à constituição do próprio Estado Nacional. E, ao reconhecer a organização social própria dos povos indígenas e afirmar que “suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses”, a Constituição consagra também o direito dos povos à autodeterminação, contrapondo a política indigenista integracionista, paternalista, autoritária e tutelar que marcou, ao longo de séculos, a relação do Estado brasileiro com os povos indígenas.

Esse reconhecimento chegou quase cinco séculos após o início do confronto colonial que reduziria drasticamente a presença das sociedades originárias da América. Esse reconhecimento foi, além de tudo, insuficiente para promover mudanças positivas concretas na forma como o próprio Estado e a sociedade, de modo geral, se relacionam com os povos indígenas.

O Brasil é um dos países com a maior diversidade sociocultural do mundo. Segundo o Censo do IBGE de 2010, vivem hoje no país mais de 305 povos, falantes de 274 línguas, conformando uma população de 896,9 mil indígenas. O novo Censo indica que, em 2022, a população indígena chega a quase um milhão e meio indivíduos. Esses indígenas estão presentes em todas as regiões e biomas do país, em cerca de 700 terras indígenas já demarcadas ou em processo de demarcação, territórios não demarcados, áreas de retomadas, assentamentos, ou em contexto urbano. Além disso, o Estado brasileiro reconhece, oficialmente, 114 registros de presença de povos indígenas isolados. Com registros confirmados pelo órgão indigenista, há 28 povos isolados vivendo em 20 terras indígenas na região da Amazônia Legal.

A sociedade brasileira, ainda hoje, conhece muito pouco sobre essa diversidade e sobre esses povos e culturas. Mas desde o início do século XXI, as lutas indígenas vêm ganhando maior visibilidade no Brasil e no mundo. A difusão das narrativas desses grupos está em ascensão, seja em razão do fortalecimento do movimento indígena, da amplificação de suas mobilizações, das catástrofes climáticas, ou da precariedade das condições de vida como consequência das formas degradantes de exploração da terra e dos recursos naturais. As redes sociais, o engajamento da classe artística na defesa dos direitos e a repercussão internacional do agravamento do contexto de violações socioambientais no Brasil durante o período do governo anterior também têm contribuído para difundir as presenças, os saberes e fazeres indígenas.

No 18º Acampamento Terra Livre (ATL), realizado em abril do último ano em Brasília, com o tema: “Retomando o Brasil – Demarcar Territórios e Aldear a Política”, o movimento indígena debateu sua participação na política institucional, reconhecendo e afirmando a importância da ocupação de espaços nesse campo, como estratégia de luta por direitos indígenas. Naquele momento, o presidente Lula, então candidato, em visita ao Acampamento, lançou publicamente sua proposta de criação de um ministério dos povos originários.

O balanço desse processo registra a conquista, em 2022, de nove mandatos parlamentares por pessoas autodeclaradas indígenas junto ao TSE: cinco deputados federais (dois por SP, dois por MG e um pelo AP), dois deputados estaduais (ES e RJ) e dois senadores (PI e RS); a eleição do primeiro governador autodeclarado indígena junto ao TSE, Jerônimo Rodrigues Souza (PT/BA); e, mais tarde, a efetiva criação do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) pelo recém-eleito governo Lula.

Nomeadas pelo Presidente Lula, Sônia Guajajara e Joênia Wapichana são as primeiras indígenas a assumir a chefia dos dois órgãos mais importantes da política indigenista do Estado: o recém-criado ministério, e a Funai, que, acertadamente, passou a chamar-se Fundação Nacional dos Povos Indígenas.

O MPI nasce justamente com a missão de contribuir com a reconstrução da política indigenista, total e intencionalmente desmantelada pelo derrotado projeto antecessor. Vem para fortalecer a Funai, que é a autarquia responsável por sua execução. Suas competências foram pensadas de forma a preencher lacunas institucionais, de modo a ampliar a garantia dos direitos indígenas e potencializar a transversalidade da política indigenista.

Caminhando no sentido da reparação histórica aos povos originários, a criação do ministério assegura a expressão da perspectiva indígena no atual governo Lula. Permite aumentar a visibilidade da pauta indígena em espaços privilegiados de debate e tomada de decisão, e possibilita a influência dessa agenda na construção e implementação de políticas públicas.

Como novo coordenador da política indigenista do Estado, o MPI terá como funções precípuas, a formulação, coordenação e articulação, o monitoramento e a implementação de parte dessa política, que se pretende construir a partir do diálogo e da ampla participação, e com respeito às diversidades culturais, aos distintos modos de organização e especificidades dos mais de 305 povos que vivem no país. A retomada do funcionamento do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), inclusive, é fundamental nesse sentido.

A Funai agora deixa de vincular-se ao Ministério da Justiça e passa a estar vinculada ao novo Ministério dos Povos Indígenas. Na esteira dessa mudança, vem uma importante inovação. O ato declaratório das terras indígenas passa a ser de competência do novo órgão, que reunirá as competências relativas a esse processo, liberando a Justiça de ter que adotar medidas nesse sentido, tarefa tida por boa parte dos antigos dirigentes da pasta, como um problema exótico aos assuntos que lhes cumpre tratar.

A estrutura do ministério conta com a Secretaria de Direitos Ambientais e Territoriais Indígenas, responsável por formular políticas e coordenar os processos ligados à demarcação de terras e à proteção de povos isolados e de recente contato; a Secretaria de Gestão Ambiental e Territorial Indígena, para formular e coordenar políticas de gestão e proteção dos territórios, de fomento ao bem viver dos povos e de promoção à justiça climática; e a Secretaria de Articulação e Promoção de Direitos Indígenas, coordenando e promovendo a política indigenista em articulação com outros órgãos e instituições e atuando com vistas à salvaguarda da memória dos povos, culturas, línguas e saberes indígenas.

Não há dúvida em relação à grandeza do simbolismo que essa importante inovação do governo Lula tem para os povos originários. Atos como a criação do MPI, a valorização da Funai, e a colocação de duas grandes lideranças indígenas à frente desses espaços são inéditos e figuram como um posicionamento contra-colonial do governo. A questão é que, para termos, de fato, uma nova política indigenista, precisamos ultrapassar os limites do simbólico.

A nova política indigenista precisa ter garantias orçamentárias para atuar durante esses quatro anos, e para seguir em bom funcionamento após o atual governo. Precisa de estrutura. Precisa se firmar e se afirmar como uma política de Estado. A nova política indigenista precisa que haja disposição política efetiva deste governo para os tantos enfrentamentos que sempre foram, e que seguirão sendo, necessários para consolidar uma agenda indígena positiva. Para que o Estado possa cumprir sua obrigação de demarcar os territórios, e também a de proteger esses territórios, que pertencem ao patrimônio da União, mas que devem ser de usufruto exclusivo indígena. A nova política indigenista exige proteção aos povos isolados e de recente contato, e valorização de sua importância na diversidade sociocultural do país. Precisa cooperar efetivamente na promoção da justiça climática, por meio da gestão dos territórios indígenas.

A luta do Povo Yanomami no Brasil por sobrevivência e contra sucessivas invasões garimpeiras a seu território, enorme e deliberadamente agudizada por ações e omissões criminosas do Governo Bolsonaro, que conduziu o caso a uma flagrante crise humanitária, evidencia o tamanho dos desafios do indigenismo em nosso país. O Estado tem por atribuição realizar a proteção e o monitoramento dos territórios, fiscalizando todas as terras indígenas, impedindo e/ou revertendo quadros de invasões criminosas. Apenas para abordar o tema a partir do aspecto territorial, é bom lembrar que estamos falando de, pelo menos, 13% do território nacional, estamos falando de regiões de fronteira, totalmente desassistidas pelo próprio Estado, estamos falando de áreas disputadas pelo latifúndio, pelo agronegócio, por agentes de crimes ambientais, mas também hoje, e cada vez mais, pelo narcotráfico. É evidente que esses desafios não serão superados por um órgão apenas. Nenhum ministério, por mais poderoso que fosse, daria conta sozinho de superar esses desafios. O que se espera, no entanto, é que o Ministério dos Povos Indígenas seja dotado de todos os recursos e ferramentas de que irá precisar para não entrar desarmado nessas batalhas.

No que tange à política indigenista, o cenário atual é caótico. Há quatro anos, o país vivencia uma atuação governamental deliberadamente anti-indígena, que destruiu a já deficitária estrutura institucional até então existente para atuar no campo dessa política. Mas, mesmo antes disso, já tínhamos muitos problemas. E o fato é que, até esse momento que estamos vivendo hoje, nunca antes na história desse país, os povos indígenas haviam sido tratados como um segmento social relevante para um projeto de país. O que configurava um erro grave, porque conhecer os povos indígenas é fundamental à compreensão de nossa sociedade e ao governo do país. A questão indígena é central para se pensar a gestão territorial e o ordenamento fundiário no Brasil, para se implementar um projeto de desconcentração de terras. É central no debate sobre meio ambiente, sustentabilidade e clima, e central às estratégias a serem implementadas nesse sentido. É central no debate sobre fronteiras e o sobre papel do Exército. No debate sobre direitos humanos. A questão indígena é central no debate sobre cultura, economia, relações exteriores e soberania alimentar. Porque a questão indígena está na origem da fundação de nossa sociedade. As relações violentas e nocivas desenvolvidas com os povos nativos está na base e no centro de uma série de problemas que enfrentamos hoje e que nos acompanham desde o início colonial do processo de conformação desta sociedade. Quem não percebe isso, perde o bonde da história. Afinal, como reafirmou a ministra Sônia Guajajara em seu discurso de posse, “O futuro do planeta é ancestral”. O Ministério dos Povos Indígenas está aí para mostrar que o governo Lula começou muito bem embarcado na história. E o que esperamos é que esse bonde nos leve a um lugar onde sejamos mais capazes de aprender com os povos indígenas, e menos confiantes de que tudo lhes devemos ensinar.

(*) Guta Assirati é indigenista, advogada, mestre em Desenvolvimento e Políticas Públicas. Foi Diretora de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável na Fundação Nacional do Índio (Funai). Presidiu a Funai entre 2013 e 2014. Integrou o Grupo Técnico Povos Indígenas da Comissão de Transição Governamental 2022. 

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