O lado B de um manifesto

Por Marcos Jakoby  (*)

Nessa sexta-feira, dia 26 junho, aconteceu o III Ato dos Direitos Já, intitulado “Em Defesa da democracia, da vida e proteção social”. O evento foi promovido pelo grupo “Direitos Já – fórum pela democracia“. Para muitos, foi uma demonstração prática de uma frente ampla em defesa da democracia, reunindo um grande arco de forças políticas. Para se ter uma ideia, entre os participantes previstos, e que depois desistiram em razão de possíveis críticas ao governo Bolsonaro, estavam José Sarney e Michel Temer.

Mas se alguns desistiram,  outras figuras bem conhecidas da direita não deixaram de estar presentes, como são os casos de Luciano Huck, FHC, Artur Virgílio, Geraldo Alkmin, Eduardo Leite, entre outros. De outro lado, participaram também lideranças ligadas à esquerda, mais especificamente ao PC do B, PT e PSOL, embora não necessariamente representando oficialmente esses partidos. Contudo, nossa intenção aqui não é analisar as diversas falas, mas nos determos ao manifesto que foi lido no início do evento, o qual representa o que seria o denominador comum entre as tão distintas forças e lideranças presentes ao ato.

O documento leva o mesmo nome do ato: “Manifesto em Defesa da Democracia, da Vida e da Proteção Social” (segue ao final). Como percebe-se, os autores buscam, aparentemente, abranger questões para além da esfera estritamente política e institucional, quando falam em “proteção social”. Compreensível, pois muitas críticas têm sido feitas a manifestos que tem falado em democracia de um modo genérico e tem negligenciado totalmente a questão dos direitos sociais.

A única vez que se fala em governo Bolsonaro no manifesto é no parágrafo de abertura: “A democracia brasileira está em risco. Grupos políticos, dentro e fora do governo Bolsonaro, têm atuado com vistas a desconstruir os fundamentos do pacto político e social consolidados na Constituição de 1988.  Lendo esse parágrafo e os demais, parece que as ameaças começaram recentemente, a partir de 2019. Por óbvio, nenhuma palavra sobre o golpe de 2016 ou a condenação e prisão sem provas e sem crime da maior liderança popular do país.

Outro detalhe, mais sutil, refere-se ao trecho “grupos políticos, dentro e fora do governo Bolsonaro”. Isto é, são grupos DENTRO do governo, e não O GOVERNO, que ameaçam a democracia. Caberia perguntar quais são os grupos que dentro do governo não colocam em risco a democracia? Seria a turma de Paulo Guedes? Do Mourão e parte dos militares? Para aqueles que defendem realmente a democracia, não há dúvidas: o governo de conjunto é uma ameaça e precisa ser derrotado, e não apenas parte dele.

O parágrafo seguinte é esclarecedor da natureza política da direita que impulsiona o manifesto: “Defender a democracia é defender as instituições e as regras básicas de convívio civilizado e pacífico entre os distintos grupos políticos presentes no país. O Brasil optou em 1988 – e reafirmou essa opção ao longo dos anos – de maneira clara e contundente pela democracia liberal, representativa e federativa, fundada nos direitos humanos em todas as suas dimensões, na solidariedade, na tolerância e no respeito às minorias e na defesa do meio ambiente.”

A Constituição de 1988, em linhas gerais, é realmente liberal e conservadora, mas também, em razão das fortes lutas sociais travadas ao longo da década de 1980, também abarca conquistas sociais e políticas progressistas e que estão agora sob fogo cerrado, e que deliberadamente o manifesto não cita. Especialmente os direitos sociais, trabalhistas e previdenciários. A razão é evidente, parte das forças representadas no manifesto atacaram e atacam cotidianamente essa mesma Constituição que dizem defender. Curioso que o Manifesto também diga que o “Brasil” optou pela “democracia liberal, representativa e federativa”, mas essa mesma Constituição prevê também mecanismos de participação direta da sociedade, porém esses setores sempre atacam qualquer um que se põe a defender essa participação como um “populista” ou “bolivariano”.

Seguimos adiante. O Manifesto sustenta que o “Estado democrático e de direito pressupõe […] eleições livres, limpas e periódicas”. Aqui se imagina que, inevitavelmente, se abordará os crimes vinculados à enxurrada de fake news e seu financiamento empresarial ilegal na campanha de 2018 pela chapa Bolsonaro/Mourão, exigindo-se a celeridade e a condenação da mesma chapa nos julgamentos do TSE. Contudo, NENHUMA palavra sobre o assunto. De que mesmo adianta defender tais princípios em tese, se na prática compactua-se com a sua violação? Acontece que o respeito, nesse caso, do princípio de “eleições livres e limpas” não interessa aos autores conservadores desse manifesto, pois desembocaria no afastamento de Bolsonaro/Mourão e, por ironia, a possibilidade de acontecerem efetivamente eleições “livres e limpas”.

Mais à frente o documento discorre: “O DIREITOS JÁ! acredita que as forças armadas e as polícias são instituições essenciais para a vida democrática. Porém, devem ser integralmente submetidas às autoridades civis democraticamente constituídas. Entendemos ser extemporânea e inaceitável qualquer interpretação que distorça, flexibilize ou altere esse princípio constitucional. O manifesto não explica como as forças armadas e as polícias são essenciais para a vida democrática.  Na verdade, essas instituições não deveriam participar da vida política, restringindo-se à defesa da integralidade do território e da segurança pública. Por outro lado, curioso os autores usarem o temo “extemporâneo” para referirem a qualquer interpretação que possa distorcer o princípio constitucional das forças armadas. Mas quando NÃO seria além ou fora do tempo? Talvez quando uma liderança da esquerda esteja com seu habeas corpus sendo julgado pelo STF.

O parágrafo que trata da dimensão social menciona que “todos os cidadãos têm direito a uma vida digna, liberdade e segurança. Embora tenha havido avanços nas últimas décadas, segue sendo prioritário o combate à pobreza, à desigualdade, ao racismo, à violência e à discriminação contra mulheres, negros, índios e população LGBT. No Brasil, a desigualdade tem gênero, cor e classe. A violência policial e as restrições do mercado de trabalho seguem sendo as principais manifestações da discriminação aos segmentos acima demarcados.”

Estamos de acordo com muitas das premissas que aqui se encontram. Acontece que para setores da direita signatários desse manifesto e representados no ato, a começar pelo PSDB, isso não passa do mais puro cinismo. Por isso, NENHUMA palavra no manifesto condenando a reforma trabalhista e a reforma da previdência, que atacam justamente as possibilidades de todos os cidadãos terem uma vida digna, e que, ao contrário de reduzir, aumentam a desigualdade social.  Todos esses setores da direita também aprovaram nessa semana, quarta-feira, dia 24, o projeto de lei que pavimenta o caminho para a privatização do saneamento público em nosso país, em especial do fornecimento de água tratada. E dois dias depois, posam de defensores da “proteção social”?

Mas nada é mais contraditório, para usar um termo suave, do que falar (em outro parágrafo) em SUS subfinanciado e não sequer mencionar a Emenda Constitucional 95/2016 que congela o gasto público por 20 anos e que atinge de modo grave o financiamento da saúde pública. O documento ainda faz referência ao “caráter gritantemente regressivo do sistema tributário”, mas é incapaz de defender a medida mais básica a respeito que é a taxação de grandes fortunas (talvez porque muitos dos presentes ao ato as tenham). Como se percebe, o manifesto faz um discurso genérico de “proteção social” de modo a não entrar em choque com o programa neoliberal, não toca realmente em nenhum dos problemas que geram a crise social e política em que vivemos.

Por isso  mesmo, quando o manifesto diz que é necessário “uma agenda política comum, de caráter não eleitoral, em defesa da democracia, da vida e da proteção social”, na verdade o que está se objetivando é esvaziar e diluir a agenda da classe trabalhadora e dos setores populares, como fica evidente nesse manifesto. Alguns setores na esquerda respondem que a fase atual da luta em nosso país é pelo afastamento de Bolsonaro e depois, em outra etapa, lutaremos pela agenda social e econômica que interessa à classe trabalhadora.

Diante disso, imagina-se então que o manifesto defenda o impeachment de Bolsonaro? NÃO! O manifesto em nenhum momento trata da luta por afastar Bolsonaro, seja pela via que for. Então para que serve esse manifesto e esse ato? Presta-se, a meu ver, para direita fazer uma oposição de desgaste a Bolsonaro, visando as eleições de 2022, preparar as condições para o seu programa e assegurar a defesa das instituições sobre as quais ela tem controle, sobretudo, parte do oligopólio da mídia, o STF e o Congresso. E com um discurso “social” vago ela pretende se reabilitar e conquistar legitimidade popular, mas o suposto compromisso democrático e social não sobrevive a uma manifestação popular de rua ou a qualquer pequeno tremor na política neoliberal.

Por fim, com uma tática de simples desgaste eleitoral de Bolsonaro, mantendo-o até 2022, esse projeto de frente ampla não tem como assumir qualquer luta consequente contra o governo Bolsonaro e em defesa dos interesses da classe trabalhadora. Porém, há entre a esquerda aqueles que não desistem dessa fantasia e isso não ajuda a construirmos realmente uma frente capaz de derrotar Bolsonaro e apontar para uma saída popular da crise.

(*) Marcos Jakoby é professor e militante do PT

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MANIFESTO EM DEFESA DA DEMOCRACIA, DA VIDA E DA PROTEÇÃO SOCIAL

A democracia brasileira está em risco. Grupos políticos, dentro e fora do governo Bolsonaro, têm atuado com vistas a desconstruir os fundamentos do pacto político e social consolidados na Constituição de 1988.

O DIREITOS JÁ! FÓRUM PELA DEMOCRACIA repudia veementemente qualquer tentativa de subverter a ordem democrática conquistada a duras penas pela sociedade brasileira.

Defender a democracia é defender as instituições e as regras básicas de convívio civilizado e pacífico entre os distintos grupos políticos presentes no país. O Brasil optou em 1988 – e reafirmou essa opção ao longo dos anos – de maneira clara e contundente pela democracia liberal, representativa e federativa, fundada nos direitos humanos em todas as suas dimensões, na solidariedade, na tolerância e no respeito às minorias e na defesa do meio ambiente.

Na sua dimensão institucional, o Estado democrático e de direito pressupõe a divisão e a mútua limitação dos poderes, a alternância dos governantes e eleições livres, limpas e periódicas. São condições para seu integral funcionamento a ampla liberdade de imprensa, de opinião e de associação, o combate à desinformação, assim como a transparência de atos e políticas públicas e o respeito à Constituição e à ordem jurídica. Restringir ou condicionar qualquer um desses princípios coloca em risco a construção democrática como um todo.

O DIREITOS JÁ! acredita que as forças armadas e as polícias são instituições essenciais para a vida democrática. Porém, devem ser integralmente submetidas às autoridades civis democraticamente constituídas. Entendemos ser extemporânea e inaceitável qualquer interpretação que distorça, flexibilize ou altere esse princípio constitucional.

Na sua dimensão social, o Estado democrático brasileiro reconhece que todos os cidadãos têm direito a uma vida digna, liberdade e segurança. Embora tenha havido avanços nas últimas décadas, segue sendo prioritário o combate à pobreza, à desigualdade, ao racismo, à violência e à discriminação contra mulheres, negros, índios e população LGBT. No Brasil, a desigualdade tem gênero, cor e classe. A violência policial e as restrições do mercado de trabalho seguem sendo as principais manifestações da discriminação aos segmentos acima demarcados.

A democracia falha quando não consegue garantir de maneira igualitária a todos cidadãos os mesmos direitos básicos, com destaque para a proteção à vida e à dignidade humana. É falso o dilema entre proteger a vida e garantir o desenvolvimento econômico. É possível crescer respeitando direitos civis, políticos e sociais e ambientais.

A pandemia da COVID 19 acentuou, e tornou ainda mais evidente, as mazelas sociais do país e a precariedade das políticas públicas voltadas às populações mais vulneráveis. As mortes se concentram nas camadas mais pobres e periféricas. A COVID-19 atinge desproporcionalmente a população negra, e pode ser devastadora para os indígenas.

O papel crucial do SUS na pandemia ficou evidente. Embora ainda claramente subfinanciado, o SUS é modelo de integração de políticas e protocolos, assim como de coordenação federativa. Seus princípios de universalização, integralidade e equidade permitem ao sistema ser instrumento fundamental de redução das desigualdades no país. Acreditamos também que o sistema tem potencial para se tornar um dos eixos de retomada econômica do Brasil, fomentando investimento e inovação.

Esta é uma crise que só termina com a redução progressiva das desigualdades. Nesse momento será fundamental assegurar renda mínima digna para os que dela careçam.

Hoje é também notória a contradição entre um sistema amplo de proteção social – ainda que com várias distorções -, e o caráter gritantemente regressivo do sistema tributário. Entendemos que a crise atual abre uma oportunidade para adotarmos medidas que revertam esse quadro.

Diante desses gigantescos desafios são necessárias decisões estratégicas de mesma proporção. É necessário afastar qualquer ameaça de ruptura democrática. Hoje mais do que nunca, é necessário mais democracia, não menos. As decisões tomadas pela sociedade brasileira hoje definirão os rumos do país e a vida das gerações futuras.

Nesse quadro de emergência nacional é necessário atuarmos articulados, mobilizando as mais diversas e representativas forças da sociedade em torno de uma agenda política comum, de caráter não eleitoral, em defesa da democracia, da vida e da proteção social.

O DIREITOS JÁ! FÓRUM PELA DEMOCRACIA acredita que a sociedade brasileira é democrática, fraternal e humanista e que o Brasil é muito maior do que as crises que enfrenta no momento. É preciso ouvir as vozes cada vez mais potentes de uma população que clama por esta unidade.

A DEMOCRACIA ESTÁ EM RISCO! O DIREITOS JÁ! faz esse alerta à nação e convoca todas as forças democráticas a se somarem conosco nesta tão necessária frente ampla.

26 de junho de 2020.

 

 

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