Por Ivonete Cruz e Guilherme Bourscheid (*)
O direito à educação pública, gratuita e de qualidade não faz parte da realidade de milhões de crianças, adolescentes e jovens que frequentam as escolas públicas do Brasil. O acesso à educação não é, ainda, uma realidade de todas as crianças. Pesquisa realizada pela Unicef e publicada no dia 15 de setembro de 2022 aponta que 11% das crianças e adolescentes de 11 a 19 anos estavam fora da escola. Isso representa cerca de 2 milhões de pessoas. Se incluíssemos as crianças de quatro a dez anos, esse número, com certeza, aumentaria.
Mesmo quando se tem acesso à escola, as condições são muito precárias em todas as regiões do país. O censo escolar de 2017 aponta profundos problemas de infraestrutura. Apenas 41,6% das escolas que ofertam o Ensino Fundamental, ou seja, menos da metade, possuem redes de esgoto. A grande maioria funciona sem esgotamento sanitário. A garantia de água potável também não é uma realidade para a totalidade das escolas públicas. Apesar de a maioria das unidades contar com abastecimento por meio da rede pública, muitas escolas ainda são abastecidas por meio de poços artesianos, cisternas ou diretamente de rios e córregos. Isso ocorre principalmente nos estados do Norte, como Acre, Amazonas Pará e Roraima. Os mesmos problemas são apresentados no censo escolar de 2020. A ausência de bibliotecas ou salas de leitura é outra deficiência. De acordo com o censo de 2017, o equipamento está presente em apenas em 54,3% das escolas.
Num país de profundas desigualdades sociais, a escola pública é o lugar das crianças e adolescentes em condições socioeconômicas mais desfavoráveis. Esse aspecto, somado à infraestrutura deficiente das escolas e às péssimas condições de atendimento do transporte e da alimentação escolares, provoca um alto índice de abandono e reprovação. Por isso, são fatores que merecem ser analisados no processo da garantia do acesso, da permanência e do avanço das crianças e adolescentes na escola.
As escolas públicas brasileiras também apresentam problemas relacionados à baixa remuneração aos profissionais de educação. Em sua grande maioria, as professoras e professores são mal remunerados, o que faz da profissão do professor uma profissão de passagem.
Citamos, aqui, alguns dos grandes desafios enfrentados pela escola pública brasileira para garantir o direito à educação. E, diante desse cenário, nos chama a atenção que o grande projeto divulgado pelo MEC no governo de Luiz Inácio Lula do Silva, até o momento, seja de fomento a escolas de Tempo Integral, modelo que atende a uma pequena parcela dos estudantes. O MEC também instituiu a Estratégia Nacional de Escolas Conectadas (ENEC), cujo decreto (nº 11.713, de 26 de setembro de 2023) foi publicado no Diário Oficial da União em 27 de setembro de 2023.
Importante ressaltar que o Brasil lança esse projeto no momento em que a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Cultura e Ciência) divulga relatório preocupada com o uso excessivo de telefones celulares nas escolas e aponta cuidados que devem ser tomados com o uso da tecnologia nesses espaços. No Relatório de monitoramento global da educação, resumo, 2023: a tecnologia na educação: uma ferramenta a serviço de quem?, a Unesco enfatiza a necessidade de uma visão centrada no ser humano.
Diante desse cenário, questionamos: a serviço de quem e de qual projeto de educação está o ENEC? A nosso ver, é evidente a profunda interferência das empresas privadas no projeto. Chamamos a atenção para o fato de que o Inciso Primeiro do artigo 13 define que os estados e municípios que aderirem ao ENEC deverão fazer a instalação e promover o funcionamento por meio do sistema Medidor Escola Conectada. Esse programa, instituído por meio do decreto 9.204, de 23 de novembro de 2017, é integrado pela Fundação Leman e outras parceiras. Portanto, não há como colocar em dúvida a influência do modelo privatista e empresarial na política do MEC.
Esse processo ocorre através da disputa do financiamento da educação, que passa a atender aos interesses das empresas privadas mediante a venda de seus produtos, como as plataformas, bem como pela disputa da concepção do projeto de educação. Na visão imperialista, a educação deve estar a serviço de formar trabalhadores resilientes, uma mão de obra preparada para atender aos interesses do capital. Daí a insistência dos grupos empresariais defenderem as avaliações externas pautadas apenas nos resultados do desempenho nas disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática, já que, para eles, a classe trabalhadora não precisa de conhecimento crítico do mundo. São defensores da Contrarreforma do Ensino Médio, que tem como foco formar empreendedores e bons colaboradores, e da Base Nacional Comum Curricular, que ignora as diferenças regionais e as diversidades de um país continental como o Brasil, sob o falso discurso de que todos e todas têm acesso aos mesmos conhecimentos.
Diante desse grave cenário da garantia do direito à educação a todas as pessoas e diante da forte influência do modelo privatista e empresarial no MEC, que se contrapõe à concepção de educação pautada na formação integral dos estudantes na perspectiva da emancipação política que defendemos, avaliamos que é desafio para o movimento sindical, através da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação – CNTE – e dos Sindicatos dos Trabalhadores da Educação, construir a mobilização nacional das trabalhadoras e dos trabalhadores da educação para ocupar as ruas e disputar a concepção de educação que defendemos. Compreendemos que o 9 de agosto, dia de atos em Brasília, foi muito importante na luta pela revogação da Reforma do Novo Ensino Médio e pela retirada do FUNDEB do Arcabouço Fiscal. No entanto, não foram suficientes para disputar o projeto de educação que está em curso no Ministério da Educação. Para isso, faz-se necessário construir ampla mobilização das trabalhadoras e trabalhadores da educação para ocupar ruas e construir as grandes marchas em defesa da educação pública, gratuita e de qualidade. Só assim estaremos, de fato, na disputa do projeto de educação que defendemos.
(*) Ivonete Cruz é professora de História da Educação Básica e secretária de Políticas Sociais da CNTE e Guilherme Bourscheid é diretor de escola no governo do Rio Grande do Sul e secretário-executivo da CNTE.