Por Valter Pomar (*)
Talvez agora os céticos acreditem.
E para quem não tiver paciência de procurar no relatório, também copiamos ao final o trecho fatal do referido Relatório.
O resumo da ópera é: na opinião da terceira edição do Relatório de Projeções Fiscais, publicação da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), o “novo marco fiscal”, para ter sustentabilidade, precisa ser acompanhado de mudanças nos recursos vinculados.
E para não deixar dúvida do que se está falando, o relatório faz uma “breve descrição das principais despesas vinculadas a receitas”, citando as emendas parlamentares obrigatórios, o fundo constitucional do Distrito Federal, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) e – em primeiro lugar – os Gastos Mínimos Constitucionais com Saúde e Educação.
Ou seja: saúde e educação estão na mira.
Zero surpresa.
Afinal, uma das premissas do “novo marco fiscal” é os gastos só crescerão até 70% do crescimento das receitas. Para um governo que não quer ampliar investimentos, isto não é problema. Mas para um governo que não só deseja, mas também está ampliando investimentos, há um conflito óbvio, que só se resolve: i/fazendo crescer muito as receitas (o que exigiria, por exemplo, uma reforma tributária de verdade) e/ou 2/contendo algumas “despesas”, para abrir espaço para alguns investimentos.
Dai vem a tentação – que vem sendo anunciada há meses por diversos integrantes do governo, inclusive pelos técnicos acima citados – de fazer algo que a direita neoliberal sempre defendeu: desconstitucionalizar os investimentos em saúde e educação.
Se a opinião do Relatório prosperar, cairá mais uma das diferenças entre o “novo” marco fiscal e o velho teto de gastos.
(destaques em vermelho são de minha responsabilidade)
Com a evolução do desenho das regras fiscais, também importa alinhar os determinantes das trajetórias dos diversos gastos à dinâmica fiscal global, de modo a preservar o espaço fiscal de todas as políticas públicas. O Regime Fiscal Sustentável (…) baseia-se em metas anuais de resultado primário associadas a limites para o crescimento real da despesa primária, definidos como uma proporção do crescimento real das receitas.
A seguir, apresentamos breve descrição das principais despesas vinculadas a receitas e mostramos como diferentes formas de vinculação poderiam alterar a dinâmica dos gastos, favorecendo o planejamento fiscal e a coordenação entre os componentes da despesa.
Gastos Mínimos Constitucionais com Saúde e Educação
A Constituição Federal, em seu arts. 198 e 212, e a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), em seu art. 25, § 1º, inciso IV, alínea “b”, apresenta a base legal das despesas mínimas da União em Saúde e em Educação vinculadas a determinados conceitos de receita. Mais especificamente, as despesas da União em ações e serviços públicos de saúde (ASPS) devem ser de, no mínimo, 15% da Receita Corrente Líquida (RCL); e com Educação, em ações de manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE), de, no mínimo, 18% da Receita Líquida de Impostos (RLI)47. Nota-se que tal vinculação é associada ao fluxo do ano corrente: a RCL computada até dezembro é a referência para o gasto mínimo que também deve ser realizado até dezembro. Isso gera dificuldades de cumprimento ao longo da execução orçamentária, tendo em vista a imprevisibilidade dessas receitas. Importante notar que se trata apenas de gastos mínimos. Não há impedimentos para que o governo execute valores superiores com essas políticas, o que de fato ocorre em vários anos.
(….)
O elevado nível de vinculações tende a extinguir a discricionariedade alocativa, pois reduz o volume de recursos orçamentários livres que seriam essenciais para implementar projetos governamentais prioritários, que atendam as necessidades da população em cada momento do tempo. Assim, em regra, não se recomenda a vinculação de recursos. No entanto, para o caso das vinculações existentes, caso decida-se por revisitá-las, é importante que a vinculação favoreça a previsibilidade e a execução das políticas que se pretende priorizar.
Nesse sentido, uma opção em substituição aos atuais indexadores, seria o uso da variação real do limite de despesa, o que implicaria um crescimento mínimo de 0,6% ao ano, impossibilitando reduções reais dessas despesas, de forma a diminuir a volatilidade dos recursos aplicados nessas políticas – ou, como outra opção, uma proporção da variação real do limite de despesa.
O uso de um indexador consistente com o mecanismo de correção da despesa global aumentaria a previsibilidade destas despesas e reduziria a rigidez orçamentária frente às regras atuais em momentos de expansão da economia (com variação real da RCL superior ao limite de despesa do novo regime fiscal). Ademais, a adoção de um único indexador em substituição à grande variedade dos indicadores de receita atualmente utilizados simplificaria o acompanhamento e a execução orçamentária.
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Segue a íntegra do texto publicado na Folha de S. Paulo
Tesouro sugere limitar crescimento de pisos de saúde e educação sob novo arcabouço fiscal
IDIANA TOMAZELLI 13 JULHO 2023 | 6min de leitura
Os mínimos constitucionais de saúde e educação podem ser corrigidos pela mesma regra do limite de despesas prevista no novo arcabouço fiscal, que permite um crescimento entre 0,6% e 2,5% acima da inflação, sugere o Tesouro Nacional em seu Relatório de Projeções Fiscais divulgado na quarta-feira (12).
A opção citada no documento não reflete necessariamente uma decisão de governo, mas é sintoma da preocupação dos técnicos com um desafio já contratado na vigência da nova regra fiscal. Os pisos dessas áreas voltarão a crescer de forma mais acelerada devido ao fim do teto de gastos e à consequente volta da regra constitucional que os vincula à arrecadação, o que deve achatar as demais despesas de forma crescente ao longo dos anos.
“O uso de um indexador consistente [para saúde e educação] com o mecanismo de correção da despesa global aumentaria a previsibilidade destas despesas e reduziria a rigidez orçamentária frente às regras atuais em momentos de expansão da economia”, diz o relatório do Tesouro.
O Ministério da Fazenda discute apresentar, até o fim do ano, uma PEC (proposta de emenda à Constituição) para mexer nessas vinculações e harmonizar a tendência de expansão dessas despesas com a limitação do novo arcabouço fiscal. Em abril, o ministro Fernando Haddad antecipou o debate em entrevista à Folha.
Com a aprovação do novo arcabouço fiscal prevista para este ano e a consequente revogação do teto de gastos, os pisos constitucionais das duas áreas voltarão a seguir a regra que vigorou até 2016, que os vinculava a uma proporção da arrecadação: 15% da RCL (receita corrente líquida) para a saúde e 18% da RLI (receita líquida de impostos) para a educação.
Essa simples mudança pode ocupar um espaço de R$ 30 bilhões a R$ 35 bilhões dentro do novo limite de despesas, segundo cálculos de economistas. A diferença se dá porque, sob o teto de gastos, os mínimos foram desvinculados das receitas e passaram a seguir uma regra de correção apenas pela inflação —o que achatou os valores mínimos dedicados a essas áreas.
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) defendeu a recomposição dos recursos ao articular, ainda na transição, a aprovação de uma PEC (proposta de emenda à Constituição) para abrir espaço no Orçamento de 2023, comprimido pela regra do teto de gastos.
Com o avanço do arcabouço, porém, a discussão da mudança nas vinculações entrou no radar de Haddad, que almeja garantir a sustentabilidade da nova regra fiscal no médio e longo prazo.
Simulações do Tesouro ajudam a ilustrar parte do problema. Ao reproduzir as regras do arcabouço sobre a dinâmica fiscal entre 2009 e 2022, o órgão constata que o limite de despesas teria tido um crescimento médio de 1,3% ao ano, já descontada a inflação. Já os indicadores de receita que balizam os mínimos em saúde e educação teriam tido uma expansão média de 3,1% ao ano.
É esse descompasso que preocupa o Ministério da Fazenda. “O descasamento entre o indexador do limite de despesa e as receitas que vinculam despesas específicas é prejudicial ao planejamento fiscal e pode afetar a composição do gasto público de maneira indesejada, ao reduzir o espaço fiscal disponível para outras políticas”, diz o Tesouro.
“Nesse sentido, uma opção em substituição aos atuais indexadores, seria o uso da variação real do limite de despesa, o que implicaria um crescimento mínimo de 0,6% ao ano, impossibilitando reduções reais dessas despesas, de forma a diminuir a volatilidade dos recursos aplicados nessas políticas”, acrescenta.
Outra opção, segundo o órgão, seria atrelar os pisos a uma proporção da variação real do limite de despesa —o que poderia impor um ritmo até menor de avanço dos mínimos.
A mesma preocupação vale para outras despesas ligadas à dinâmica das receitas, como o FCDF (Fundo Constitucional do Distrito Federal) e as emendas parlamentares individuais e de bancada. Ambos os gastos possuem mínimos atrelados à RCL.
Dessas, a única vinculação que não é garantida na Constituição é a do FCDF. Na Câmara, o relator do arcabouço fiscal, deputado Cláudio Cajado (PP-BA), incluiu um artigo para vincular a correção do fundo à mesma regra do limite geral de despesas, mas a mudança foi derrubada no Senado Federal (o que ainda pode ser revertido pela Casa vizinha).
Qualquer uma dessas opções tende a enfrentar resistências dentro da própria base do governo. O PT foi uma das siglas mais críticas à mudança nos pisos de saúde e educação, que, sob a vigência do teto de gastos, tiveram seu crescimento vinculado à correção apenas pela inflação. Trata-se de uma discussão semelhante à que ocorre agora, embora o Executivo pretenda assegurar maior flexibilidade ao permitir ganhos reais.
A manutenção das regras atuais pode ter um efeito nefasto sobre as despesas discricionárias, que incluem custeio da máquina e investimentos excedentes ao piso de 0,6% do PIB (Produto Interno Bruto) criado pela proposta.
Em suas simulações, o Tesouro dividiu os gastos discricionários em duas categorias: rígidos (que incluem despesas imunes a cortes, como os mínimos constitucionais, as emendas e o piso de investimentos) e os demais (que estão sujeitos a bloqueios e contingenciamentos para cumprir as regras fiscais).
Em 2024, as despesas discricionárias rígidas chegam a R$ 159 bilhões, enquanto as demais alcançam R$ 63 bilhões. Com o passar dos anos, os gastos rígidos crescem continuamente, enquanto os demais chegam a um pico de R$ 101 bilhões em 2026, mas passam a cair até serem reduzidos a R$ 39 bilhões em 2032. Os números são exibidos a preços de 2023.
Um ponto importante é que este cenário não contempla o esforço adicional de arrecadação que o governo precisa fazer para cumprir as metas fiscais traçadas até 2026.
O paradoxo é que, se Haddad tiver sucesso em seu plano de elevar as receitas, a situação pelo lado das despesas (caso a dinâmica delas não seja modificada) ficará ainda mais apertada —justamente porque os mínimos constitucionais, as emendas e o FC~DF crescem acompanhando a bonança pelo lado da arrecadação.
Nesse cenário, o espaço para as discricionárias como um todo ficaria menor em 2024, e quase todo ele seria ocupado pelos gastos rígidos, que somariam R$ 168 bilhões. Restaria apenas R$ 1 bilhão para as demais despesas. Em todo o período analisado, o pico para esses outros gastos livres seria de R$ 55 bilhões em 2028.
“O elevado nível de vinculações tende a extinguir a discricionariedade alocativa, pois reduz o volume de recursos orçamentários livres que seriam essenciais para implementar projetos governamentais prioritários, que atendam as necessidades da população em cada momento do tempo”, alerta o Tesouro ao recomendar as mudanças.
“Assim, em regra, não se recomenda a vinculação de recursos. No entanto, para o caso das vinculações existentes, caso decida-se por revisitá-las, é importante que a vinculação favoreça a previsibilidade e a execução das políticas que se pretende priorizar.”
(*) Valter Pomar é professor e membro do diretório nacional do PT