Por Wladimir Pomar (*)
Mestre Cristovam Buarque decidiu decretar que não é somente o PT que está obsoleto. Seu artigo em O Globo colocou toda a esquerda “tradicional brasileira” nessa condição, segundo ele, pela “aderência à corrupção” e, principalmente, “pelo apego às ideias do passado” e ao fato de não haver visto a história avançar, com as “transformações tecnológicas que impuseram mudanças nas relações entre trabalho, capital e consumidor, reduzindo a criação de empregos aos tipos qualificados, informais e provisórios”.
A “mais valia” teria sido substituída pela “desvalia” sobre os pobres e pelo pacto “da valia” entre capitalistas e trabalhadores especializados, estes representados pelos sindicatos. Ou seja, os sindicatos teriam passado a representar, em conluio com os capitalistas, apenas trabalhadores do setor moderno, “não o povo”. A globalização não permitiria a adoção de “políticas econômicas nacionais voluntariosas”, que terminariam “populistas e irresponsáveis”. A construção da justiça social exigiria uma economia eficiente, já que o desequilíbrio ecológico seria incompatível com o aumento do consumo para todos. E “a elevação salarial não melhoraria a vida dos pobres”.
O vetor do progresso não residiria mais no chão das fábricas, mas nos bancos das escolas. A distribuição estrutural da renda se daria pela garantia da educação a todos. O Estado teria se esgotado. O que exigiria distinguir estatal e público, respeitar as restrições técnicas na economia, e garantir o acesso aos bens. Ao mercado caberia a produção e distribuição dos bens e serviços privados. Portanto, para mestre Cristovam, a esquerda brasileira teria perdido suas “utopias socialistas” e não teria construído outra proposta transformadora, num país dividido em corporações e segmentos sociais, e sem reformas estruturais num mundo em transformação.
Diante disso, as primeiras questões que vêm à mente são: que diferença existe entre tais pensamentos do mestre Cristovam e as catilinárias do mestre Paulo Guedes? A desindustrialização brasileira faz parte das transformações tecnológicas? Pode haver educação da maior parte do povo num Estado serviçal do 1% da população que constitui a classe burguesa?
Como Guedes e a burguesia, mestre Cristovam também considera o Estado um estorvo às suas atividades e lucratividade e exige a completa privatização das atividades econômicas, deixando “ao mercado a produção e a distribuição dos bens e serviços”. O problema é que a burguesia brasileira tem ojeriza à indústria, por sua origem na burguesia comercial traficante de escravos, e jamais assumiu o papel de indutora da industrialização, a grande transformadora tecnológica das sociedades modernas.
Do ponto de vista prático, a industrialização brasileira se deveu à substituição das importações, impostas, nos anos 1910, pela I Guerra Mundial e, depois, nos anos 1930 e 1940, pela perspectiva da nova guerra mundial. A Companhia Siderúrgica Nacional, a Fábrica Nacional de Motores e, mais tarde, a Petrobras, foram iniciativas que tiveram que ser assumidas por outras camadas sociais e pelo Estado, em virtude da incompetência da burguesia nativa.
Nos anos 1950 e 1960, a industrialização brasileira se tornou uma realidade devido a mudanças estruturais no capitalismo desenvolvido, levado a buscar fora mão de obra mais barata. Mas foi o Estado que assumiu as rédeas de abertura do Brasil aos investimentos externos e de constituição do amplo exército de força de trabalho necessário à industrialização, através da reforma conservadora do latifúndio.
A ditadura militar canalizou o dinheiro público para modernizar a agricultura e impor o deslocamento de milhões de lavradores desapropriados para as cidades industriais, de modo a garantir a oferta de mão de obra barata. Em cerca de uma a duas décadas, a população rural brasileira foi reduzida de 64% para 16%, criando um exército populacional de reserva muito maior do que o exército efetivo de trabalho industrial.
Portanto, a disparidade entre o exército de trabalhadores empregados e o exército de proprietários de mão-de-obra sem emprego, sem salário, sem educação e sem vários outros itens de sua necessidade humana, não é de agora. Vem de longe. Além disso, grande parte da industrialização brasileira foi oligopolizada pelas empresas estrangeiras, impondo ao país um sistema de infraestrutura logística cara e ineficiente, sem que jamais a burguesia nativa tenha chiado.
Por outro lado, quando o capitalismo avançado entrou numa fase mais intensa de globalização e de mudanças tecnológicas, a partir de sua crise dos anos 1970 e 1980, inclusive com a transferência de plantas industriais segmentadas para outros países de mão-obra mais barata, o Brasil ingressou numa fase crescente de perda de indústrias e de aumento do desemprego.
Enquanto as transformações tecnológicas nos países capitalistas avançados, especialmente nos Estados Unidos, causavam e causam descartes em sua força trabalho industrial, no Brasil a falta de ofertas de emprego por avanços tecnológicos só foi realidade na agricultura. No restante de sua economia, a causa principal do desemprego e da extensão da miséria social se deveu e se deve à crescente desindustrialização.
É verdade que isso sofreu um leve hiato nos primeiros anos do século 20, mas foi retomado com força a partir da crise mundial capitalista de 2008. De 2014 a 2018, por exemplo, a participação dos bens industriais produzidos nas vendas externas do Brasil foi de apenas 32%. E, nos últimos anos, cerca de 25 mil fábricas instaladas no Brasil foram fechadas, com um poderoso descarte da força de trabalho então empregada, o que significa uma crescente redução do consumo. O que tem levado os capitalistas brasileiros a também se jogarem na insanidade de gerar dinheiro através da especulação financeira, sem qualquer base na produção material real.
É verdade que alguns estudiosos proclamam que o dinheiro especulativo seria dominantemente proveniente da produção e do tráfico de drogas. No entanto, é o sistema financeiro que busca lucros maiores através da especulação com dinheiro fictício. Para manter intocada sua capacidade de centralização do capital (reunião de fortunas financeiras num número cada vez menor de trilionários capitalistas), esse setor hegemônico capitalista realiza uma massiva comunicação ideológica, deformando as interpretações da realidade, de modo a manter inerte a crescente massa de deserdados do sistema e culpar suas crescentes dificuldades de sobrevivência pela ausência de educação e de empreendedorismo.
Se mestre Cristovam ignora tais fatos, é preciso reconhecer que, da mesma forma que ele, parte da esquerda ainda não soube refazer sua leitura da realidade, assim como de seus erros e defeitos, um dos quais consiste em não realizar uma luta constante pela industrialização. Ela nivela o desenvolvimento tecnológico do Brasil com o dos Estados Unidos e acredita que o desemprego nacional também é de natureza tecnológica.
Na verdade, o Brasil ainda é tecnologicamente atrasado, sua indústria tem baixa capacidade de competir no mercado internacional, e é isso que a faz fechar as portas. Por outro lado, os exemplos da China e da Índia demonstram que países ainda tecnologicamente atrasados podem realizar aquela competição se realizarem a reestruturação competitiva de seus mercados. O que os torna capazes de gerar empregos e aumentar a participação da classe trabalhadora na geração de riqueza e na luta por sua distribuição menos desigual.
A experiência daqueles países mostra que, além de abrir espaços para sua industrialização, a globalização pode permitir aos países pobres e médios obter acordos de investimentos externos acompanhados da transferência de novas tecnologias, elevando a capacidade de concorrência de suas indústrias no mercado externo.
Em outras palavras, para reduzir a desemprego e realizar a elevação salarial e a redução geral da pobreza, a industrialização ainda é o caminho mais adequado para o Brasil e países semelhantes. Mesmo porque, se os bancos das escolas são fundamentais como vetor de progresso, os salários são fundamentais para garantir a presença e o aproveitamento dos filhos dos pobres e remediados nas escolas.
O vetor do progresso da economia de qualquer país reside na combinação de uma série de condições, que vão do chão das fábricas aos bancos das escolas, e a uma distribuição da renda mais equitativa. Nessas condições, o papel do Estado se torna ainda mais necessário para garantir a combinação menos caótica e desigual da produção, da circulação das mercadorias, da distribuição dos bens, rendas e serviços, e da participação de todos no destino do país.
Portanto, diante da crítica de Mestre Cristovam o que importa é que a esquerda brasileira saiba fazer a crítica não só dos destemperos ideológicos e políticos desse ex-esquerdista, mas também aos desvios que tem praticado nos últimos vinte a trinta anos para encontrar o caminho que leve o povo brasileiro a escolher seu destino.
Nesse sentido, a retomada do socialismo como bandeira de transição de economias atrasadas para economias avançadas, com capacidade de geração de empregos, vem ganhando força. E isso não só em países como a China, que deu um salto em sua potencialidade econômica num espaço de tempo de apenas 40 anos, mas também em países como os Estados Unidos que, quanto mais avança em seu desenvolvimento tecnológico e na fortuna centralizada por grandes empresários, mais gera desemprego tecnológico, um absurdo civilizacional.
Nesse sentido, talvez também seja o momento da esquerda brasileira rever os prejuízos que o abandono do suposto obsoletismo da utopia socialista causou a seu povo nos últimos anos. Mesmo porque, o “capitão mito” não se cansa de atacar o socialismo como inimigo irreconciliável, algo que mestre Cristovam se mostra incapaz de compreender.
(*) Wladimir Pomar é jornalista e escritor