Os Estados capitalistas e os seus imites democráticos: uma discussão teórica

Por Pamela Kenne [1]

Com a crise de 2008 foi possível expor as contradições das teorias dos Estados econômicos liberais. Um dos princípios dessas concepções trata-se de compreender a economia, ou melhor, “os mercados[2]”, como organizações que tendem à autorregulação e ao equilíbrio. Assim, a ação estatal – sem passar pelo juízo dos “mercados” – poderia prejudicar esse processo quase natural de superação de crises. Ou seja, aos “mercados” deveria ser garantida a autonomia diante de governos e de instituições estatais. No entanto, em 2008 evidenciou-se o que há por trás dessa mágica do equilíbrio. Os “mercados” não conseguiram regular a crise que construíram, alargando-a, como de práxis, para a sociedade. E as saídas para resolver os prejuízos dos capitalistas passaram necessariamente por intervenções de Estados.

Abre-se, então, de forma mais ampla a discussão acerca das concepções de Estado. Ao se deparar com um Estado mínimo ilusório – em que os mercados dependem das intervenções estatais, e oportunista – que intervém sempre em benefícios de poucos capitalistas, deixando a população trabalhadora sofrer as consequências das crises, retoma-se as reivindicações de um Estado que seja intervencionista para todos/as. Mas que Estado seria esse? E, afinal, o que é o Estado?

Parte-se do pressuposto geral que o Estado é uma estrutura institucional (político-administrativa) que controla e organiza juridicamente uma população de um determinado território. Sendo sustentada por um conglomerado de instituições e aparatos. Assim, essa estrutura institucional, a partir de seus agentes e espaços legitimados (ou não) de atuação política, consolida as leis e a sua execução. Além disso, regula os direitos sociais, os direitos sobre a natureza, os serviços públicos, organiza as relações de mercado etc. Entretanto, apesar dos anseios contratualistas, a história mostrou que o centro da sua contradição é o fato de que são as classes dominantes que possuem o maior poder de determinação sobre o funcionamento do Estado. Sobretudo, e o que está por trás de tudo isso, o Estado de um sistema capitalista tem como função primordial organizar a distribuição e o controle da propriedade privada.

O conceito de Estado poderia ser abordado a partir de diversas perspectivas, por exemplo: descrição histórica; apanhado filosófico e epistemológico sobre as noções de Estado; tipologias/categorizações de formas institucionais de Estados; variações de desenvolvimentos de Estados no capitalismo etc. Entretanto, optou-se por abordar o tema a partir de um fio condutor: a contradição que reside no processo imbricado de desenvolvimento do capitalismo e da democracia como a contradição do atual Estado capitalista. O objetivo é a reflexão sobre as atuais crises capitalistas e seus impactos nos Estados e suas concepções, tendo como instrumento os estudos sociais econômicos sobre esse tema que emergiram após a crise de 2008, dando seguimento a importantes questionamentos sobre os rumos da sociedade em era de globalização e acumulação intensiva de capital.

Para isso, pretende-se abordar as noções mais gerais de Estado, partindo dos conceitos de Estado de modelo liberal econômico e Estado de bem-estar social. Não sendo conceitos ou formações institucionais opostas entre si, nem agregando nelas todas as formas de Estado constituídas ou idealizadas, muito menos resumindo o que se entende por essas próprias duas categorias. Compreende-se que as variações de formas de Estados expandem-se aos processos históricos particulares dos territórios, e as formas específicas com que se relacionaram com o desenvolvimento global do capitalismo. Ou seja, mesmo os Estados liberais e de bem-estar social apresentam-se como casos particulares nos países e períodos determinados em que se desenvolveram, como aponta uma síntese sobre dinâmicas de desenvolvimento dos welfare states realizada por Fiori (1997). Então, aqui somente parte-se da ideia de que o choque entre o liberalismo econômico e o welfare state auxilia a explicitar mais do que contradições de modelos estatais, mas as lutas de classes no centro da contradição do desenvolvimento das sociedades capitalistas.

Os limites de ideias que partem de princípios liberais-econômicos foram sendo expostos diante das sucessivas crises capitalistas. Em um primeiro sentido, porque o Estado tem sido ao longo de todo período historicizado necessário para garantir a propriedade privada, seja pelo monopólio do uso da força, seja pela estabilização das regras do jogo liberal. Em um segundo sentido, porque não há racionalidade direcionada à estabilização econômica nas lógicas da livre concorrência entre mercados. Em um terceiro sentido, porque esse modelo econômico não é visto a partir da perspectiva das classes trabalhadoras.

Se, por definição, o capitalismo é a propagação necessariamente expansiva de capital sob a lógica da propriedade privada, incorre em uma contradição quando o seu desenvolvimento está imbricado ao desenvolvimento da própria democracia – “governo em que o povo exerce soberania”. A tendência de acumulação capitalista requer distanciamento dos/as trabalhadores/as do processo produtivo e do mais-produto produzido pelos/as mesmo/as, mas que a eles/as não pertencem. Ao mesmo tempo que o aprimoramento democrático incidiu em formas de organização de reivindicações das classes trabalhadoras consumando certa ampliação de direitos sociais e de maior acesso aos recursos produzidos. Dessa forma, a democracia e as políticas de bem-estar social se apresentam como fenômenos contraditórios ao desenvolvimento do capitalismo.

Nesse sentido, Streeck (2018) discorre sobre como essa essência do sistema capitalista incorre em conflitos distributivos que vão se acentuando nos períodos de baixo crescimento a partir de análise detalhada dos efeitos das crises no centro do capitalismo a partir dos anos 1970 até a crise fiscal de 2008. Esse estudo evidencia que o efeito dos “anos de ouro” foi a ocorrência posterior de um desequilíbrio econômico em que não foi possível sustentar os gastos públicos que foram ampliados para garantir os direitos de trabalhadores/as conquistados – ou concedidos para garantir estabilidade social – ao mesmo tempo em que se garantia a manutenção da acumulação dos capitalistas. As consequências foram inflação alta, endividamento estatal e explosão do mercado financeiro. Tendo como resultado as reformas neoliberais a partir dos anos 1980 e a desestruturação das políticas de bem-estar social (FIORI, 1997; STREECK, 2018).

Destaca-se a definição de Fiori (1997) sobre o Estado de Bem-Estar Social como “a forma moderna mais avançada de exercício público da proteção social” (p. 131) para levantar a reflexão sobre a construção da democracia e dos direitos sociais, pois ela suscita dimensão do exercício público da proteção social como um processo. Nesse sentido, para ampliar a reflexão sobre os limites da construção da “democracia capitalista”, pode-se pensar brevemente nos primórdios da inserção de noções de justiça e direitos sociais, mesmo que limitadas ao máximo, nos períodos de transições absolutistas e construções republicanas. Compreender tal inserção na construção dos Estados em um contexto de extrema centralização de poder auxilia no entendimento da contradição que decorre do desenvolvimento imbricado do capitalismo-democracia, liberalismo-welfare. Isso porque, salvaguardadas as particularidades e historicidades de cada caso, a liberação da força de trabalho para lógicas capitalistas teve que ser acompanhada por instituições que ordenariam essas relações. Sendo parte delas, as inserções de noções contratuais, de justiça, de cidadania e direitos limitados – concedidos pelas classes dominantes – para parcelas das classes trabalhadoras. A partir do artigo citado, percebe-se certa evolução dessas políticas de proteção social ao longo do tempo, junto ao desenvolvimento do próprio capitalismo. Evolução, no caso, não linear e que assume formas distintas em cada caso/Estado analisado.

O Estado de Bem-Estar Social consolida-se paradigmaticamente por volta dos anos 1950, com princípios de atingir o pleno emprego e realizar redistribuição de renda a partir de uma economia regulamentada pelo Estado. Entretanto, ao longo das crises posteriores, a retomada das instituições (neo)liberais significou desresponsabilizar o Estado da garantia dos direitos sociais e da distribuição dos recursos. Passando tal responsabilidade ao “livre mercado” e a lógica da eficiência. Sendo, então, respostas de Estados às crises, com viés das classes dominantes.

A atual crise fiscal é abordada como um seguimento do mesmo processo, assim como as crises sociais que impactam as democracias. Após um período “dourado”, com a terceira revolução tecnológica, que permitiu a acumulação capitalista ocorrer junto à distribuição social de uma parcela desses recursos, sucedeu a retração do capital. A participação social na política é retraída de forma concomitante, o que ocorre junto às mudanças nas relações e no mercado de trabalho. As reformas neoliberais são acompanhadas por um período de diminuição do poder sindical e de partidos políticos. As mudanças nas relações de trabalho, além de distanciar trabalhadores/as do processo produtivo, tornam os espaços de atuação cada vez mais dispersos e abstratos. Sobretudo, as elites econômicas passam a constituir novas estratégias, de âmbito institucional e ideológico, para apartar os/as trabalhadores/as do processo democrático.

Como Marx descreve, em o processo de circulação de capital, uma crise no sistema capitalista ocorre quando há diminuição na capacidade de realizar as operações comerciais que arrecadam capital. Ou seja, redução da capacidade de obter os rendimentos esperados com as operações, não necessariamente por uma diminuição do consumo ou da oferta, mas pelo não cumprimento da expectativa sobre a demanda de pagamentos e de preços no mercado. Assim, algumas empresas e bancos podem “quebrar” no final de um ciclo de acumulação de dinheiro. O que pode ocorrer principalmente em momentos de grandes expansões dos mercados, como no caso financeiro citado inicialmente. Dessa  forma, conclui-se também que não há uma racionalidade direcionada ao equilíbrio econômico nesse modo de funcionamento, mas um pensamento com sentido ao lucro e à expansão do próprio negócio que tende a recair em crises cíclicas e na sobrevivência daqueles que possuem a maior quantidade do capital para recomeçar o processo de acumulação.

Esse processo pode explicar a tendência de acumulação dos recursos econômicos em alguns capitalistas, que, ao passar pelas crises, podem aumentar os seus negócios a partir dos setores que “quebraram”. No entanto, está em perspectiva também a situação da população trabalhadora em tempos de crise, o seu endividamento, os processos inflacionários, o aumento de índices de desemprego, a redução dos salários, a redução dos serviços públicos e o desmantelamento das políticas públicas. Questões que permanecem mesmo quando as classes dominantes de capitalistas conseguem equilibrar novamente as suas contas. Inclusive, que permanecem para os capitalistas se recuperarem às custas desses recursos dos/as trabalhadores/as.

Então, retorna-se a discussão do papel do Estado. Foi diante de crises capitalistas que emergiu o paradigma neoliberal, com suas reformas e decomposições do Estado de Bem-Estar Social, que já não poderia conviver com a lógica dos mercados devido ao fato simples de a distribuição social dos recursos impedir a acumulação capitalista, cada vez mais intensiva. E o Estado se vê endividado e limitado para estabilizar a crise e as as disputas por recursos entre as classes sociais, garantindo, ao mesmo tempo, os privilégios e as recompensas financeiras de alguns (por exemplo, os pagamentos de títulos das dívidas públicas) e os direitos conquistados pelos/as trabalhadores/as. Assim, a democracia também se vê em crise, pois a participação social na política possibilita a organização das classes trabalhadoras para reivindicar os recursos. E temas como “justiça social” passam a ser abordados como empecilhos para os mercados e para uma economia “equilibrada”.

A ideia de garantir o equilíbrio para os “mercados” – a partir das intervenções estatais – fica no centro dessa discussão sob a lógica de que para resolver as crises, a sociedade precisa de “mercados eficientes”. Sendo que toda intervenção por justiça social, ou, redistribuição dos recursos na forma de políticas de proteção social, é tratada pelas classes dominantes como “desreguladoras”, que podem gerar “desequilíbrio econômico” em Estados já tão endividados – pelo excesso de intervenções que têm como objetivo realizar a “justiça de mercado”.

Nesse sentido, Streeck (2018), aborda o tema do endividamento crescente de Estados, com tendências a manter em alta as taxas de juros das dívidas públicas, a reduzir arrecadações tributárias de grandes empresas e ampliar as isenções fiscais. Mesmo tendo como resultado taxas de crescimento a longo prazo decaindo. As consequências são formações de sistemas tributários cada vez mais regressivos: em que se aumenta proporcionalmente tributações das menores rendas, do consumo e para a seguridade social. Ou seja, é ampliada, em nível global, a estratégia de cortar gastos públicos da maior parte da população para honrar com a dívida pública e estabelecer relações de confiança com os seus credores. Não é nada revelador ressaltar como esse modelo se aplica no caso brasileiro. Trata-se de entender agora as formações estatais em uma fase de globalização capitalista.

O mercado financeiro integra-se em nível globalizado, os investidores relacionam-se entre si e com os Estados muito além de suas cidadanias, e não existe regulamentação das regras desse jogo. Como credores, eles mantêm contratos com os Estados sobre os seus títulos, que podem vender caso estimem que não irão recuperar seus investimentos ou obter os rendimentos de acordo com as suas expectativas. Aos Estados, que ampliam as suas dívidas e passam a manter taxas de juros exorbitantes, precisam pagá-las para manter a confiança do mercado.

A crise democrática apresenta-se a partir do desafio das classes dominantes em controlar as articulações e lutas sociais que organizam as pautas dos/as trabalhadores/as. Mesmo quando Estados são governados por partidos de esquerda, ainda precisam solucionar suas dívidas com um mercado financeiro globalizado, e traçar seus projetos de desenvolvimento em um cenário cada vez mais intenso na disputa pelos recursos. Em um processo democrático, cidadãos podem articular e ampliar formas de fazer o controle dos recursos, e organizar as reivindicações em lutas pela sua distribuição. Mas a democracia, em momentos de crises capitalistas, tem sido interrompida com ações violentas de Estados ou com o uso de aparatos ideológicos para expandir discursos que manipulam a verdade da situação, muitas vezes, metonimicamente, transferindo os significados de lugar. As crises podem ser apreendidas por parte expressiva da população a partir de discursos fundamentalistas religiosos; de divisões sociais e negações do outro, e de desesperança na participação política como instrumento de transformação da realidade.

Por fim, torna-se necessário pensar o Estado em um contexto de capitalismo globalizado. O que repercute em limitações e duros desafios para ação dos Estados e da classe trabalhadora diante da economia global. Castells (2020) realiza importante contribuição acerca das influências da atual transformação tecnológica na crise financeira e econômica que está sendo enfrentada. Os reflexos dessa transformação nas desregulamentações e flexibilizações tornaram o fluxo de capital quase livre em todo o mundo. As novas tecnologias permitiram a complexificação, a interligação e a virtualização de capitais, impedindo a transparência desses processos. Os processos de desenvolvimento capitalista de países periféricos e emergentes foram conduzidos pelos sistemas financeiros centrais, repercutindo no endividamento e na ampliação da dependência dos primeiros para com os últimos.

A democracia, a organização social e a distribuição dos recursos encontram os seus limites nos Estados capitalistas. Sob a lógica liberal, de justiça de mercado, não há contratos possíveis entre as classes que não sejam aqueles que submeterão a classe trabalhadora aos interesses expansivos dos capitalistas, com alguns direitos concedidos e limitados ao crescimento econômico situacional. A intensificação e complexificação do processo de acúmulo do capital em fase de globalização exige de organizações políticas e de Estados posturas estratégicas para consolidar processos de desenvolvimento que auxiliem na construção de soberanias nacionais e regionais, ou que reduzam as relações de dependência constituídas. Mas para a democracia plena e a justiça social ainda parece que é preciso manter em vista que será necessária a superação do modelo econômico capitalista.

REFERÊNCIAS

CASTELLS, M. A Sociedade em Rede.  Rio De Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 21ª ed., 2020.

FIORI, J. L. Estado de Bem-Estar Social: Padrões e Crises. PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 7(2), 1997.

MARX, K. O Capital II. O Processo de Circulação do Capital. São Paulo: Boitempo, 2014.

STREECK, W. Tempo Comprado: a crise adiada do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2018.


[1] Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS.

[2] Importante salientar que quando se fala em “mercados” nesse contexto, fala-se de uma rede de agentes e organizações financeiras que atuam nas operações de comercialização monetária, de crédito e de capitais.

 

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