Página 13 publica texto da professora e analista Mariana Álvarez Orellana relatando a “Tercera toma de Lima”, protestos que aconteceram na última quarta-feira (19) no Peru exigindo a reúncia da presidente golpista Dina Boluarte e a imediata convocação de novas eleições.
Por Mariana Álvarez Orellana (*)
Publicado originalmente em https://estrategia.la e traduzido por Marcos Jakoby
O grito “Dina assassina, renuncie” foi mais uma vez ouvido nas ruas do Peru: dezenas de milhares de peruanos participaram de manifestações em todo o país; escolas e universidades foram fechadas em várias regiões, e praças e ruas foram tomadas por manifestantes antigovernamentais.
Mas o protesto não é só contra Dina Boluarte. O Congresso, controlado por uma direita que lançou uma ofensiva autoritária para controlar as instituições democráticas, também é alvo da ira popular. Boluarte tem uma rejeição de 80% e o Congresso de 91% da população.
O avanço das eleições para a mudança da presidente Boluarte e do desacreditado Congresso, justiça para os mortos nos protestos anteriores e referendo para uma Constituinte são as principais reivindicações.
Apesar do repúdio majoritário dos cidadãos, a ilegítima coalizão Boluarte-Congresso se mantém com o apoio das Forças Armadas, das elites econômicas e de seus meios de comunicação afins.
Por isso, a palavra de ordem central e consensual é a renúncia de Dina Boluarte, o que forçaria uma transição que conduza a eleições gerais no mais curto espaço de tempo possível, antes que o Congresso assuma o controle dos órgãos eleitorais como aconteceu com o Tribunal Constitucional, o Ministério Público Nacional e a Defensoria do Povo, adverte um editorial de Otra Mirada.
O governo -e a mídia hegemônica- têm insistido em uma narrativa que equipara o direito de protesto social a atos criminosos, sediciosos ou terroristas, buscando deslegitimar o protesto cidadão e induzir na população um clima de medo e ansiedade que visa desmobilizá-la.
Isso em um contexto em que a participação de lideranças sociais tem sido restrita ou ameaçada, por meio de intimidação judicial, midiática e nas redes sociais.
O governo, que respondeu aos protestos com um discurso ameaçador que criminaliza a mobilização popular, mobilizou 8.000 policiais no centro de Lima e cerca de 25.000 em todo o país. Ele repetiu o discurso que endossou a repressão brutal contra os protestos ocorridos entre dezembro e março, nos quais 67 pessoas morreram, 49 delas baleadas pelas forças de segurança, tentando enterrar no esquecimento os massacres de Ayacucho e Juliaca.
A profundidade da crise exige mudanças estruturais, relacionadas a uma renovação do sistema político e da representação política da sociedade, reformas profundas no sistema de justiça e mudanças no modelo econômico neoliberal, que gera persistentes desigualdades econômicas e sociais. Mas qualquer mudança será bloqueada se a coalizão de poder personificada por Boluarte continuar no governo.
Ela, cooptada por aqueles que perderam as eleições e conspiraram para tomar o poder, sob a liderança do Fujimorismo, outras forças de ultradireita e nos últimos meses, em cumplicidade com o Peru Libre, o Bloco Magisterial e outros grupos que não tiveram escrúpulos em se apoderar das instituições do Estado, quebrar o equilíbrio constitucional de poderes e romper com o Estado de direito.
Os protestos
Escolas e universidades foram fechadas em todo o país. Em Lima, a capital, os confrontos começaram quando um cordão policial impediu o avanço de manifestantes que queriam chegar ao Congresso. Um grupo ultrapassou a barreira policial e avançou pela avenida que leva ao Congresso. Chegaram à praça que fica em frente ao Legislativo, que estava cercada e com forte presença policial. Um grande número de policiais saiu da Plaza del Congreso para mantê-los afastados daquela área. A mobilização foi dividida.
As faixas diziam “na democracia quem protesta não se mata” e os camponeses manifestantes exibiam caricaturas de Boluarte com capacete, segurando um rifle em um tanque militar com a frase “Fico até 2026”. Eles também carregavam réplicas de lápides pretas com letras brancas e cruzes com os nomes das dezenas de mortes nos protestos. Bandeiras peruanas foram agitadas, algumas com o preto substituindo o vermelho em sinal de luto, assim como a indígena wiphala.
Na praça principal da região de Huancavelica, nos Andes, a polícia dispersou cerca de 3.000 manifestantes com gás lacrimogêneo, depois que a porta do escritório local do Ministério do Interior foi consumida pelo fogo, confirmado pelo primeiro-ministro peruano, Alberto Otárola, em entrevista coletiva. As emissoras de televisão locais mostraram pedreiros, universitários e camponeses cantando: “Esta democracia não é mais uma democracia” e “Dina, assassina, o povo te repudia”.
A Defensoria informou outras situações de violência na tomada de instalações da Universidade Nacional de Cajamarca, bem como bloqueios em 58 províncias. Segundo o Ministério dos Transportes, oito pontos de rodovias nas regiões de Cusco, Arequipa, Ayacucho e Loreto foram bloqueados, apesar de que há uma semana o governo estendeu por um mês a suspensão da liberdade de movimento e reunião em várias rodovias importantes do país, para evitar bloqueios.
Em Juliaca, cidade da região serrana de Puno, onde a greve foi contundente, familiares das vítimas da repressão ocuparam lugar central nas mobilizações de protesto. Em 9 de janeiro, 18 pessoas morreram nesta cidade quando a polícia atirou contra os moradores que se mobilizaram naquele dia exigindo a renúncia de Boluarte. Os retratos das vítimas foram colocados na Plaza de Armas. “Exigimos justiça”, gritava a população.
No Ayacucho andino, onde a repressão deixou dez mortos em dezembro, a greve também foi geral. Contundência que se repetiu em outras regiões. Em Cajamarca, região natal do ex-presidente Pedro Castillo, agora preso, a universidade foi retomada. Algumas estradas foram bloqueadas. A polícia disparou gás lacrimogêneo para limpá-los.
Em Lima, epicentro da mobilização, prédios públicos, incluindo a sede do palácio do governo e do Congresso, foram protegidos com barras de metal, enquanto os manifestantes marchavam pelas principais ruas do centro. No sul de Arequipa, a segunda região mais importante, as autoridades suspenderam as aulas presenciais. A mesma medida foi anunciada para a região turística de Cusco e Tacna, na fronteira com o Chile.
Embora o governo Boluarte tenha acusado os manifestantes de serem violentos, dados da Ouvidoria indicam que entre dezembro e fevereiro, de um total de 1.327 protestos realizados, apenas 11,5% foram violentos. Boluarte absteve-se de fazer declarações durante o dia, mas na véspera qualificou os protestos contra seu governo como “uma ameaça à democracia” e voltou a atacar os manifestantes, acusando-os de “violentos”.
O discurso oficial ressuscitou o grupo armado derrotado Sendero Luminoso para vinculá-lo ao protesto e assim tentar desacreditá-lo, intimidar a população e justificar a repressão. Boluarte pediu diálogo com os que exigem sua renúncia, mas disse que suas reivindicações não podem ser atendidas por serem “políticas”, destacou que o governo respeitou o direito de protestar, mas o criminalizou.
Boluarte chegou ao poder em 7 de dezembro de 2022, depois que o Congresso destituiu o então presidente Pedro Castillo, que tentou dissolver o Parlamento para evitar uma votação contra ele. Cinco dias depois de tomar posse, em meio aos protestos, ela garantiu que havia tomado a iniciativa de chegar a um acordo com o Congresso para antecipar as eleições gerais para abril de 2024. Mas em junho a presidente mudou de ideia e garantiu que permaneceria no poder até 2026, quando termina o mandato presidencial para o qual Castillo foi eleito.
Enquanto isso, a Conferência Episcopal Peruana descreveu [o protesto] como justo e constitucional. Em comunicado, indicou que “o governo tem a obrigação imperiosa de ouvir o povo peruano e não ficar alheio às suas urgentes necessidades e justas reivindicações”.
(*) Antropóloga, professora e pesquisadora peruana, analista associada ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE, www.estrategia.la )