Política Externa Brasileira em debate: o primeiro ano do governo Bolsonaro

Por Mateus Santos (*)

Ao olharmos retrospectivamente as eleições de 2018 e, posteriormente, o primeiro ano do Governo Bolsonaro, a Política Externa foi um dos aspectos que mais repercutiram no interior do debate intelectual, político e, em certa medida, na opinião pública. Como não se lembrar, por exemplo, das polêmicas em torno do posicionamento do Brasil em relação ao Governo de Nicolás Maduro (Venezuela), as relações com os Estados Unidos de Donald Trump ou a questão árabe-israelense? Estes e outros assuntos fizeram parte desse recorte temporal sugerido anteriormente, merecendo uma reflexão mais apurada por aqueles que, de alguma maneira, tentam realizar uma leitura conjuntural mais profunda.

Bolsonaro e seu chanceler Ernesto Araújo já marcam a história mais recente da trajetória diplomática brasileira ao promoverem inflexões significativas, entre discurso e prática, em relação à condução da Política Exterior. Se nas últimas décadas houve, em maior ou menor medida, a prevalência de elementos que constituíam uma identidade internacional ao Brasil, isto é, parte de uma Política de Estado, o que se verifica hoje é a expectativa de uma ruptura. Elementos como o universalismo, a busca por maior autonomia na inserção internacional, a defesa da paz, dos direitos humanos, a valorização do multilateralismo e, de certo modo, uma perspectiva revisionista na ordem internacional foram colocados à prova já nos primeiros 365 dias de governo. Aqui elencaremos brevemente alguns aspectos que, em minha visão, constituem eixos centrais nessa nova orientação da PEB.

Um primeiro e importante aspecto diz respeito ao papel do Itamaraty nesta conjuntura. Se, mesmo diante da valorização da diplomacia presidencial nas últimas décadas, o órgão não deixou de ocupar um papel estrutural e estruturante na formulação e ação diplomática do país, o início do governo Bolsonaro sugere uma perda de protagonismo e, ao mesmo tempo, mudanças em sua linha política. O chanceler Araújo, apesar de ser um quadro do Instituto Rio Branco e possuidor de alguma experiência na área diplomática, é símbolo vivo do que o atual governo desenvolve na política interna. Enxugamento de gastos, fechamento de embaixadas (aspecto que já havia sido sinalizado e efetuado durante as gestões Serra – Aloysio Nunes) e a retórica anticomunista também estão presentes nessa nova perspectiva de condução da Política Externa, sendo alguns dos fatores a serem levados em consideração para a leitura dessas mudanças na estrutura interna do principal organismo diplomático do país.

Do ponto de vista da inserção internacional do país, não faltam polêmicas. Os temas já citados na introdução (como outros também) são apenas “pontas do iceberg” da política tocada por Brasília neste ano. De imediato, comecemos pelo relacionamento com os Estados Unidos. Para quem conhece um pouco da trajetória da PEB ao longo do século XX, EUA e, talvez, Portugal foram dois países que ocuparam algum lugar de destaque em nossas formulações, pois nossos posicionamentos em relação aos citados acabavam por confluir ou entrar em contradição com aspirações mais amplas de nosso país. Lisboa perdeu esse posto, mas Washington não. Olhando para o 2019, é no Governo Bolsonaro que vemos um dos maiores alinhamentos do Brasil com a Casa Branca, comparável, ainda que com suas especificidades, às Eras Castelo Branco e Eurico Gaspar Dutra.

A Política brasileira para os Estados Unidos apresenta um grau de submissão considerável. Entre teoria e prática, o desejo de ter aquele país como um dos primeiros aliados na atual conjuntura se mistura à uma compreensão de mundo quase que cruzadista, ao considerar, fazendo referência as palavras do atual chanceler, Trump e os estadunidenses como os verdadeiros “salvadores” de um Ocidente em suposto risco. Um 2019 que marca uma nova inflexão sobre um debate sempre presente na história do Brasil: qual é o nosso lugar do mundo? Como concebemos este? A resposta, até o momento, é enxergar no país um novo ocidentalismo, por meio da reafirmação de um pertencimento cristão, capitalista, liberal e diretamente relacionado à um passado europeu. Talvez não estamos longe de reviver discursos comuns ao século XIX, em enxergar no Brasil alguma possibilidade de replicação de uma utopia de sociedade europeia (ou, o que parece mais provável, estadunidense).

Como nos anos de Dutra, o americanismo de Bolsonaro não vem trazendo nenhum saldo positivo para quem esperava algum tipo de estreitamento das relações.  Donald Trump, neste mesmo ano, garantiu não estar a disposição para bancar a entrada do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), uma das aspirações do novo governo brasileiro. Além disso, é difícil recordar algum tipo de movimentação política ou econômica que trouxesse algum resultado pra o Brasil. Mais uma vez, evocamos ironicamente a frase famosa de Juracy Magalhães, chanceler do governo Castelo Branco, “o que é bom para o Brasil é bom para os Estados Unidos”: submissão e mais submissão…

Nessa retórica de revalorização do ocidentalismo, associado à um interesse de Política Externa, a questão árabe-israelense ganhou um novo impulso neste governo. Anunciada como uma das plataformas do então candidato em 2018, a polêmica em torno da mudança da embaixada em Israel para a cidade de Jerusalém, o que, na prática, significaria o seu reconhecimento enquanto capital do Estado Israelense, também permeou discussões ao longo do ano. O engajamento de Tel Aviv em relação ao Brasil, expresso, por exemplo, na visita de Benjamin Netanyahu ao país e no fornecimento de homens para a atuação na tragédia de Brumadinho não foi o suficiente para que tal promessa fosse concretizada. Como já era de se esperar, este é um assunto dos mais polêmicos, dividindo apoiadores do atual presidente brasileiro e tendo a contrariedade de conhecedores de nossa Política Externa.

Ainda em 2018, países árabes ou somente muçulmanos, como o caso do Egito,  ameaçaram boicotar produtos brasileiros caso esta medida fosse levada à cabo. O primeiro prejudicado seria outro setor senão o agronegócio e a pecuária. O potencial econômico árabe, aspecto bastante explorado nos últimos anos, é de interesse vital para a chamada bancada do “boi”, o que faz dessa temática uma das mais centrais na nova Política Externa do Brasil. A recente passagem de Bolsonaro por alguns países árabes, tais como a Arábia Saudita, o Qatar e os Emirados Árabes poderão culminar com a concretização de um verdadeiro recuo nessa questão. Vale lembrar que apenas os Estados Unidos e um número ínfimo de países seguiram o caminho que o atual mandatário brasileiro afirma querer seguir. Em nosso país, setores religiosos observam com especial atenção toda essa movimentação.

Na América do Sul, uma série de mudanças nos faz ter verdadeiros reencontros com um passado que parecia muito distante. No lugar da cooperação e do fortalecimento dos organismos multilaterais, tais como a UNASUL, o MERCOSUL e outros, predominou em 2019 um clima de bastante tensão e a consolidação de uma nova postura para os nossos vizinhos. Bolsonaro não só deu continuidade, mas aprofundou uma tendência já vista durante o governo Temer. Observou-se, ao longo destes 365 dias, um engajamento em torno dos conflitos internos no continente. Engajamento esse que, ao contrário de outras épocas, não ficou marcado pelos esforços de mediação e participação em torno da contenção das crises, mas de incentivos ou acenos à resoluções que violam a soberania nacional dos Estados envolvidos ou representam históricas mudanças de posições do país em relação a antigos aliados.

É neste caldo que vimos o aprofundamento da crise da Venezuela e a expectativa em torno de uma guerra civil com intervenção brasileira e colombiana em favor dos setores que se opõem à Maduro; Um engajamento de Brasília nas eleições argentinas, uruguaias e bolivianas; Um quase esvaziamento do MERCOSUL (com sinalização de uma possível saída do Brasil) e marginalização de iniciativas de integração regional. Este último aspecto é bastante curioso, pois o que se viu foi paradoxalmente esforços por construção de vínculos de natureza ideológica, tais como a atuação do Brasil no chamado Grupo de Lima, uma quase instância paralela que apareceu em algumas das polêmicas citadas acima.

Para a África, silêncio e mais silêncio. Este continente que foi um dos principais pontos de parada da diplomacia brasileira nas últimas duas décadas, hoje ocupa um lugar pouco significativo. Diante dos esforços pela desarticulação da Cooperação Sul-Sul, das investigações da Operação Lava-Jato, da perda de interesse pela atual multilateral e da expansão do capital brasileiro ao exterior, o outro lado do Atlântico se encontra mais distante das formulações diplomáticas brasileiras. Apesar do atual chanceler sinalizar para a permanência dos laços com os países africanos, não se pode negar que essa já é uma das principais mudanças e, ao que tudo indica, a abertura de uma nova fase nas relações Brasil – África.

Ao velho continente, contradições. Essa foi a tônica da Política Bolsonaro em relação à Europa. Por um lado, o fechamento de um acordo entre Mercosul e União Europeia, aspecto que se arrastava já há alguns anos. Por outro, uma postura de embate com Estados tradicionais, tais como a França de Macron e a Alemanha de Merkel, sobretudo na questão ambiental. A reconstrução de um protagonismo do Norte Global em nossa política não foi desacompanhada de muitas confusões e tensionamentos. Como não se esquecer das declarações do presidente atual sobre o governo de Paris? Diante da internacionalização do desmatamento da Amazônia, coube ao Brasil ocupar um papel negativo no debate ambiental, aspecto pouco visto nas últimas décadas. Entre negações e acusações infundadas, Brasília apresentou uma postura intransigente no assunto, levando inclusive à possibilidade da União Europeia reconsiderar o acordo saudado pelo governo Brasileiro.

Por fim, a ONU. O discurso de Bolsonaro na Abertura da LXXIII Assembleia Geral da ONU é uma janela de análise para sentirmos boa parte das mudanças aqui consideradas. Sob um tom bastante forte e agressivo, o presidente brasileiro externou toda a ideologização que diz combater, ao se colocar enfaticamente contra os governos de Caracas e Havana. Apresentou ao mundo seu quase isolamento na questão ambiental, expondo negativamente lideranças indígenas consolidadas do país. Reafirmou compromissos com os EUA de Donald Trump e a nova extrema-direita em outras partes do mundo. Nova York viu um pouco mais de uma Nova Política Externa do Brasil. Viu e, em muitos casos, deve ter estranhado.

2020, o que esperar?

Final de ano e, em qualquer assunto, o que se coloca sempre é: o que se pode esperar nesse novo ciclo? Para a Política Externa Brasileira, a expectativa é a continuidade de sua revisão. Se há uma área em que Bolsonaro parece querer deixar sua marca de desmantelamento das políticas que predominaram na Era Petista (e, neste caso, até em governos de direita) esta é a Política Exterior.

Em relação aos Estados Unidos, a expectativa em torno das eleições presidenciais, tendo Donald Trump como candidato à reeleição. Expressará o Brasil o mesmo engajamento visto no embate entre Macri e Alberto Fernandez na Argentina? Falando nos vizinhos portenhos, o que será das relações entre um aliado político do petismo e o atual presidente brasileiro? Nessa equação, qual o futuro do Mercosul? No Oriente Médio, há possibilidade de manutenção da histórica e tradicional equidistância? Estas e outras questões deverão fazer parte de nossos debates no próximo ano.

Olhando para frente, mas sem deixar de ver o que se passou, 2019 já entra pra história da Política Externa do Brasil como um ano de inflexão. Certamente, os 365 dias que agora estão a passar farão parte de nossas análises futuras para a compreensão do que foram as relações do Brasil com o mundo neste século XXI de muitas incógnitas e, mais precisamente, nesta conjuntura mundial que parece estar longe de ser superada.

(*) Mateus Santos é  militante petista e da Juventude da Articulação de Esquerda – Bahia (JAE-BA) e graduado em História – UFBA

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