Por Luiz Sérgio Canário (*)
No século XVII um poeta inglês, John Donne, escreveu: “então nunca pergunte por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”. Ele escreveu isso, entre outras razões, por estar doente em casa há algum tempo e toda vez que os sinos da cidade tocassem anunciando uma morte, o povo não pensasse que ele que havia morrido. Em São Paulo os sinos tocaram no final das eleições e muita gente achou que tocou anunciando a morte do PT. Ainda não foi dessa vez! Nos ferimos, mas não de morte.
É fato que fomos derrotados eleitoral e politicamente. Mas daí a termos morrido como querem alguns vai uma larga distância. Estamos muito vivos, diga-se de passagem.
Números
Por conta da fragmentação partidária, 15 candidaturas se inscreveram, representando 11 partidos isolados e 4 coligações, totalizando 32 partidos. A maior coligação, a do PSDB, tinha 11 partidos.
- PSDB: PP/MDB /PODE/PSC/PL/CIDADANIA/DEM/PTC/PV/PROS
- PSB: PDT/PMN/AVANTE/SOLIDARIEDADE
- PSOL: PCB/UP
- PSL: DC
Candidaturas e votos, primeiro turno eleições 2020, município de São Paulo.
Esse é o reflexo da fragmentação partidária no Brasil. As quatro candidaturas mais votadas concentraram cerca de 80% dos votos. E exceto PT, PSOL e PC do B e PCO e PSTU com muito pouca expressão eleitoral, todos os demais partidos estão à nossa direita. E a direita golpista e neoliberal está representada na maioria dos partidos. Nesse bolo também estão os partidos do bolsonarismo.
Comparação da votação da esquerda com os demais partidos, primeiro turno eleições 2020, município de São Paulo.
Votação dos partidos de esquerda, primeiro turno eleições 2020, município de São Paulo.
A votação dos demais partidos, primeiro turno eleições 2020, município de São Paulo.
Votação do PSDB e PSOL, segundo turno eleições 2020, município de São Paulo.
Variação do número de votos do PSDB e PSOL entre primeiro e segundo turno, eleições 2020, município de São Paulo.
Em 2020 a esquerda teve, excetuando 2016, um ponto fora da curva, a mais baixa votação nos primeiros e segundos turnos do século XX. O PT teve metade dos votos de 2016 e oito vezes menos votos que em 2000, ano de sua maior votação percentual, cerca de 38%. O PSOL catapultou sua votação quase sete vezes em relação a 2016, ano de seu maior resultado percentual. Saiu de cerca de 3% para cerca de 20%.
As abstenções dobraram nesse século, saindo de cerca de 15% em 2000 para cerca de 33% em 2020. O não-voto, soma de abstenções, brancos e nulos, saltou de cerca de 24% em 2000 para cerca de 45% em 2020. Números do primeiro turno. Quase metade dos eleitores consideraram que nenhuma das 15 candidaturas, de 32 partidos diferentes, lhe representava ou motivava a sair de casa para votar. No segundo turno o percentual foi semelhante. Esse percentual é equivalente ao de países em que o voto não é obrigatório. Na prática o voto no Brasil se tornou opcional.
Esses números de não-votos refletem o descrédito do povo na participação na vida política do país. Mais um dos efeitos colaterais da Lava Jato, que, para justificar o golpe e destruir o PT, acabou por causar sérios abalos em todo sistema político. Partidos, políticos, legislativos, governantes e governos ganharam o carimbo da ineficiência e da corrupção. E a atividade política virou quase coisa de bandidos. Com o PT à frente, sendo a Geni do sistema político. O antipetismo é empurrado como forma de tirar da política seus aspectos mais nefastos. Só que não!
Antes das eleições
A prefeitura de São Paulo é a joia da coroa nas eleições municipais. A maior cidade do país, capital do estado mais populoso e dona de um dos maiores orçamentos da República, atrai a atenção de todas as forças políticas. Da direita à esquerda. Desde 2019 já se especulava sobre candidaturas. Covas era o candidato natural do PSDB por ser o prefeito. Russomano por insistência e por querer ser o candidato de Bolsonaro. Joice Hasselmann por ter sido eleita deputada com uma votação enorme e Marcio França por ter sido candidato a governador em 2018 e ter tido uma expressiva votação na cidade de São Paulo. O PT havia decidido lançar candidatura própria, eleita em uma prévia com a participação de todos os filiados. PSOL e PC do B, possíveis aliados do PT, logo resolveram lançar candidaturas próprias esvaziando qualquer possibilidade de o PT fazer qualquer coligação pela esquerda. PCO e PSTU nunca estão dispostos a se coligar, além de terem pouca expressão eleitoral.
Logo o PDT decide apoiar Marcio França e fecha também a possibilidade de o PT fazer qualquer coligação pela sua direita. Marta Suplicy – que se chegou a falar muito em ser vice de Haddad, se ele fosse candidato – está no Solidariedade procurando algum espaço.
O campo à nossa direita vai se consolidando em torno das candidaturas do Covas, principalmente, França e Russomanno. As demais, Hasselmann, Matarazzo, não demonstram grande fôlego. REDE, PRTB, PATRIOTA são figurantes na disputa.
O candidato escolhido pelo PT em um processo que deixou enormes fissuras no partido é Jilmar Tatto. Na falta de alternativas, Carlos Zarattini, deputado federal pelo PT, é indicado o candidato a vice-prefeito. O PT sai com uma chapa puro-sangue, com dois homens brancos.
Nesse cenário profuso em candidatos, Bruno Covas e Celso Russomanno logo se destacam como os líderes da corrida. Russomanno carrega o peso de já por duas vezes sair liderando e perder votos à medida que a campanha avança. Será que dessa vez vai? Não foi!
A candidatura de Tatto segue sendo bombardeada por muitos setores do partido. A candidatura do PSOL, Boulos, com Erundina vice, começa a despontar e cada vez mais petistas se movem em direção a ela, pregando o voto útil. Boulos era a única chance de a esquerda ir para o segundo turno. A candidatura de Tatto é cristianizada e até mesmo importantes candidaturas à vereança do partido, até mesmo de ex-vereadores pelo PT, passam, sem a menor cerimônia ou vergonha, a esconder os símbolos do partido e o nome do candidato. Alguns fazem campanha quase abertamente para Boulos ou incentivam seus apoiadores a fazer isso.
Ao mesmo tempo que a candidatura de Boulos cresce, a grande esperança da militância do PT, que segue firme na campanha, é nossa sempre presente virada na linha de chegada. A campanha segue firme até o último dia. Apesar de vários setores do partido terem tentado até o último minuto, até mesmo Lula, fazer Tatto desistir da candidatura, ele vai até o fim. Até o dobrar dos sinos que anunciam, não a morte do PT, mas a maior derrota do PT na cidade de São Paulo. Chegamos em sexto lugar, pateticamente atrás de um youtuber chamado Mamãe Falei, eleito deputado estadual em 2018 com boa votação, que ficou famoso nas manifestações da direita durante o golpe. Fomos fragorosamente derrotados eleitoral e politicamente na cidade que foi o berço do PT, onde ele foi fundado e onde sempre teve bons resultados eleitorais.
O PSOL avança, nos atropela, e leva seu candidato ao segundo turno para disputar a prefeitura com Bruno Covas. O resultado já foi mostrado mais acima.
Jilmar Tatto
Tatto não foi um candidato ruim. Resolveu que seria o candidato e lutou por isso até conseguir. E levou sua candidatura até o fim mesmo tendo que enfrentar medalhões do partido como Gleisi, Marinho e o próprio Lula. Para ser candidato provocou um racha na sua tendência, a Construindo um Novo Brasil, CNB, que não consegue se unir ao redor de uma só candidatura. Como sempre joga seus impasses internos para serem resolvidos pelo partido. Uma parte da CNB havia lançado Alexandre Padilha.
Durante todo o tempo teve sua candidatura questionada. O candidato natural do PT seria Fernando Haddad, que se recusou a sê-lo e contou para isso com a ajuda do Diretório Nacional, DN, que não o chamou à responsabilidade, mostrando que somente ele tinha condições de chegar ao segundo turno e até mesmo de ganhar as eleições. Também era o candidato que o PSOL e o PC do B concordavam em se coligar ao PT. Até o DN decidir que iria convocar Haddad para a tarefa, Tatto era meio que um candidato tampão, a espera que o candidato preferido resolvesse assumir a tarefa. A partir daí o “eu não faço campanha para Tatto” foi aumentando de tamanho.
Mas Tatto demonstrou coragem e determinação todo o tempo. Fez campanha intensamente, principalmente na periferia. No segundo turno chegou a liderar carreata da candidatura de Boulos, que não estava lá por estar com a covid. Mas isso não foi o suficiente. Não conseguiu unir o partido, atrair os outros partidos de esquerda e, principalmente, atrair os eleitores. No fim sua candidatura mostrou todas as limitações do candidato e do partido em São Paulo.
O dia seguinte
A vitória esconde todos os erros e é cheia de pais e mães. A derrota é órfã. Mas exibe todas as fraquezas de quem perdeu. A confusão é tanta para se chegar a algum diagnóstico que se discutiu até que, como os votos de Boulos eram do PT, quem ganhou foi o PT, em um raciocínio torto o quanto pode ser. Que Boulos deve a vitória ao PT. Aos traidores do PT que além de votar em Boulos ainda fizeram campanha para ele. E segue por aí a fora.
A derrota de Tatto e do PT tem uma longa história. E os sinos já vêm dobrando, mesmo que fraco, há algum tempo, anunciando essa derrota. Que se solidifica na campanha. Jilmar Tatto é fruto de uma concepção de partido burocratizada e autoritária. Ele e sua família controlam a burocracia do partido na cidade, e mostrou sua força ao derrotar a todos os que apoiaram a candidatura de Padilha. Sua família tem diversos representantes nos parlamentos, incluindo Arselino Tatto, que é vereador desde o distante ano de 1988. A exceção da Articulação de Esquerda todas as forças que têm presença em São Paulo se uniram para derrotar Tatto. E ele venceu a todos em um colégio eleitoral onde votaram somente os dirigentes municipais e os dirigentes das 37 zonas eleitorais da cidade.
Tatto foi um candidato imposto ao partido pela burocracia que ele controla e pelas disputas internas mal resolvidas da CNB. Tinha muito pouca chance de vencer um candidato que tentava se reeleger com o controle da máquina pública, que usa sem nenhum constrangimento, e com a rede de partidos que organizou ao seu redor. É o exemplo acabado dos métodos usados há anos pela CNB.
Se sua campanha não chegou a ser ruim, não foi boa. Conseguiu montar um programa razoável, mas centrou seu discurso nas suas realizações e na sua capacidade de fazer. Cansou de falar na substituição da bolacha seca por comida de verdade, nos corredores de ônibus e nos quilômetros de ciclovias construídas. Gastou dinheiro na produção de filmes para a propaganda na TV que não conseguiu nem emocionar, nem mobilizar as pessoas. Teve uma campanha pífia e amadora na internet. E não elevou o nível político da campanha, associando os problemas do dia a dia do povo da cidade às questões nacionais e estaduais, trazendo as políticas neoliberais de Bolsonaro e Doria para dentro do debate. Nacionalizar a campanha não é abandonar o tema do buraco na rua ou do transporte ruim para bater em Bolsonaro. É trazer para o debate que o transporte seguirá ruim e as ruas com buracos enquanto tivermos, no governo: Doria, Bolsonaro e Guedes, executando políticas que defendem interesses do mercado financeiro e que pouco se importam em como o povo vive. É mobilizar a classe trabalhadora na defesa dos seus direitos. E que só assim, na luta contra a opressão, criamos condições para termos transporte melhor e ruas sem buracos. Faltou política e emoção. Principalmente política.
A campanha e a direção do partido não perceberam que o povo paulistano buscava uma candidatura arejada e popular e viram em Boulos, e não em Tatto, essa candidatura. Boulos e Erundina conseguiram, com muito menos recursos e militância, o que o PT não conseguiu: se mostrar como alternativa ao PSDB. Boulos não tinha um programa, experiência, militância e estrutura. E foi para o segundo turno. O PT ficou em sexto lugar.
Mais do que refletir sobre a derrota eleitoral, precisamos refletir sobre a derrota política. Essa traz consequências até de longo prazo. A derrota eleitoral, mas com uma política justa e correta, pode ser revista e corrigida no plano material. Mas a política não. Essa precisa ser encarada e suas razões aprofundadas até as causas para que correções de rumo, táticas ou estratégias diferentes possam recolocar a luta na direção correta.
Essa é a grande tarefa que o PT em São Paulo tem: aprofundar a discussão política sobre essa monumental derrota, chegar nas suas causas mais profundas e corrigir os erros, para retomar o rumo.
Viva o Partido dos Trabalhadores e das Trabalhadoras!
(*) Luiz Sérgio Canário é militante petista em São Paulo-SP.