Questão militar: intervenção de Natália Sena na Executiva Nacional do PT

Por Página 13

Nesta sexta-feira (25), está ocorrendo a reunião da  Executiva Nacional do PT. A seguir, reproduzimos o roteiro da intervenção da companheira Natália Sena sobre a questão militar e a proposta de resolução apresentada pela tendência Articulação de Esquerda.

A questão militar – Por Natália Sena

O texto que apresentamos tem como foco a questão militar.

Não apenas porque foi o debate central da reunião do DN que remeteu o assunto para cá, mas também por ser um tema fundamental da atual conjuntura e inescapável quando se trata de analisar o governo Bolsonaro e o bolsonarismo em âmbito social e político:

– é politicamente relevante e quantitativamente cada vez maior a presença militar no governo. E Bolsonaro está tomando medidas para facilitar ainda mais isso;

– está em curso uma escalada na atuação política dos comandos das forças, os da ativa (caso Pazzuello).  Vide entrevista do presidente do Superior Tribunal Militar  (STM); eles estão e querem continuar fazendo política abertamente;

– as milícias, a facilitação do acesso a armas por civis, a ameaça de punição de civis pela justiça militar.

Por tudo isso é fundamental que o PT se posicione no debate público sobre esse assunto.

Certamente as mobilizações são fundamentais na disputa de consciência e na quebra de apoio ao governo Bolsonaro, inclusive nas forças armadas e na polícia.

Mas é preciso tratar do assunto em específico.

Nossa posição acumulada sobre o assunto é totalmente antagônica a de Bolsonaro, e isso precisa ser afirmado.

Por exemplo: defendemos que o Brasil necessita de forças armadas à serviço da defesa nacional, totalmente subordinadas ao poder civil e integralmente respeitosas da democracia e dos direitos humanos.

Já Bolsonaro e sua turma defendem forças armadas subordinadas ao Comando Sul dos Estados Unidos, tutelando o poder civil, desrespeitando a democracia e os direitos humanos.

E a situação concreta hoje é que a cúpula das forças é muito mais do que “apoiadora” do governo. Há uma identidade ideológica e política nas questões de Estado, mesmo aparecendo divergências de algumas personalidades na forma de governar.

E é isso que teremos que enfrentar se quisermos efetivamente voltar a governar e fazer mudanças estruturais no Brasil. Uma eleição não resolverá essa escalada que os caras estão dando.

Por isso, é preciso:

– enfrentar a doutrina da “lei e ordem”, não legitimar nem minimizar seus efeitos;

– é preciso entender que o art. 142 é sim a tutela das forças armadas sobre os demais poderes, não tergiversar sobre isso e trabalhar para revogar esse entulho (não podemos enfrentar ferrenhamente o lawfare do sistema de justiça, o monopólio da mídia golpista, e minimizar o fato de que a tutela militar está constitucionalizada no tal estado de direito brasileiro);

– é preciso desde já começar a trabalhar na atualização da política nacional de defesa que foi elaborada durante os nossos governos, fazer um balanço sincero do que fizemos e deixamos de fazer, do que aconteceu depois e tirando todas as consequências para um futuro retorno ao governo, sem tratar a relação com as FFAA de forma coorporativa;

– é preciso alterar as normas, o funcionamento, a formação, a política de inteligência militar, a visão do “inimigo interno” que prevalece tanto nas forças quanto nas polícias, inclusive a civil (vide Jacarezinho);

– é preciso carregar o tom na defesa do fim da justiça militar, da desmilitarização da segurança pública, da PEC sobre exercício de cargos políticos por militares…

Enfim… esses são alguns dos pontos que estão na resolução e que justificam na nossa opinião a necessidade urgente de o PT tratar do tema, agora, não “depois que chegar ao governo”, pois esse assunto é central na disputa política que está em curso hoje e pode ser decisivo no que vai acontecer em 2022.

É uma questão democrática, com incidência direta no tipo de Estado que temos e na relação desse Estado com a sociedade.


 

Proposta de resolução apresentada pela Articulação de Esquerda

A Comissão Executiva Nacional do PT, reunida no dia 25 de junho de 2021, aprova a seguinte resolução:

1 – O Partido dos Trabalhadores saúda as centenas de milhares de brasileiros e brasileiros que foram às ruas em todo o país, nos dias 29M e 19J, para pedir vacinação, auxílio emergencial, comida, emprego e Fora Bolsonaro. A continuidade da mobilização das ruas é condição indispensável para derrotar a pandemia, o desemprego, a fome e o governo Bolsonaro, por isso, é fundamental participarmos, mobilizarmos e organizarmos os atos marcados para 24 de julho.

2 – A pandemia pode ser derrotada com auxílio emergencial, medidas sanitárias, vacinação e Sistema Único de Saúde. Mas Bolsonaro atuou e segue atuando contra tudo isto. Foi contra o auxílio emergencial, reduziu o quanto pode seu valor e abrangência, atrasou sua distribuição. Além disso, Bolsonaro foi e continua trabalhando contra as medidas sanitárias básicas, como o uso de máscaras e o distanciamento social. Como se não bastasse, segue trabalhando pela “imunização de rebanho” e prejudica a obtenção e a fabricação de vacinas. Para completar, estrangula financeiramente e contribui para a destruição do SUS. O resultado são – até o momento – mais de 500 mil vidas perdidas, a maioria das quais por ação direta ou indireta do governo Bolsonaro e de seus aliados. Apesar do avanço da vacinação, as novas cepas, as sequelas da Covid 19 e os demais problemas de saúde cujo atendimento foi represado por conta da pandemia só serão adequadamente enfrentados se o governo Bolsonaro e seus aliados forem derrotados.

3 – A pandemia vai passar, mas a destruição social e econômica causada pelo governo Bolsonaro e suas políticas vai continuar nos afetando por muito tempo -mesmo depois que Bolsonaro e seus aliados tiverem sido derrotados. Acontece que Bolsonaro está trabalhando ativamente para nos converter definitivamente numa nação primário-exportadora, fazendo nossa economia depender da importação de produtos industriais fabricados fora daqui. O Brasil já foi primário-exportador, numa época em que tínhamos em torno de 40 milhões de habitantes. Hoje o Brasil tem mais de 210 milhões de habitantes. Sem indústria – e uma indústria moderna – não haverá empregos de qualidade para a maioria do nosso povo. Sem indústria, não haverá como financiar políticas públicas de qualidade para a maioria de nosso povo; a miséria, a fome e o desemprego seguirão crescendo cada vez mais. E se a situação econômica e social não se alterar, a revolta vai crescer e a questão social será cada vez mais convertida em caso de milícia, polícia e repressão por parte das Forças Armadas. Só haverá soberania, bem-estar e liberdades democráticas se o governo Bolsonaro e seus aliados forem derrotados.

4 – Bolsonaro é um criminoso, mas com ele atua uma quadrilha. Os que fizeram o golpe de 2016; os que condenaram/prenderam/interditaram a candidatura de Lula; os que fraudaram a eleição de 2018; as lideranças políticas que chamaram o voto em Bolsonaro no primeiro ou no segundo turno; os que apoiaram seu governo e suas políticas desde 1 de janeiro de 2019, são cúmplices ativos – em maior ou menor medida – dos males praticados pelo governo Bolsonaro. Mesmo hoje, em que seus crimes são mais do que evidentes, o cavernícola segue tendo o apoio de parte importante do grande empresariado, dos meios de comunicação, do congresso nacional, das Forças Armadas e policiais, das igrejas conservadoras, dos “coxinhas de classe média”. Por isto, não basta derrotar a pessoa de Bolsonaro, é preciso derrotar seu governo, suas políticas e seus aliados. Assim como é preciso impedir que os aliados de ontem se mantenham no poder, para continuar praticando o bolsonarismo sem Bolsonaro.

5 – Não podemos esquecer que Bolsonaro não teria sido eleito, se Lula tivesse sido candidato. E Lula teria sido candidato, se a Constituição tivesse sido respeitada. Mas só em 2021 o Supremo Tribunal Federal lembrou que a Constituição existe. A vitória de Bolsonaro é produto de uma fraude baseada num crime contra a Constituição. E desde que tomou posse até hoje, Bolsonaro cometeu inúmeros outros crimes, o principal dos quais é o de ter contribuído ativamente e passivamente para o assassinato deliberado e consciente de centenas de milhares de brasileiros e brasileiras. Não foi apenas a COVID-19, foram o governo federal e seus aliados os responsáveis pelo genocídio. E mais gente morrerá de vírus, de bala, de frio e de fome, se Bolsonaro não for afastado.

6 – Por tudo isto e muito mais, não podemos esperar 2022: temos que fazer de tudo para afastar Bolsonaro, seu governo e suas políticas JÁ! Até porque não devemos nos iludir com as pesquisas: em 2018 Lula também liderava as pesquisas e sabemos o que a classe dominante fez. E não queremos apenas tirar Bolsonaro. É preciso derrotar sua política e passar a implementar um programa de reconstrução e transformação nacional, que afirme nossa soberania nacional, que construa bem estar social para toda a população brasileira (e não apenas para quem tem dinheiro), que gere desenvolvimento com industrialização, que garanta ao povo as liberdades necessárias para decidir os rumos do Brasil. Para que o país tenha soberania e desenvolvimento, bem-estar e liberdades, para derrotar todos os obstáculos, para afastar Bolsonaro e seus aliados, inclusive os aliados de ontem que hoje fingem que são oposição desde criancinhas, só há um remédio: povo na rua.

7 – A mobilização do povo é essencial seja para derrotar e afastar Bolsonaro agora ou, pelo menos, impedir que ele chegue melhor posicionado nas eleições presidenciais. A mobilização do povo é essencial, também, para reduzir as possibilidades de êxito de manobras golpistas, antes, durante e depois das eleições. A mobilização popular é decisiva, igualmente, para sustentar um governo transformador. Finalmente, a mobilização popular é o melhor antídoto contra as manobras da direita neoliberal tradicional, que segue tentando abrir uma brecha para suas posições na disputa presidencial.

8 – A mobilização popular é fundamental, também, para neutralizar a influência que Bolsonaro tem nas polícias militares e nas forças armadas. A intensa e ilegal participação de militares na vida política nacional e as sucessivas chacinas em comunidades populares – entre outras questões – tornam imprescindível colocar o tema da segurança, das polícias e das forças armadas no centro do debate político.

10 – Devemos atuar para que a Proposta de Emenda à Constituição nº 51 de 2013 seja desarquivada no Senado Federal. As polícias precisam ter carreiras únicas, integradas, com valores democráticos e desmilitarizadas.

11 – O Partido dos Trabalhadores foi criado em 1980, quando a ditadura instalada pelo golpe militar de 1964 estava vivendo seus últimos momentos. Até 1989, quando ocorreu a primeira eleição presidencial direta desde 1960, nosso Partido esteve na linha de frente de todas as lutas democráticas. Na Constituinte, por exemplo, combatemos a tutela militar estabelecida pelo artigo 142, assim como combatemos outros dispositivos que compunham o chamado entulho ditatorial, a exemplo da Lei de Segurança Nacional.

12 – O Partido dos Trabalhadores governou o Brasil entre 2003 e 2016. As gestões Lula e Dilma investiram nas Forças Armadas e mantiveram um relacionamento respeitoso e profissional com seus comandantes e com o conjunto das tropas.

13 – Os exemplos citados nos parágrafos anteriores servem para exemplificar a posição do Partido dos Trabalhadores: o Brasil necessita de forças armadas à serviço da defesa nacional, totalmente subordinadas ao poder civil e integralmente respeitosas da democracia e dos direitos humanos.

14 – O governo Bolsonaro representa o oposto disto: defende forças armadas subordinadas ao Comando Sul dos Estados Unidos, tutelando o poder civil, desrespeitando a democracia e os direitos humanos.

15 – A atual cúpula das forças armadas é cúmplice desta conduta do governo Bolsonaro. Não há como separar as FFAA da catástrofe que é o governo Bolsonaro. Transformaram-se em peça fundamental desde o apoio ao golpe contra a presidente Dilma, à prisão do Lula e construção da candidatura do atual governante. Mais do que participar do governo, avalizam e conduzem as diretrizes políticas e orientações governamentais, aceitam o programa neoliberal de ajuste fiscal, que envolve a eliminação de direitos e privatizações, a supremacia do capital financeiro e submissão à hegemonia americana. Estão comprometidas na imagem e no conteúdo com o desastre em curso em nosso país; alguns de seus líderes aderiram aos valores obscurantistas, outros silenciam diante deste desgaste da instituição.

16 – As FFAA são uma força importante de governo Bolsonaro, ocupando cargos, exercendo funções chaves e definindo orientações. Exercem uma tutela velada e aberta, garantindo os privilégios corporativos e ocupando

de maneira autônoma funções no Estado. Ora aparecem mais “ajuizadas” nas formas de governar, ora assumem posições conservadoras nos assuntos relacionados ao meio-ambiente, educação, racismo, defesa dos indígenas e aos direitos individuais (mulheres, LGBTQ+, etc).

17 – Temas que antes não uniam os militares, como a hegemonia americana e o papel do Estado, hoje os unificam política e ideologicamente na defesa do programa neoliberal. Portanto, a relação das forças armadas com o governo Bolsonaro é mais do que simples apoio: existe hoje em dia uma identidade ideológica e política nas questões de Estado, mesmo aparecendo divergências de algumas personalidades na forma de governar.

18 – A partir da crise internacional de 2008, da redefinição geopolítica dos Estados Unidos, da disputa de mercados, recursos naturais, da espionagem, inclusive contra o Brasil, e da guerra “contra a corrupção”, construiu-se uma influência através da CIA, ANS, FBI e Departamento de Justiça, uma espécie de “guerra híbrida” objetivando construir a política “América para os americanos”. Fortaleceram-se os laços históricos que vêm da Guerra Fria, das operações durante o período da Ditadura Militar e da submissão vassala aos EUA.

19 – A relação entre o governo Bolsonaro e as forças armadas possui meandros específicos, já que as FFAA preservam sua autonomia em relação ao poder político e, também, em relação às instituições estatais. São parceiras orgânicas nos assuntos governamentais e se necessário exercem o poder tutelar. Os militares da reserva e da ativa agem como se fossem um corpo só, muitas vezes nem as formalidades são preservadas. A politização entra nos quartéis, os militares dão aparência de normalidade enquanto passam a “boiada”; eles têm unidade nas questões programáticas e no combate à esquerda.

20 – O desastre no enfrentamento da pandemia, o agravamento da crise econômica e social, o isolamento internacional do Brasil, a degradação institucional, o desastre administrativo e a crise ambiental, o negacionismo fundamentalista e o incentivo aos valores neofascistas atingem a própria imagem das FFAA como instituição. A destruição aniquiladora das potencialidades do Brasil no plano regional e internacional atingem a autoestima e a confiança do país na relação com governos, instituições multilaterais e opinião pública internacional.

21 – Um outro exemplo deste desastre é a negação da política cultural, a eliminação das instituições de apoio e fomento à cultura e a perda das grandes potencialidades do Brasil neste terreno. No plano interno as FFAA avançam na ocupação de órgãos públicos, de fiscalização e controle, mudando regras, eliminando instituições e ocupando espaços do poder político civil. A defesa do governo, da política da Ditadura Militar, da tortura e dos torturadores visa legitimar e resgatar os 21 anos do período ditatorial e aplicar uma política autoritária, buscando criar uma hegemonia destes valores antidemocráticos.

22 – A “lei e ordem” é uma orientação de Estado que busca preservar uma das características das FFAA ao longo da nossa história. Das sete constituições brasileiras, apenas duas não falam deste princípio que está hoje na Constituição de 1988, no artigo 142. Esse conceito político serve para institucionalizar a intervenção nas questões de segurança pública, na tutela sobre os poderes da República e para normalizar uma supremacia sobre os demais poderes.

23 – Essa visão doutrinária está presente na história militar do Brasil, principalmente a partir da proclamação da República de 1889. Nos tempos atuais esse conceito atende às exigências do modelo neoliberal, contra a democracia e os direitos, viabilizando as reformas econômicas que interessam ao Capital, criminalizando a política e assim chegando a vedar as alternativas de esquerda. Esse modelo antidemocrático reproduz no Brasil a influência da direita internacional na reestruturação do capitalismo e nos novos parâmetros da geopolítica global. Por outro lado, é em nome dessa política que os militares defendem uma espécie de revanchismo em relação às experiências democráticas da transição política, da Nova República, da Constituição de 1988, do governo FHC e dos governos Lula e Dilma.

24 – A atualização desta política está sendo decisiva para viabilizar o processo de construção de um autoritarismo conservador e de conivência com as manifestações neofascistas e milicianas, influenciando a pauta fundamentalista contra os direitos das mulheres, dos negros e das negras, da comunidade LGBTQ+ e das populações originárias.

25 – Ao longo da nossa história, nas crises políticas do século XX, as FFAA exerceram um intervencionismo político em nome de uma ordem genérica que serve para tudo; na verdade, servem para defender o status quo e invariavelmente se associarem com os interesses das classes dominantes. Este elemento, constitutivo na formação do Estado brasileiro, tem que ser enfrentado a partir de uma visão radicalmente democrática na organização do Estado de direito. Sem isso, mesmo nos momentos de democracia liberal, como de 1946 a 1964 e de 1989 a 2016, o regime democrático fica como algo inconcluso.

26 – Na oposição sistêmica ao governo Bolsonaro, às suas políticas e seus apoiadores, é necessário enfrentar, além do lawfare do sistema de justiça e do monopólio midiático, a tutela política das FFAA como parte integrante do consórcio oligárquico burguês do Estado brasileiro. A situação política, a avaliação do atual governo e o seu fim, têm relação direta com as mudanças democráticas e estratégicas no papel das FFAA com desdobramentos inevitáveis nas suas funções constitucionais e na mudança das questões propriamente militares. Pouco adiantam mudanças cosméticas como já ocorreram no passado.

27 – Os compromissos são mais profundos do que aparentam, os vínculos nasceram na campanha, na montagem do atual governo e na viabilização de suas políticas. Não podemos ter ilusão em manifestações individuais de integrantes das FFAA, já que a instituição está se comprometendo com decisões políticas, o que terá consequências profundas, negativas ou positivas, no desenlace do atual momento político. Nesse tipo de abordagem a democracia é primordial na condução das mudanças políticas e constitucionais, inclusive nas questões especificamente militares.

28 – A negação de uma geopolítica de cooperação regional na América do Sul, baseada no apoio mútuo e sem conflitos antagônicos, é fundamental para viabilizar as ações complementares numa região estratégica do ponto de vista de recursos naturais, de aspectos geográficos e de mercado. Não podemos perder o protagonismo e nos tornarmos insignificantes no cenário mundial, isso algo inimaginável e ultrapassa todos os limites do razoável; a perda de protagonismo regional trará prejuízos para o que representamos como nação soberana. Portanto é inaceitável a condição de submissão e vassalagem perante os Estados Unidos, já que a política nacional de Defesa deve orientar-se para a boa relação entre a política externa Sul-Sul e a diplomacia militar. Isto é, uma política externa “ativa e altiva”.

29 – A política nacional de defesa adotada durante os governos petistas tinha os seguintes objetivos:

I. Garantir a soberania, o patrimônio nacional e a integridade territorial;
II. Defender os interesses nacionais, as pessoas, os bens e os recursos brasileiros no exterior;
III. Contribuir para a preservação da coesão e unidade nacionais;
IV. Contribuir para a estabilidade regional;
V. Contribuir para a manutenção da paz e da segurança internacionais;
VI. Intensificar a projeção do Brasil no concerto das nações e sua maior inserção em processos decisórios internacionais;
VII. Manter as Forças Armadas aprestadas, modernas e integradas, com crescente profissionalização, operando de forma conjunta e adequadamente desdobradas no território nacional;
VIII. Conscientizar a sociedade brasileira da importância dos assuntos de Defesa do país;
IX. Desenvolver a Base Industrial de Defesa Nacional, orientada para o desenvolvimento e consequente autonomia em tecnologias indispensáveis;
X. Estruturar as Forças Armadas em torno de capacidades, dotando-as de pessoal e material compatíveis com os planejamentos estratégicos e operacionais;
XI. Desenvolver o potencial de logística de defesa e de mobilização nacional (BRASIL. Ministério da Defesa. Política Nacional de Defesa e Estratégia Nacional de Defesa. Brasília, 2012. Disponível em:
<https://www.gov.br/defesa/pt-br/assuntos/copy_of_estado-e-defe- sa/pnd_end_congresso_.pdf> Acesso em janeiro de 2021;).

30 – Estas definições estratégicas não foram acompanhadas de mudanças estruturais na organização estatal, entre as quais as orientações para as FFAA. Predominou em alguns momentos uma visão burocrática e rotineira no tratamento dos comandos militares e no próprio Ministério da Defesa. Não alteramos padrões e normas de funcionamento na área da formação e da inteligência militar.

31 – A Comissão Nacional da Verdade deveria ter se instaurado no primeiro mandato Lula e deveríamos ter construído uma orientação política para que os militares admitissem a prática de terrorismo de Estado e assumissem uma reparação pública perante a sociedade. Ao invés disso, a lei de Anistia foi convalidada pelo Supremo Tribunal Federal, o crime de tortura não foi considerado imprescritível e predominou o conceito de Anistia recíproca.

32 – No 6º Congresso do PT (2017), aprovamos uma resolução que dizia o seguinte: “Esse processo de democratização inclui o fortalecimento e a reformulação do papel das Forças Armadas, com sua dedicação exclusiva à defesa nacional e a programas de integração territorial. Também são imprescindíveis a aplicação das recomendações prescritas pela Comissão Nacional da Verdade acerca dos direitos humanos e a alteração dos currículos das escolas de oficiais, expurgando valores antinacionais e antidemocráticos como o elogio ao golpe de 1964 e ao regime militar que então se estabeleceu”.

33 – Se é verdade que a Comissão Nacional da Verdade não foi capaz de construir a posição política de que houve a prática de terrorismo de Estado pelos militares no período da Ditadura Militar, e de reparação perante a sociedade dos crimes contra os direitos humanos, é também verdade que pela primeira vez na história política brasileira o Estado promoveu um levantamento minucioso e detalhado sobre uma experiência histórica e os crimes de Estado.

34 – É fundamental, no que diz respeito à formação doutrinária dos militares, modernizar os conceitos de Defesa nacional, romper com a visão binária “amigo e inimigo” e enfrentar com uma política dissuasória as nossas vulnerabilidades pelo mar, pelo espaço e no campo cibernético. Esta é uma política dissuasória, que não tem nada a ver com o conceito de inimigo interno e de atividades de garantia da lei e da ordem.

35 – As diretrizes da Estratégia Nacional de Defesa elaborada no Governo Lula definiram claramente os novos desafios, e mesmo que tenham sido só aceitas e não assimiladas pelos militares, seguem sendo um excelente ponto de partida. Destacamos as seguintes diretrizes:

I. Dissuadir a concentração de forças hostis nas fronteiras terrestres e nos limites das águas jurisdicionais brasileiras, e impedir-lhes o uso do espaço aéreo nacional. Para dissuadir, é preciso estar preparado para combater. A tecnologia, por mais avançada que seja, jamais será alternativa ao combate. Será sempre instrumento do combate;

II. Organizar as Forças Armadas sob a égide do trinômio monitoramento/ controle/mobilidade e presença. Esse triplo imperativo vale, com as adaptações cabíveis, para cada Força. Do trinômio resulta a definição das capacitações operacionais de cada uma das Forças;

III. Desenvolver as capacidades de monitorar e controlar o espaço aéreo, o território e as águas jurisdicionais brasileiras. Tal desenvolvimento dar-se- á a partir da utilização de tecnologias de monitoramento terrestre, marítimo, aéreo e espacial que estejam sob inteiro e incondicional domínio nacional;

IV. Desenvolver, lastreada na capacidade de monitorar/controlar, a capacidade de responder prontamente a qualquer ameaça ou agressão: a mobilidade estratégica. A mobilidade estratégica – entendida como a aptidão para se chegar rapidamente à região em conflito – reforçada pela mobilidade tática – entendida como a aptidão para se mover dentro daquela região – é o complemento prioritário do monitoramento/controle e uma das bases do poder de combate, exigindo das Forças Armadas ação que, mais do que conjunta, seja unificada. O imperativo de mobilidade ganha importância decisiva, dadas a vastidão do espaço a defender e a escassez dos meios para defendê-lo. O esforço de presença, sobretudo ao longo das fronteiras terrestres e nas partes mais estratégicas do litoral, tem limitações intrínsecas. É a mobilidade que permitirá superar o efeito prejudicial de tais limitações;

V. Aprofundar o vínculo entre os aspectos tecnológicos e os operacionais da mobilidade, sob a disciplina de objetivos bem definidos. Mobilidade depende de meios terrestres, marítimos e aéreos apropriados e da maneira de combiná-los. Depende, também, de capacitações operacionais que permitam aproveitar ao máximo o potencial das tecnologias do movimento. O vínculo entre os aspectos tecnológicos e operacionais da mobilidade há de se realizar de maneira a alcançar objetivos bem definidos. Entre esses objetivos, há um que guarda relação especialmente próxima com a mobilidade: a capacidade de alternar a concentração e a desconcentração de forças, com o propósito de dissuadir e combater a ameaça;

VI. Fortalecer três setores de importância estratégica: o espacial, o cibernético e o nuclear. Esse fortalecimento assegurará o atendimento ao conceito de flexibilidade. Como decorrência de sua própria natureza, esses setores transcendem a divisão entre desenvolvimento e defesa, entre o civil e o militar. Os setores espacial e cibernético permitirão, em conjunto, que a capacidade de visualizar o próprio país não dependa de tecnologia estrangeira e que as três Forças, em conjunto, possam atuar em rede, instruídas por monitoramento que se faça também a partir do espaço. O Brasil tem compromisso – decorrente da Constituição e da adesão a Tratados Internacionais – com o uso estritamente pacífico da energia nuclear. Entretanto, ao tempo que afirma a necessidade estratégica de desenvolver e dominar essa tecnologia. O Brasil precisa garantir o equilíbrio e a versatilidade da sua matriz energética e avançar em áreas, tais como as de agricultura e saúde, que podem se beneficiar da tecnologia de energia nuclear. E levar a cabo, entre outras iniciativas que exigem independência tecnológica em matéria de energia nuclear, o projeto do submarino de propulsão nuclear;

VII. Unificar e desenvolver as operações conjuntas das três Forças, muito além dos limites impostos pelos protocolos de exercícios conjuntos. Os instrumentos principais dessa unificação serão o Ministério da Defesa e o Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas. Devem ganhar dimensão maior e responsabilidades mais abrangentes. O Ministro da Defesa exercerá, na plenitude, todos os poderes de direção das Forças Armadas que a Constituição e as leis não reservarem, expressamente, ao presidente da República. A subordinação das Forças Armadas ao poder político constitucional é pressuposto do regi-me republicano e garantia da integridade da nação. (BRASIL. Ministério da Defesa. Política Nacional de Defesa e Estratégia Nacional de Defesa. Brasília, 2012. Disponível em:
<https://www.gov.br/defesa/pt-br/assuntos/copy_of_estado-e-defe- sa/pnd_end_congresso_.pdf> Acesso em janeiro de 2021;)

36 – A luta pela democracia exige o enfrentamento da questão das FFAA na relação com o Estado e a sociedade. Devemos levar em conta as experiências insuficientes, limitadas no tratamento deste tema, inclusive quando governamos o país. Esta tarefa exige compreensão, definições claras e capacidade política de enfrentar os desafios e os dilemas históricos de nosso país.

37 – A mudança do artigo 142 (da GLO) da Constituição é um ponto importante da luta democrática. O conceito de “lei e ordem” serve a uma política de segurança e não de Defesa nacional. Ao mesmo tempo, o próprio artigo 142 dá margem a um exclusivismo ideologizado do conceito que se faz de pátria para justificar o intervencionismo político e não deixa clara a relação com os demais poderes constitucionais.

38 – Defendemos a extinção do sistema de justiça militar, objetivando diminuir o corporativismo e a impunidade. Outra questão necessária é separar a inteligência propriamente militar da inteligência de governo; temos que evitar o poder paralelo deste sistema que acaba corroendo o Estado democrático de direito.

39 – Defendemos a desmilitarização da segurança pública; ao lado da reforma na segurança pública dos estados, propomos a criação da guarda nacional vinculada ao Ministério da Justiça, com atuação nas áreas sensíveis do crime organizado e das forças milicianas, no setor portuário e nas fronteiras.

40 – Os integrantes das carreiras de Estado, entre as quais os militares, devem se afastar das funções públicas e políticas observando o princípio da “quarentena” (intervalo entre estas funções), com base no princípio do ônus e do bônus: quem tem a prerrogativa de prender, investigar, julgar, denunciar e de exercer o monopólio das armas, precisa assumir o ônus nas escolhas de outras funções.

41 – O enfrentamento estratégico da luta democrática na forma e no conteúdo exige uma posição clara em relação ao caráter autoritário do Estado brasileiro, que se manifestou em todas as crises políticas com soluções arbitrárias e golpistas; é neste sentido que defendemos mudanças estruturais nas instituições políticas, entre as quais o papel das FFAA nas suas relações com a sociedade e com Estado e o governo.

42 – Poucas vezes a questão democrática foi tratada com radicalidade na oposição ao consórcio oligárquico-burguês, por isso não devemos isolar as bandeiras específicas da luta democrática deste foco estratégico. O desafio do PT e das esquerdas é fundir as bandeiras da luta democrática com uma visão programática por novas instituições políticas, o que deve ser considerado na discussão – já realizada pelo PT – acerca da necessidade de uma Assembleia Nacional Constituinte.

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