Nota da Articulação de Esquerda sobre a postura equivocada da direção estadual quanto à prefeita Marília Campos
Introdução
A militância petista em Minas Gerais assistiu recentemente a uma série de polêmicas e debates públicos, expostos em meios de comunicação da mídia corporativa, que expuseram negativamente importantes militantes e dirigentes do Partido no Estado, incluindo ataques proferidos pela direção estadual contra a prefeita Marília Campos.
Nós, da Articulação de Esquerda no estado, repudiamos à forma como a Direção estadual do PT se dirigiu publicamente à companheira Marília Campos e discordamos de como os debates (não) têm sido realizados, pois acabam gerando uma lógica fratricida entre companheiros, fruto de um contexto no qual o debate e a tomada de decisões internas do Partido são cada vez mais restritos aos mandatos parlamentares e seus ciclos de disputa.
A partir de um debate qualificado e sem a fulanização, escrevemos esta nota que busca refletir sobre o atual estado de coisas em Minas Gerais, enfatizando dois aspectos fundamentais: a direção do partido e o programa que precisamos reivindicar em seus municípios, especialmente em ano de eleições municipais.
O estilo de direção do PT ontem e hoje
O Partido dos Trabalhadores é, do ponto de vista nacional, a força política que possui a maior simpatia dentre todos os partidos políticos brasileiros. Em pesquisa recentemente publicada pela Atlas, o PT conta com o apoio de aproximadamente um terço do povo brasileiro. Ao mesmo tempo, é a força política que conta com a maior adesão preferencial entre a população mais pobre[1].
Este legado é fruto de uma longa jornada política que contou com uma militância aguerrida e enraizada nas cidades e movimentos sociais, administrações e mandatos petistas nas cidades, e a governança em defesa dos trabalhadores brasileiros durante os governos Lula e Dilma. Colocar três refeições diárias na mesa das famílias, valorizar o salário mínimo, garantir luz ao Brasil profundo e entregar um programa de habitação que não ocorria desde a ditadura militar sintetizam algumas ações fundamentais que balizam este apoio popular. Não à toa é nos rincões do Norte de Minas Gerais e do sertão nordestino que os trabalhadores depositam em nós a sua esperança por dias melhores. Foram esses mesmos trabalhadores que deram as condições para a subida de Lula na rampa do Palácio do Planalto no dia 01/01/2023.
Um legado desta natureza também só foi possível porque existia, na ponta, um destacamento avançado de prefeituras capazes de consolidar um “estilo petista de governar”. Os anos 1990 foram marcados por esse crescimento e criaram as condições objetivas da vitória de Lula em 2002 e 2006. Tanto foi assim que muitos ainda se lembram do governo de Patrus Ananias frente à Prefeitura de Belo Horizonte, entre 1993 e 1997, gerando um legado virtuoso do campo progressista com seu sucessor, Célio de Castro.
Contagem compõe esse importante quadro de prefeituras que possibilitou a consolidação do estilo petista de governar. A prefeita Marília Campos fez e faz parte do grande legado municipalista das conquistas populares através de governos do PT. Quando não esteve à frente da prefeitura, se manteve firme enquanto Deputada Estadual na defesa dos direitos sociais e nos embates mais duros contra a reforma da previdência durante o governo golpista de Michel Temer. Hoje, Contagem é a maior cidade governada pelo PT em Minas Gerais e no Brasi[2] e sua administração é aprovada por mais de 70% da sua população.
Portanto, nos causa surpresa o tom utilizado pelo presidente do Partido dos Trabalhadores em Minas Gerais, o deputado Cristiano Silveira, que visa desqualificar a prefeita Marília Campos, tratando-a como um corpo estranho ao PT, em uma entrevista concedida ao jornal Estado de Minas. A trajetória de Marília é indiscutivelmente vinculada às lutas sociais e ambientais no combate aos privilégios do nosso Estado, sendo o projeto por ela liderado uma referência na defesa do Estado Social no país.
Seu atual governo, que conta com expressiva aprovação popular e possui papel central para a resistência petista num estado governado pela extrema-direita[3] deveria ser considerado um patrimônio do partido no estado, bem como a experiência da Prefeita Margarida Salomão em Juiz de Fora. Em período de recuo da nossa presença nas cidades, as experiências em curso em Contagem e Juiz de Fora deveriam ser valorizadas e apoiadas pelo partido e seus parlamentares, e não o contrário.
Consideramos inapropriada e desrespeitosa a forma com a qual o presidente do PT mineiro trata a companheira Marília, chamando-a de “desinformada”. Isso não contribui para o necessário debate sobre temas centrais para nosso Estado, além de enfraquecer a coesão interna do partido e expor contradições que deveriam ser tratadas nas suas instâncias deliberativas e nos debates junto à sua militância. Tais afirmações são nocivas e inoportunas, ainda mais considerando o cenário pré-eleitoral no qual Marília se apresenta com amplas condições de conquistar sua reeleição no pleito em Contagem. A quem interessa enfraquecer uma liderança que governa a maior cidade do PT no Brasil?
Estamos a seis meses do pleito eleitoral municipal, e o que deveria estar em debate pela direção partidária, a nível estadual, é a sua estratégia para consolidar um arranjo de forças que consiga garantir a reeleição de seus governos e concretizar um aumento do número de prefeituras em Minas Gerais. Atualmente, as cidades de Contagem e Juiz de Fora, que representam cerca de 6% da população do Estado, são os principais municípios de Minas administrados pelo PT. Portanto, suas administrações e lideranças deveriam ser fortalecidas e não atacadas. Sem as priorizações dos debates nestes municípios, conseguiríamos ao menos chegar aos tais 28% da população em número de cidades governadas? Ou estaríamos ainda presos a um estilo de direção com pouca capacidade de acúmulo desta natureza?
A direção do PT de Minas e os resultados eleitorais
Durante o segundo turno das eleições de 2022, a militância petista mineira se assustou com o recuo do nosso desempenho eleitoral no estado-chave do país para a vitória de Lula. Sabemos que as eleições de 2022 foram marcadas por todos os tipos de coações possíveis, dentre elas os trancamentos ilegais de rodovias, impedindo eleitores de diversas regiões do país a circularem livremente para exercerem o seu direito ao voto. Também é notório que o bolsonarismo utilizou de toda sorte de compra de votos.
Entretanto, nosso desempenho também foi fruto das escolhas e táticas eleitorais da atual direção estadual. Afinal, de 853 cidades, o Partido só conseguiu eleger prefeituras em 28 cidades, um rendimento muito aquém do seu potencial[4]. Conforme perguntamos no tópico anterior, e para além dos elementos aqui destacados, o que nos fez ter tantas derrotas nos municípios?
Certamente, é impossível não levar em consideração o aspecto programático no que diz respeito ao estilo de direção. Por um lado, um caminho para a resposta da pergunta feita seria alertar o que muitos dos nossos militantes já disseram e alertam: o PT deixou de viver o cotidiano das maiorias batalhadoras, perdendo sua aderência e vínculo mais intenso com as lutas contemporâneas. As drásticas transformações do mundo do trabalho não foram por nós acompanhadas, assim como as profundas transformações ocasionadas pelo desenvolvimento do universo digital e a interação humana pelas tecnologias de informação e comunicação. Nos afastamos da vida do povo e de suas vivências nas cidades.
Esse foi o chamado do próprio presidente Lula na celebração dos 44 anos do PT[5]: a retomada da vida orgânica da militância e suas lideranças junto à vida do povo. Portanto, é preciso retificar nossos erros e repensar um estilo de direção que crie uma face “petista de governar” que reivindique as suas raízes, ou seja, que tenha uma alma combativa, organizativa e vinculada às maiorias batalhadoras no seu cotidiano. Para isso, é necessário se adequar aos desafios do século XXI, ou seja, pensar o porvir da organização por meios digitais, adotando um método de trabalho que combine a ação nas ruas e nas redes.
Temos problemas de organização interna no que diz respeito aos fóruns de discussão. Pouco se avançou desde 2019 sobre essa matéria, gerando sintomas de desmobilização e insatisfações generalizadas entre nossos militantes e dirigentes. O Partido e seu processo de “emedebização” dos anos 1980, ou seja, de constituição de arquipélagos de mandatos espalhados pelo estado, que ficam auto-circunscritos e autossuficientes, precisa ser imediatamente repensado no estado de Minas Gerais.
A importância de Marília Campos para a construção da municipalidade
Outro aspecto central diz respeito à questão programática. Também não é nenhuma novidade a crise civilizatória em que estamos envolvidos quando o assunto é pensar e construir novos horizontes de expectativa. Se no final dos anos 70 e 80 falar a palavra socialismo era a possibilidade de unidade semântica para um conjunto da militância, hoje, certamente, sentimos uma carência de orientação no sentido de refletir e repensar o horizonte estratégico do PT como um todo.
Esta carência de orientação reverbera na forma como conduzimos nossa tática, ou melhor, como implementamos na prática nossas reformas materializadas em políticas públicas que possam garantir uma prosperidade coletiva alcançável para as maiorias batalhadoras do PT em Minas Gerais.
A nosso ver, existem reformas que são de baixa ou alta temperatura. Certamente, para aqueles que se identificam com a alma petista dos anos 80[6] e procuram fazer do Partido um instrumento de combate ao fascismo, de reformas estruturais que impulsionem o desenvolvimento nacional e garantam o sucesso do campo democrático-popular, o reformismo de alta temperatura deve estar no horizonte. Como bem ressalta José Genoíno, é preciso combinar a distribuição da renda com uma série de medidas que consolidem uma distribuição da riqueza nacional produzida pelo conjunto da classe trabalhadora brasileira[7].
É preciso tocar em temas onde a “chinela canta” quando o assunto é a luta de classes na vida orgânica dos municípios. Dentre eles, como deve ser organizada a propriedade habitacional nas pequenas, médias e grandes cidades. Significa recuperar uma plataforma de reforma urbana na prática. Nesse sentido, é preciso que nós falemos aos quatro cantos, durante este processo eleitoral, para todas as cidades de Minas Gerais onde tivermos candidatos, sobre o programa Casa Minha, feito em Contagem. Trata-se de um programa de regularização fundiária que irá garantir moradia para cerca de 60 mil contagenses e 13 mil famílias. Os números impressionam. Do ponto de vista comparativo, Marília Campos faz um programa de regularização fundiária semelhante em termos de tamanho àquele feito por Leonel Brizola quando governou o estado do Rio de Janeiro. Seu programa atendeu cerca de 13.604 títulos de propriedade para a população mais carente da capital fluminense[8].
Além disso, não podemos deixar de mencionar a batalha travada pela prefeita Marília durante o debate sobre a destinação das verbas do ICMS Educação em Minas Gerais. Mesmo Contagem apresentando um dos maiores pisos do magistério do país[9] e tendo uma quantidade elevada de estudantes matriculados em suas escolas, o ICMS Educação não considerou tal quesito como critério fundamental. Aprovado inclusive com as bênçãos do bloco parlamentar progressista da Assembleia Legislativa, a fórmula aprovada propõe uma inversão onde pequenas cidades receberão grandes volumes de recursos, enquanto as grandes cidades serão punidas por terem muitos matriculados. Nas palavras da prefeita Margarida Salomão, mesmo que nossa bancada petista tenha aprovado o ICMS Educação na melhor das intenções, o texto atual foi considerado um “desastre” para a gestão educacional nos grandes municípios.[10]
O desastre do ICMS Educação mostra como é preciso recompor uma comunicação interna entre parlamentares e gestores das cidades petistas em Minas Gerais, buscando consolidar uma sintonia fina entre esses atores. Não podemos nos dar o luxo de batermos cabeça na formulação de propostas. Consequentemente, para isso, é necessário superar uma concepção de “emedebização” do Partido e a lógica dos arquipélagos de mandatos que se comunicam somente em ambientes formais de disputa eleitoral das direções.
Considerações finais
É com o intuito de buscar a retificação das ideias e práticas incorretas presentes no seio do nosso Partido que nós, da Articulação de Esquerda em Minas Gerais, procuramos tomar uma posição condizente com os desafios colocados atualmente no estado.
É preciso reenergizar o PT e tratá-lo não como uma soma de arquipélagos de mandatos, e sim como um continente em unidade de fluxo contínuo que promove o debate respeitoso de ideias e busca acumular forças para eleger prefeituras, melhorar significativamente o seu desempenho no estado e, consequentemente, ampliar um programa reformista forte e de alta temperatura.
Precisamos atingir, consolidar e concretizar um número de prefeituras que atenda minimamente à média da preferência do eleitorado nacional, conforme apontado nas pesquisas. Para isso, nossa direção precisa se desarmar e parar com os ataques pessoais à prefeita que dirige a maior cidade governada pelo PT no Brasil e que disputa uma reeleição. Até porque, as críticas levantadas pela companheira Marília Campos se referem ao conjunto do Partido, e um Partido que não está aberto à posicionamentos críticos e reflexivos não tem condições de responder à altura os desafios do nosso tempo.
A militância do PT em Minas Gerais precisa de fóruns respeitosos de debate interno. É necessário garantir a proteção dos nossos companheiros. Desqualificar lideranças históricas e com grande legado para o nosso partido não nos levará a lugar nenhum. Pelo contrário. Com ataques dessa ordem, nosso Partido será um prato cheio para a extrema-direita. Retomemos o debate político e deixemos de lado as mesquinharias pessoais. Minas Gerais é grande demais e merece o devido desenho programático, tático e estratégico para o PT.
Sigamos juntos em unidade por um PT com a cara e a coragem dos batalhadores brasileiros do século XXI!
Belo Horizonte, 31 de março de 2024
Direção Estadual da Articulação de Esquerda em Minas Gerais
[1]https://www.cartacapital.com.br/politica/pt-lidera-o-ranking-de-preferencia-partidaria-aponta-pesquisa-atlas-confira-a-lista/
[2] https://brasil.elpais.com/brasil/2020-11-30/pt-nao-conquista-nenhuma-capital-pela-primeira-vez-desde-1985-e-volta-ao-tamanho-pre-lula.html
[3] https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2020/11/17/mdb-e-o-partido-com-mais-prefeitos-eleitos-em-minas.ghtml
[4] https://www.otempo.com.br/hotsites/eleicoes-2020/psd-dem-e-pt-irao-governar-maior-numero-de-habitantes-em-minas-gerais-1.2419212
[5] https://www.cartacapital.com.br/politica/nos-44-anos-do-pt-lula-defende-retorno-as-raizes-e-presenca-nas-ruas-e-nas-redes/
[6] É impossível não citarmos a importante descrição de André Singer sobre as diferentes almas petistas. Para maiores informações, ver: SINGER, André. Os sentidos do lulismo.
[7] https://jacobin.com.br/2021/02/se-a-esquerda-nao-tiver-uma-plataforma-democratica-popular-e-socialista-ela-vai-ser-confundida-com-a-direita/
[8] Para maiores informações, ver Compans, Rose. A regularização fundiária de favelas no Estado do Rio de Janeiro. Revista Rio de Janeiro, n. 9, p. 41-53, jan./abr. 2003.
[9] Ver: https://www.zeprataeivanir.com.br/jose-prata-os-legados-de-marilia-dos-tres-governos-dela/. Acesso em 31/03/2024.
[10] https://www.otempo.com.br/politica/distribuicao-do-icms-da-educacao-e-um-desastre-completo-diz-margarida-salomao-1.3323346