Por Valter Pomar (*)
Roberto Requião
Numa reunião recente, de avaliação do ato de lançamento do plano de reconstrução e transformação do Brasil, um importante dirigente do Partido disse que em política existem situação, oposição e Requião.
Lembrei da frase, ao ler o artigo assinado por Requião e divulgado há pouco no Brasil 247, artigo cujo título é “Teria o PT se transformado no Partidão?”
O referido texto está no seguinte endereço:
https://www.brasil247.com/blog/teria-o-pt-se-transformado-no-partidao
Como é curto, transcrevo na íntegra abaixo:
“No dia 21 de setembro, às vésperas da primavera (algum simbolismo?), participei também do lançamento do “Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil” proposto pelo PT. E, mais uma vez, fiquei com a sensação da incompletude, de que minha fome, voracíssima fome, por um programa revolucionário, verdadeiramente transformador para as nossas desgraças tão antigas e encrostadas, ficou na vontade de comer”.
“Ah, diriam: não é um programa, é um plano. Tipo assim a Carta aos Brasileiros, que era um plano para quebrar as resistências das elites conservadoras e vencer as eleições e que se tornou o programa dos governos do PT?”
“(Desculpem o mau jeito. Talvez devesse começar o texto elogiando os aspectos positivos do texto, que os há às pencas, para só depois fazer reparos. Mas, vamos em frente.)”
“Por exemplo, gostaria de entender se os tais pressupostos da macroeconomia, aquele trio famoso, são apenas parte de um plano ou são elementos fundantes de um programa”.
“(Ou seriam os pressupostos macroeconômicos uma entidade que paira acima das terrenas disputas político-ideológicas, etérea e intocada lá nos céus das verdades eternas?)”
“Enfim, o que eu quero dizer é que não existe -porque nunca existiu nos governos do PT- essa distinção entre plano e programa. Uma coisa é outra coisa, e outra coisa é a primeira coisa. Tudo misturado e batido, a mesma coisa.”
“Se não tocamos nos pressupostos, esses sacralíssimos bovinos, o que nos resta, então? Se não temos uma política radical de reversão de todas! as privatizações; de recuperação de cem por cento do pré-sal; de revogação de todas as reformas e medidas lesivas aos interesses dos trabalhadores e aos interesses nacionais; se o capitalismo financeiro continuar correndo solto, sem o bridão do Estado; se não recuperarmos total e incondicionalmente a soberania nacional sobre o solo e o subsolo, sobre o ar, os mares, os rios, as florestas; se isso e muito mais, o que nos resta?”
“Resta-nos a generosidade das políticas compensatórias e identitárias. Enfim, fazer cócegas, se tanto, nas crostas insensíveis do monstro. Não mais que isso.”
“(Com tristeza d’alma e aperto no coração, vejo que é proporcional o aumento de espaço na agenda da esquerda para as políticas identitárias à diminuição do espaço para as propostas de transformação revolucionária da sociedade brasileira. E há todo um esforço, que não diria assim tão inocente, de substituir as lutas dos trabalhadores e das periferias pobres por comida, moradia, salário, saneamento, saúde, educação, segurança dignidade, por bandeiras políticas distantes das emergências de suas desgraças.)”
“Os mais jovens não se lembram, mas nós, os mais velhos e a geração dos anos 80, deveriam dar uma espiada na história, para recordar. Como surge o PT e como se forma a ala dos autênticos do MDB? Frutos do que fomos, quem emulamos, com quem litigiamos e demandamos para florescer? Com o PCB. O Partidão viu o seu quase monopólio sobre a esquerda brasileira esfarelar-se por causa de suas posições reformistas, frentistas, amplas e conciliatórias.”
“Por que descaminhos se perderam os revolucionários dos anos 80?”
“Outra coisa: um plano com 210 páginas?
“(Mais uma aproximação com o antigo Partidão, que vivia sempre o dilema de ser um partido de quadros ou um partido de massas. Um plano com 210 páginas é para um partido de quadros. É isso, então?)”
“Desculpem-me a sinceridade, mas redigi este texto com a mesma franqueza com que o Papa Francisco combate o domínio absoluto do capital financeiro sobre a humanidade. O longo, o longuíssimo texto do Plano não transmitiu ao povo brasileiro aquele sentimento de esperança e de mudança imprescindível, conditio sine qua, para insufla-lo.”
“O que haverá de mobilizar os brasileiros, os trabalhadores, os assalariados de todas as classes, as massas pobres e deserdadas da cidade e do campo, as cada vez mais empobrecidas camadas médias se não fortes, peremptórios e sinceros acenos de mudança?”
“Amigos, companheiros, camaradas são as minhas aflições. Relevem as amarguras e as angústias deste velho companheiro. Mas, pensem no que ele disse”.
Ao ler este texto, eu fico me perguntando: a que ponto nós chegamos?
Afinal, não é de hoje que o PT recebe este tipo de crítica, vinda de partidos (real ou nominalmente) à nossa esquerda.
Mas é, digamos, um pouco impactante ler tudo isso, vindo de alguém que passou os últimos 40 anos no PMDB-MDB, convivendo com Sarney, com Temer e outros de igual quilate.
(Aliás, recordo de uma visita que fiz ao então governador Requião, acompanhando uma delegação do Departamento América do PC cubano. Com o mesmo estilo sincero, o anfitrião reclamou de-não-sei-o-quê do PT e eu respondi ter certeza que ele, como peemedebista, entendia bem mais do que eu as diferenças que existem em um partido.)
Mas enfim, deixemos de lado o mensageiro e prestemos atenção na mensagem.
Igual ao que diz Requião, acho que o Plano de reconstrução e transformação tem muita coisa positiva.
A começar pelo fato de que foi lançado num momento de campanha municipal, quando muita gente tenta desvincular o local do nacional.
Ademais, demarca com o conjunto da política cavernícola, defendendo a soberania, as liberdades, os direitos e o desenvolvimento.
Uma defesa do povo e do futuro, contra aquilo que está nos levando em direção ao passado.
Agora, concordo que o plano é mais de “reconstrução”, do que de “transformação” (e isso é em si mesmo uma contradição, pois na atual situação não dá para reconstruir sem transformar).
Além disso, embora tenha colocado o legado no anexo, o plano é fortemente prisioneiro da lógica que prevaleceu em 2002 (pois de fato não defende rupturas estruturais, naquilo que é o essencial: a propriedade e o poder).
Refiro-me, por exemplo, ao que se diz e ao que não se diz acerca do setor financeiro, do agronegócio, das estatais privatizadas e sob ameaça de privatização.
Refiro-me, também, ao fato de que o plano não enfrenta o tema das forças armadas (nem ao menos repete aquilo que o partido já tem acumulado a respeito, por exemplo a mudança no artigo 142 da Constituição e as decisões da Comissão Nacional da Verdade).
Ocorre que não estamos numa situação parecida com a de 2002. Portanto, não é bom caminho repetir a lógica adotada na época ou algo parecido com ela.
Em resumo, penso que o plano apresentado ao país no último dia 21 de setembro contém um programa bem pouco desenvolvimentista e quase nada socialista (isso apesar da palavra desenvolvimento aparecer 188 vezes no texto, enquanto a palavra socialismo aparece acho que umas duas vezes).
Acontece que desenvolvimento, especialmente um desenvolvimento de novo tipo, exige um alto nível de enfrentamento com o imperialismo, com o capital financeiro, com a lógica primário-exportadora e, em particular, com o poder das classes dominantes.
E, nesse sentido, o plano deixa a desejar.
Por exemplo: quando fazemos a busca da palavra “capitalismo” no programa, descobrimos que se fala uma vez de “capitalismo de vigilância”; outra vez se diz que o capitalismo precisa de um sistema de crédito; e as restantes oito vezes se fala de “capitalismo neoliberal”.
Para bom entendedor, meia palavra basta: o objetivo do plano de reconstrução e transformação é construir no Brasil outro tipo de capitalismo.
É por isso que, no debate travado no Diretório Nacional do PT, foram derrotadas as várias propostas que defendiam explicitar, como fio organizador deste plano, a construção de um Brasil democrático, popular e socialista.
Nesse sentido, penso que Requião tem certa razão: a lógica que anima este plano é parecida com a que animava o velho Partidão.
O que Requião não leva em devida consideração, na sua crítica, é que o fantasma do partidão ronda o PT faz muito tempo.
Por exemplo, lembro que num texto escrito em dezembro de 1992, texto intitulado “Noventa e três e os próximos anos”, eu comecei dizendo o seguinte: “Um fantasma ronda o PT: o fantasma do comunismo. Não o comunismo de que falava Marx, mas sim um comunismo pragmático, eleitoreiro, reformista, típico do velho Partidão”.
Agora, trinta anos depois, pergunto: e por acaso poderia ser diferente? Seria (ou será) possível construir um partido socialista de massas no Brasil, sem conviver com as “tentações” da conciliação de classe?
Quem achava que seria possível, ou não entrou no PT, ou em algum momento saiu dele. E não me consta que tenham conseguido resultados superiores aos obtidos pelo PT, desde 1980 até agora.
Entretanto, assim como não há mal que nunca se acabe, também não há bem que sempre dure. A atual situação histórica coloca o PT diante de situações que ele nunca viveu antes. Erros antigos, aos quais sobrevivemos, agora podem ser fatais. Especialmente por isto, considero que as críticas de Requião são muito bem vindas. Embora eu realmente não consiga entender o seu, digamos, “lugar de fala”.
(*) Valter Pomar é professor da UFABC e membro do diretório nacional