Por Marcos Jakoby (*)
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A ideia de uma social-democracia renovada enquanto um projeto estratégico da esquerda e da classe trabalhadora e uma unidade democrático-republicana enquanto tática a ser adotada pelo PT, para derrotar o bolsonarismo e a extrema-direita, têm sido marcos importantes do pensamento político de Tarso Genro e daqueles que compartilham mais estreitamento de suas formulações. As suas ideias encontram significativa ressonância entre a militância da esquerda, dirigentes e intelectuais; por isso, entre outras razões, são importantes de serem examinadas. Neste texto, desenvolveremos, sobretudo, uma crítica mais localizada às suas posições no que concerne à linha política imediata.
A defesa da ordem
O ex-governador gaúcho assevera que a crise política e social em curso somente poderá ser superada “dentro da ordem”[1] liberal, de modo que os seus aspectos democráticos e suas instituições possam encontrar forças para um enfrentamento à extrema-direita. Em texto publicado recentemente, ele afirma que “tanto Berlusconi como Bolsonaro foram gerados dentro da democracia liberal, ambos destinados a sufocar seus aspectos mais vinculados aos direitos da cidadania, mas também foram ancorados na legitimação pelo mercado”[2].
Tarso, portanto, reconhece que o “mercado”, leia-se o grande capital, respalda o surgimento da extrema-direita em vários países, como alternativa política para assegurar seus interesses econômicos e estratégicos. Contudo, tem um detalhe sutil omitido por Genro: Bolsonaro foi gerado não somente dentro da democracia liberal, mas pela democracia liberal e pelas suas instituições. O que está implicado nessa afirmação? Que as “instituições democráticas e republicanas” não são neutras, que possuem um caráter de classe, embora sejam atravessadas por conflitos e contradições, e que passiva ou ativamente elas contribuíram para a ascensão da extrema-direita e do neofascismo em nosso país.
Quando examinamos concretamente o caminho que levou Bolsonaro ao governo, não foi exatamente o que ocorreu? Sabemos que Bolsonaro não foi produto exclusivo da extrema-direita, foi forjado por uma operação política e um triplo golpe que envolveu todas as forças políticas do campo da direita e contou com o engajamento ou a omissão das principais instituições do Estado brasileiro. Recordemos que, logo após o segundo turno de 2014, com a vitória da presidente Dilma, Aécio Neves e o PSDB não reconheceram a derrota e protagonizaram a luta que levou à deposição de uma presidente legítima. Era notório que se tratava de um impeachment sem crime de responsabilidade, um golpe, que, no entanto, contou com a chancela e/apoio do STF, das forças armadas, da maior parte do aparato judiciário, do legislativo e do oligopólio da mídia. Como esquecer da frase emblemática de Romero Jucá: “um grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo”.
Em seguida, viria a prisão de Lula e a sua interdição na eleição presidencial de 2018, com apoio das mesmas instituições e das mesmas forças políticas, no momento em que Lula era o primeiro colocado nas pesquisas, notoriamente a maior liderança popular, e com muitas chances de se eleger presidente. Tudo isso, num ambiente de uma luta política e ideológica ensopada em anticomunismo, do tipo mais tacanho possível, de misoginia, de racismo e de ataques violentos, inclusive físicos, à esquerda e às organizações vinculadas à classe trabalhadora, onde o PT era retratado como uma “organização criminosa” ou uma “raça a ser exterminada”.
A apologia à tortura e à ditadura militar sempre estiveram presentes nos atos coxinhas pelo impeachment, mas estes atos eram pintados como “atos da democracia” pela Rede Globo e pelos próceres das instituições republicanas brasileiras. Alkmin liberou as catracas do metrô de São Paulo, para que o reacionarismo golpista passeasse pela Avenida Paulista. As forças armadas e a sua cúpula, desde 2014, preparavam o caminho – e abriam as portas dos quartéis – para a chegada de Bolsonaro ao governo e embarcarem de mala e cuia para a administração federal.
Portanto, as instituições não só se omitiram, como tiveram um papel ativo na chegada da extrema-direita ao governo, e todos sabiam exatamente quem era Bolsonaro e o que ele representava. Mas, para as classes dominantes, que controlam esses aparatos de poder, o mais importante era impedir uma vitória da esquerda e assegurar que a “Ponte da Destruição” seguisse o seu curso. Por isso, diferentemente de Tarso, como veremos mais adiante, não compartilho da crença de que o pleno funcionamento das “instituições” assegure a democracia e as liberdades democráticas. É necessário disputar a hegemonia com as classes dominantes nessas mesmas instituições, o que implica em reformas e mudanças estruturais das mesmas. Do contrário, em casos de crise política aguda, elas funcionarão muito bem, mas contra o povo e contra a democracia.
Parte da direita e dessas instituições imaginavam que iriam manter Bolsonaro dentro de certos limites que lhes interessavam, não conseguiram, o que gerou muito desgaste ao governo e crises. A radicalização política do bolsonarismo, de um lado, foi importante para a mobilização da extrema-direita e para o avanço do programa ultraliberal e reacionário no país, mas, por outro lado, gerou uma insatisfação grande na sociedade que pode levar a esquerda de volta ao governo.
Esse movimento e essa divisão nas classes dominantes deslocaram uma parcela da direita e das instituições à oposição formal ao governo Bolsonaro, embora mantivessem o apoio ao programa ultraliberal. Aliás, é bom sublinhar, a principal razão que faz com que parte dessa direita passe à oposição é justamente a ideia de que um governo sem Bolsonaro possa ser mais capaz de acelerar as reformas neoliberais, partindo de uma leitura de que Bolsonaro e seu núcleo político geram crises desnecessárias.
Parte da esquerda e das forças democráticas fizeram uma leitura de que, entre estes setores da direita, poderia haver um compromisso de combate ao neofascismo e ao autoritarismo. O mesmo STF, que respaldou o golpe contra Dilma, prendeu Lula para tirá-lo das eleições de 2018, e nada fez diante das barbaridades de Bolsonaro naquelas eleições, passou a ser considerado um baluarte democrático.
Tarso Genro chegou a dizer que os choques entre o STF e Bolsonaro seriam decisivos: ”[…] o enfrentamento de Bolsonaro com o STF funde – de maneira absoluta – neste momento histórico, a questão da república com a questão democrática. A República pode ser mais (ou menos autoritária), mas a democracia política da Constituição de 1988 é incompatível com a absorção de qualquer Poder Constitucional por outro. Neste momento, se o STF, já exausto, for vencido na pugna com os esquadrões sinistros do bolsonarismo, a democracia não voltará por um longo período histórico”[3].
O texto foi publicado no mesmo mês, setembro de 2021, quando, por meio da “Declaração à Nação”, elaborada por Michel Temer, o governo Bolsonaro, o STF e o Congresso chegaram a uma solução de compromisso. Gilmar Mendes, tido por muitos como um ministro do STF que se oporia tenazmente ao autoritarismo do bolsonarismo, apoiou a carta e disse, poucos dias depois, que “acreditava na boa-fé” de Bolsonaro e que era possível um diálogo com o mesmo. E os crimes cometido pelo governo genocida? E as ameaça golpistas? Tudo foi deixado de lado diante de uma pactuação entre as diferentes frações das classes dominantes para que baixassem as armas apontadas mutuamente, não se sabe por quanto tempo, mas que aquelas apontadas para o povo e para as liberdades democráticas poderiam prosseguir erguidas e atirando.
Portanto, a defesa da ordem e de suas instituições do modo como estão configuradas hoje, ou seja, hegemonizadas e estruturadas pelas classes dominantes, não são suficientes, além de ilusórias – porque contribuíram para chegar onde estamos – para barrar o neofascismo e o golpismo. Ademais, essa ordem é responsável pela crise política, social, econômica profunda na qual encontramos. O discurso “antipolítica” promovido por agentes e meios da classe dominante encontram lastro em uma realidade concreta. As enormes abstenções nas eleições recentes é um grande sinal disso.
Cabe a esquerda defender transformações profundas no estado e na sociedade brasileira. As forças armadas, o poder judiciário, o oligopólio da mídia, o congresso, o aparato repressivo e o sistema político precisam passar por mudanças profundas. Temos que apontar para uma mudança da ordem política e social e não para a sua manutenção. Setores importantes da classe trabalhadora e dos setores populares anseiam, mesmo que de maneira difusa, por um projeto antissistêmico. Existe uma desesperança e uma falta de confiança na participação política que deriva, em parte, na percepção – e realidade – de que atual o status quo não é capaz de mudar as suas vidas. Portanto, porque não apontarmos para um projeto claramente antissistêmico?
A tática “democrática-republicana” e da transição gradual
A linha política defendida por Tarso Genro é centrada na ideia de uma “unidade democrático-republicana contra o avanço bolsonarista”. Esse campo democrático e republicano deveria “superar suas divergências para colocarem, na ordem do dia, o fim do bolsonarismo e preparação de um programa unitário para governar depois da crise”. E qual seria esse programa unitário? “Recuperar o prestígio do Brasil na ordem global, exercitar plenamente a soberania nacional compartilhada a partir dos nossos interesses, comprometerem-se com um programa emergencial de criação de empregos e atividades, combater a fome e a pandemia, defender o meio-ambiente e restaurar o ambiente democrático garantido pela Lei Maior”[4].
O campo “democrático e republicano”, apontado por Tarso, vai além do PT e da centro-esquerda e incluiria segmentos da direita. Quais seriam esses setores democráticos e republicanos da direita? Ele descarta o centrão, hoje aliado de fato e formalmente ao governo Bolsonaro. Mas em uma entrevista[5], Tarso revela para onde dirige suas esperanças, ou diria, ilusões. Seria uma parte do PSDB e pequenos grupos e personalidades de outros partidos da direita, que pudessem ser deslocados para um compromisso em torno das “instituições” e de uma “transição”.
Na entrevista, fica nítido que Tarso idealiza uma direita “democrática e republicana” que concretamente não existe. A maioria esmagadora da bancada do PSDB no Congresso Federal tem votado com o governo Bolsonaro e colocou-se contra o impeachment de Bolsonaro. E mais: estão unificados em torno de um programa neoliberal, dependente e conservador para o país. Ou mesmo esperar por uma “oposição democrática” destes setores é uma ilusão que logo se dissipa quando confrontado com os fatos recentes e à realidade atual. Para que se tenha ideia, Tarso apostou em diálogos pela “defesa da democracia” com nomes como Nelson Jobim, Raul Jungmann e o general Carlos Alberto Santos Cruz, este último, ex-ministro de Bolsonaro, que acabou de se filiar ao Podemos de Sérgio Moro e inclusive é um dos cogitados para ser vice do ex-juiz.
A esquerda, a meu ver, não se pode dar mais ao luxo de imaginar que existiria uma “direita democrática”, o conjunto dela vai agir contra as demandas populares e – se necessário – engajar-se em novos golpes. Para termos uma “estabilidade democrática”, precisamos impor uma derrota profunda e de conjunto às classes dominantes e à direita. Isso não significa, contudo, que não se possa explorar as suas divisões e as suas contradições; o que não cabe são ilusões com setores da direita.
Mas vejam a declaração de Tarso na mesma entrevista: “O potencial golpista está em descenso nas forças armadas e isso ficou demonstrado na tentativa na tentativa de golpe do Bolsonaro”. Tarso se refere ao 07 de setembro, em que não havendo um golpe por parte do bolsonarismo, logo o “potencial golpista” estaria se reduzindo. Tarso, entretanto, esquece que a menos de um mês havia acontecido uma “parada militar” em que a cúpula das forças armadas topou (ou propôs) servir nitidamente de instrumento de pressão sobre o Congresso acerca de uma votação que tratava do voto impresso, com nítidos propósitos de tumultuar as próximas eleições e para gerar pretextos golpistas.
Tarso minimiza, por fim, que se trata de um governo militar, portanto, eles não possuem necessidade de um golpe para chegar ao governo, mas sim de manobras para se manterem. E que, de qualquer forma, as ameaças do 07 setembro foram suficientes para forjar um acordo no qual o impeachment não seria colocado na ordem do dia pela oposição de direita. Acreditar em compromissos democráticos de um general que há poucos meses servia ao governo Bolsonaro e nas forças armadas em sua atual configuração, não encontra respaldo na realidade, a não ser daqueles que precisam encaixar, a qualquer custo, personagens e “instituições” num enredo pré-determinado de frente amplíssima. O problema é que a realidade não quer caber nesse enredo.
Os limites da tática tarsista
O raciocínio de Tarso é de que diante um de um governo de natureza neofascista e de um ambiente de luta social de baixa intensidade, faz-se necessário uma pactuação do “campo democrático republicano” para vencer as eleições e governar, mesmo que com candidaturas distintas, pois, possivelmente a esquerda e a centro-esquerda não teriam maioria no parlamento para governar. E o programa deveria ser de transição, com concessões para que se efetive tal pacto, e, desta maneira, implementar medidas que aos poucos darão estabilidade ao futuro governo e a possibilidade de construir outras maiorias políticas e sociais capazes de avançar nas mudanças. Tarso vê com pessimismo a possibilidade de um futuro governo Lula se apoiar na mobilização popular, como principal meio para se sustentar, desta maneira, sua linha política gira em torno da luta institucional.
A análise, a meu ver, não leva em devida conta que não nos encontramos mais em 2002/2003. A crise sistêmica do capitalismo obriga as classes dominantes, na busca por manterem suas margens de lucro, aumentarem o grau de exploração da força de trabalho e reduzir os recursos públicos destinados a assegurar serviços e direitos sociais. Por isso, mesmo um programa moderado tende a entrar em rota de choque com o conjunto das classes dominantes e com suas representações políticas. O fim do Teto de Gastos, a reversão das reformas neoliberais, a retomada de um investimento público robusto, por exemplo, serão medidas que enfrentarão uma oposição ferrenha dos representantes do “mercado”.
Aliás, há um detalhe que Tarso não explica muito bem: de que maneira setores da direita, que apoiaram os retrocessos do governo Temer e do governo Bolsonaro, numa tática que não vislumbra e não se propõe a construir uma forte mobilização social, pretende deslocar estes setores do apoio engajado ao programa neoliberal para outro orientado pelo desenvolvimento econômico e social e de mudanças? Indagado, a respeito, Tarso tateia na ideia de explorar e fazer concessões aos “interesses regionais” destes setores da direita e da classe dominante. Convenhamos que isso não garante “estabilidade” nenhuma. A resposta é difícil porque o mais lógico não é dito, que nessa linha seria necessário abrirmos mão de várias daquelas propostas, de parte importante do nosso programa, inclusive do programa mínimo unitário ventilado por Tarso.
E para realmente sairmos da crise econômica e social, há necessidade de mudanças mais profundas no Estado, na economia e na sociedade, que fatalmente entrarão em conflito com os interesses econômicos e políticos dos ricos e do grande capital. Medidas para reverter privatizações, que criem novas empresas públicas, que enfrentem a ditadura do capital financeiro, o agronegócio e a subordinação da nossa política externa, entre outras ações.
E ainda há um terceiro elemento, seja qual for o resultado das eleições, haverá uma extrema-direita e uma direita disposta a tudo para nos derrotar, de modo que arranjos político-institucionais e rebaixamento do programa não serão suficientes para derrotarmos este bloco. Estamos numa quadra histórica em que a moderação do lado de cá não é respondida com moderação do lado de lá, pelo contrário, qualquer medida no sentido de redistribuição de renda e de riqueza, de ampliação das liberdades democráticas e da soberania nacional serão tratadas como se uma “revolução comunista” fosse.
Precisaremos enfrentar os instrumentos de poder da classe dominante e construir as condições para sustentar um governo de mudanças, sem que um novo golpe saia vitorioso. Isso significa, reconstituir os laços com a maioria da classe trabalhadora e dos setores populares e transformar esses laços em capacidade organizativa e de mobilização popular. Contudo, isso somente será possível diante de uma perspectiva de transformações profundas no país, da sua ordem política e social.
Tarso e muitos dizem não haver outra saída – a não ser o da moderação, da transição gradual e a o das alianças com frações das classes dominantes – por não haver mobilização social suficiente para uma linha política de maior enfrentamento. A questão é: a estratégia e a tática adotada pela maior parte da esquerda buscam construir as condições para construir um processo de intensa luta social, cultural e política para apoiar profundas transformações democráticas, populares e socialistas?
E minha opinião, a maior parte da esquerda trabalha com uma linha de mudanças graduais e centrada na luta institucional e em políticas públicas, abrindo mão, na prática, da luta pelas reformas estruturais e de uma batalha cultural e ideológica mais sistemática. Como essa linha não ajuda a construir as melhores condições para a luta de massas, ironicamente, usa-se do argumento da ausência dela para manter a mesma linha política. Trocando em miúdos, precisamos contribuir para romper com esse ciclo, colocando a luta de classes em nosso país em condições superiores, o que exige muito mais do que estamos fazendo até o momento, e exige assumirmos a responsabilidade com uma linha política consequente com esse objetivo.
(*) Marcos Jakoby é professor, militante petista e editor do site Página 13
[1] GENRO, Tarso. A crise de Estado e crise de hegemonia fascista. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/crise-de-estado-e-crise-da-hegemonia-fascista/?doing_wp_cron=1638708255.3679900169372558593750. Acesso 5/12/21.
[2] GENRO, Tarso. A movimentação cidadã. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/a-movimentacao-cidada/. Acesso em 5/12/21.
[3] GENRO, Tarso. Unidade democrático-republicana e o avanço bolsonarista. Disponível em: https://sul21.com.br/opiniao/2021/09/unidade-democratico-republicana-e-o-avanco-bolsonarista-por-tarso-genro/ . Acesso em: 5/12/21.
[4] GENRO, Tarso. A movimentação cidadã. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/a-movimentacao-cidada/ . Acesso em 5/12/21.
[5] Programa 20 Minutos Entrevista. TARSO GENRO: HÁ UMA DIREITA DEMOCRÁTICA E REPUBLICANA? Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dBAoxhTyI3M . Acesso em 5/12/21.