Página 13 publica roteiro de Valter Pomar do debate com Tarso Genro e Victor Marques sobre crise sistêmica do capitalismo e alternativa sistêmica socialista, realizado no último domingo, 02 de agosto.
Boa tarde Natália.
Boa tarde Tarso.
Boa tarde Vitor Marques.
Boa a tarde a todos e a todas que nos acompanham.
O nosso papel aqui é falar de “Crise” e “alternativa”.
Hoje em dia, é mais comum ouvir falar em “crise da civilização humana”, do que ouvir falar em fim do capitalismo e sua substituição por uma alternativa socialista.
Isto é em certa medida paradoxal, afinal isso que chamamos de “crise sistêmica” — ou seja, a conjugação orgânica de inúmeras crises: ambiental, sanitária, social, econômica, política, nacional, geopolítica, cultural – é a crise sistêmica de uma sociedade capitalista, ou seja, de uma sociedade organizada pela dinâmica da acumulação de capital.
E o núcleo desta crise sistêmica não é a pandemia, não é a desigualdade, não é a disputa pela hegemonia mundial.
O núcleo desta crise sistêmica é uma crise de acumulação, ou seja, a crescente dificuldade que o capitalismo enfrenta para se reproduzir de forma ampliada.
Essa crescente dificuldade não impede que haja acumulação e inclusive expansão do capital, mas gera contra tendências muito poderosas.
Por conta disso, cada ciclo de acumulação do capital exige um esforço relativamente maior, para produzir um resultado proporcionalmente menor e gerando ao mesmo tempo resíduos cada vez mais tóxicos.
A crise ambiental, a crise sanitária, a crise social, a crise política, a crise geopolítica e inclusive a crise cultural que nós estamos experimentando são, a rigor, desdobramentos diretos ou indiretos desta dinâmica de acumulação de capital.
Claro que o capitalismo é um modo de produção “crísico”, que evolui graças e através de suas contradições internas.
Neste sentido, a crise, o desequilíbrio, a desarmonia, são o estado permanente do capitalismo.
Entretanto, mais ou menos como acontece numa usina nuclear, em condições normais a explosão é evitada por contra tendências, tais como a existência de novas fronteiras de expansão, a existência da competição intercapitalista e, inclusive, as conquistas da classe trabalhadora.
Entretanto, estes fatores evitam a explosão apenas temporariamente, produzindo uma ameaça futura ainda maior.
Mas há circunstâncias históricas em que ocorre um “efeito cascata”, uma sequência de acontecimentos que neutraliza as contra tendências e empurra o sistema para uma espécie de “crise perfeita”, a tal crise sistêmica.
Foi o que aconteceu na primeira metade do século XX e que incluiu a Grande Guerra de 14-18, a crise de 29, a ascensão do nazifascismo e a Segunda Guerra Mundial.
Hoje, está ocorrendo algo parecido.
Considerando a história pregressa, existem três desfechos possíveis para este tipo de situação.
O primeiro deles é o colapso geral da sociedade, uma versão Global Mad Max daquilo que os dois velhos barbudos chamavam de “destruição das classes em luta”.
O segundo desfecho possível é um novo ciclo longo de expansão capitalista.
Mas para que isso ocorra, não basta o que já está acontecendo, não basta aprofundar a concentração e centralização de capitais, não basta aprofundar a exploração da classe trabalhadora, não basta aprofundar a exploração das periferias pelos centros, não bastam as mudanças tecnológicas que já vem ocorrendo.
Para que ocorra um novo ciclo longo de expansão, seria necessário OU bem a abertura de uma nova fronteira de investimentos (como a exploração do fundo do mar, a exploração do espaço), OU bem uma reconstrução em larga escala (o que, por sua vez, pressuporia uma grande destruição prévia, ao estilo do que foi a Segunda Guerra).
O terceiro desfecho possível é que, da atual crise sistêmica, brote uma alternativa sistêmica, ou seja, um novo ciclo de experiências socialistas.
Quando falamos que existem três grandes desfechos possíveis, podemos passar a impressão de que estamos diante de variantes que se excluem.
Ou a barbárie absoluta, ou o capitalismo, ou o socialismo.
Mas do ponto de vista histórico, o mais provável é que, durante algum tempo, estas variantes ou algo parecido com elas coexistam simultaneamente.
Ou seja, ao mesmo tempo que parte da humanidade é empurrada para um capitalismo com cada vez mais barbárie, outra parte esteja buscando realizar uma transição socialista com cada vez menos capitalismo.
Sendo essas as variantes, seria de esperar que nós socialistas apostássemos todas as nossas fichas no socialismo.
Infelizmente, uma parte da esquerda acredita que, nesse momento, o máximo que podemos alcançar é a elevação dos níveis de bem estar, de liberdades democráticas e de relações civilizadas, mas tudo isso dentro do capitalismo.
Os que pensam e agem assim, apresentam vários argumentos.
Vou abordar aqui três deles: o da “crise final”, o da “correlação de forças” e o da “prioridade da luta democrática”.
Segundo o primeiro argumento, a alternativa socialista não estaria posta neste momento, porque a atual crise sistêmica ainda não seria a “crise final do capitalismo”.
De fato, nenhuma das crises do capitalismo foi ou será a “crise final”.
Quem pensa que existe a tal “crise final”, imagina o capitalismo como se ele fosse uma garrafa de vinho.
Algum dia, seca.
Mas o capitalismo não é uma coisa, não é um objeto.
O capitalismo é uma relação social entre capitalistas e assalariados, entre proprietários de trabalho morto e proprietários de trabalho vivo, entre vampiros e seres humanos.
Esta relação social não vai ser abolida, ela vai se extinguir.
Ela só será superada quando aqueles seres humanos que são produtores das riquezas, criarem as condições para decidir o que produzir, como produzir, quando produzir, quanto produzir e como distribuir as riquezas.
E há duas pré-condições para que este novo tipo de relação social, baseada na livre associação dos produtores, possa se materializar: a natureza coletiva do processo produtivo e o aumento da produtividade humana.
Não tem como existir gestão coletiva, numa sociedade de pequenos produtores independentes entre si, de aldeias que vivem isoladas umas das outras.
O capitalismo, ao tornar cada vez mais interdependente o processo produtivo, tornou possível a gestão coletiva deste processo.
Ao mesmo tempo, ao fomentar de maneira permanente o aumento da produtividade, o capitalismo criou a possibilidade de que a humanidade possa se libertar da escassez absoluta, possa trabalhar cada vez menos, tenha o tempo e os meios necessários para reorganizar a vida social de uma maneira cada vez mais humana.
Portanto, o capitalismo contribui na criação das duas pré-condições: a natureza coletiva do processo produtivo e o aumento da produtividade humana.
Vale dizer que estas duas pré-condições estão vinculadas entre si e se materializam, ao menos em parte, no chamado proletariado.
Não são condições sobrenaturais, nem estritamente técnicas ou materiais.
Acontece que o capitalismo cria estas pré-condições de maneira… capitalista, ou seja, com um enorme custo social, ambiental, psíquico, com enorme desperdício de recursos humanos e materiais, criando contradições imensas, que desembocam por exemplo em desemprego estrutural, em guerras, em devastação ambiental.
Por isso, para superar o capitalismo, não bastam aquelas pré-condições.
É preciso, também e principalmente, que se construa, na sociedade capitalista, mas contra o capitalismo, uma contramola com a disposição e a energia necessárias para reorganizar a vida social.
E mesmo que esta contramola triunfe politicamente, será necessário um determinado tempo, será necessário um processo histórico, que em alguns casos sabemos como começou e noutros casos podemos supor como pode começar, mas que não temos como prever quando tempo durará, que formas poderá assumir e nem mesmo sabemos como terminará.
Em resumo, o capitalismo não será superado pela sua própria crise; o capitalismo não será superado num dia mágico; o capitalismo só poderá ser superado no curso de uma revolução social de longa duração, no curso daquilo que se convencionou chamar de transição socialista, onde continuarão existindo, por um longo tempo, relações capitalistas de produção.
Estas relações capitalistas sobreviventes podem estar encobertas, como no socialismo soviético; podem ser explícitas, como no socialismo de mercado chinês; ou podem aparecer sob outras formas, a depender das diferentes modalidades de transição socialista que ainda venham a surgir.
Sendo evidente que só estaremos diante de uma transição socialista, se estas relações capitalistas sobreviventes forem submetidas a um crescente controle social, que inicialmente e por bom tempo será feito através do Estado, sob comando socialista.
O que é algo similar, mas com sentido diferente, ao que ocorreu, desde o século 18, com as relações não capitalistas de produção, que foram submetidas a crescente controle social por parte dos capitalistas, também utilizando para isto o Estado, neste caso sob comando dos capitalistas.
Seja como for, os que argumentam que não devemos lutar pelo socialismo, porque a atual crise não seria a “crise final” do capitalismo, estão propondo uma preliminar que não faz sentido e que, pior ainda, se fosse aceita adiaria eternamente toda e qualquer luta pelo socialismo.
Aliás, se os revolucionários vitoriosos do século XX tivessem ficado esperando a tal “crise final”, eles estariam esperando até agora.
Até porque foi só com a revolução socialista que países como Rússia e China conseguiram eliminar os obstáculos (feudais, coloniais, imperiais etc.) que travavam o desenvolvimento das forças produtivas, inclusive das forças produtivas capitalistas.
Ainda assim, o argumento da “crise final” volta e meia reaparece. Ele era corrente, por exemplo, na socialdemocracia europeia do final do século XIX, início do século XX.
Naquela época, era comum a atitude de esperar o “desmoronamento”, o “colapso” do capitalismo.
E, enquanto isso não acontecia, caberia lutar por reformas sociais e pela ampliação dos espaços de participação política.
E, claro, caberia também fazer propaganda do socialismo.
Quem pensa e age assim, é porque no fundo não compreende que a essência da luta pelo socialismo está na luta política, está na luta da classe trabalhadora pelo poder, com o objetivo de usar este poder para controlar os meios de produção, para alterar as relações sociais, e tudo que isso implica em termos de igualdade, liberdade e atendimento a todas as necessidades da sociedade humana.
Se é verdade que a superação do capitalismo é um longo processo revolucionário, o ponto de partida desta revolução social, o fio condutor desse processo de transformação estrutural, é uma revolução política.
Por isso, os que negam e os que minimizam a necessidade da revolução política, não estão escolhendo um caminho supostamente mais lento para chegar ao socialismo.
Os que negam ou minimizam o papel da revolução política na luta pelo socialismo, estão na verdade escolhendo um caminho que não levará ao socialismo.
Estão abrindo mão – consciente ou inconscientemente – da luta pelo socialismo.
Neste sentido, é curioso ver como somos pródigos em estabelecer objetivos radicais, mas recuamos assustados frente a necessidade de uma ruptura revolucionária para materializar aqueles objetivos.
A noção de que haveria uma “crise final” do capitalismo é prima-irmã de uma outra concepção que também não se revelou verdadeira.
Esta outra concepção pressupunha que as pré-condições objetivas e subjetivas do socialismo evoluiriam de maneira sincronizada.
Segundo esta concepção, a transição socialista ocorreria primeiro onde o capitalismo estivesse mais desenvolvido, onde também imaginava-se que a classe dos trabalhadores assalariados fosse maioria numérica.
Ou seja, quanto mais desenvolvimento, mais perto estaríamos do socialismo.
Nessas condições, mesmo que fosse necessário usar a “mão dura” contra os capitalistas, isso seria expressão da vontade democrática da maioria contra a resistência de uma minoria que devia ser impedida de voltar a ser dominante, opressora e exploradora.
E como, supostamente, o capitalismo já teria desenvolvido previamente as forças produtivas, o socialismo cuidaria apenas da socialização das riquezas.
E como os países mais desenvolvidos eram exatamente aqueles que mais faziam guerra contra os demais, o progresso da revolução socialista causaria também a ampliação da paz mundial.
Em resumo, seria o que eu chamo de “tudo de bom”: uma revolução rápida, democrática e pacífica.
Acontece que esta concepção não foi confirmada pelos acontecimentos do século XX.
A revolução não aconteceu naqueles países onde o capitalismo era mais desenvolvido.
A revolução não aconteceu naqueles países onde a classe trabalhadora assalariada era maioria.
A revolução não aconteceu naqueles países que concentravam os maiores recursos bélicos.
Pelo contrário, no século XX as revoluções ocorreram e foram vitoriosas onde o capitalismo era relativamente menos desenvolvido, onde a classe trabalhadora assalariada era minoria numérica e em países que, durante e depois da revolução, foram submetidos a cerco, a sabotagem e a guerras, contribuindo assim para transições socialistas cheias de defeitos, imperfeições e problemas.
Entre os adeptos daquela “teoria do tudo de bom”, isto gerou um comportamento escolástico, segundo o qual se há uma contradição entre a teoria e a realidade, quem está “errada” é a realidade.
Ou, como diria um amigo, contra argumentos não há fatos.
Claro que este percurso imprevisto também produziu “teorias” que tentaram transformar aquelas experiências tão singulares em “modelos” que deviam ser defendidos em todos os lugares e épocas.
Outro argumento utilizado pelos que defendem recusar ou secundarizar a luta por uma alternativa sistêmica socialista, aqui e agora, é o argumento da péssima correlação de forças.
Do qual eles deduzem que, agora, devemos lutar pelo programa mínimo, melhorar um pouco nossa situação e, depois, colocar como objetivo a luta pelo socialismo.
O que estes defensores do “tudo de bom 4.0” não percebem é que, “depois”, as dificuldades vão aumentar, não diminuir.
Pois passada a crise, em que tudo é muito difícil, virá na melhor das hipóteses nova expansão capitalista, onde tudo será muito mais difícil para aqueles que lutam pelo socialismo.
Se existe um bom momento para iniciar novas tentativas de transição socialista, é exatamente em momentos de crise sistêmica, em que o capitalismo demonstra todos os seus problemas.
Aliás, não conheço um único caso em que revoluções socialistas vitoriosas tenham ocorrido em condições ótimas de temperatura e pressão.
Assim como não conheço nenhuma transição socialista que tenha iniciado em tempos de funcionamento normal e exitoso do capitalismo.
Óbvio que o argumento da correlação de forças seria totalmente correto, se alguém estivesse propondo como meta imediata (para amanhã, por exemplo) “iniciar a construção do socialismo”.
Afinal, construir o socialismo pressupõe que a classe trabalhadora controle instrumentos de poder que, hoje e amanhã, não estão nem estarão ao nosso dispor.
Mas o debate não é sobre o que fazer amanhã, o debate é sobre reafirmar ou não o socialismo como meta programática e estratégica, um objetivo para o qual devem convergir nossos esforços.
Portanto, a questão posta é decidir se o socialismo é ou não é a melhor alternativa programática e estratégica para a crise sistêmica em que o mundo está metido.
E, também, decidir qual o lugar do socialismo no programa e na estratégia da esquerda brasileira neste ano santo de 2020.
Existe quem defenda que, após a crise, talvez venha um “momento socialdemocrata.
Ou seja, teríamos capitalismo, mas teríamos capitalismo com bem-estar social e liberdades democráticas.
Pode ser que seja este o cenário pós-crise?
Pode ser, sempre pode ser.
Mas o que tornaria possível este cenário?
Se houver alguma lógica na história, a única coisa que pode fazer o capitalismo neoliberal tolerar um certo nível de reformas sociais e liberdades democráticas, é o medo de uma grande revolução.
Aliás, o único “momento socialdemocrata” que existiu até hoje, o chamado Welfare State, só foi possível, em uma pequena e relativamente pouco povoada região do mundo, depois de uma hecatombe, no curso da qual ocorreu uma onda revolucionária.
Portanto, o “momento social-democrata” não foi produto da evolução espontânea do capitalismo, nem de sua auto reforma; foi imposto à classe dominante em circunstancias históricas muito especificas, incluindo a chamada Guerra Fria.
A julgar por esta experiência histórica pregressa, se não houver uma pressão socialista revolucionária, não haverá nada de positivo, nem mesmo uma socialdemocracia (que, é bom lembrar, não é socialismo, é uma digamos modalidade do capitalismo).
Por isso, até quem se contenta com o programa mínimo, deveria valorizar mais a importância de defender e lutar pelo programa máximo.
Seja como for, o principal problema dos que usam o argumento da correlação de forças, para deixar em segundo plano o tema da luta pelo socialismo, é que aceito este argumento, a luta pelo socialismo nunca será posta em primeiro plano.
Entre outros motivos, porque o único jeito de alterar a correlação de forças acerca de um determinado tema, é lutando por ele.
Já começando a tratar do Brasil, quero falar de um terceiro argumento, utilizado pelos que não estão de acordo em defender o socialismo como uma alternativa para a crise sistêmica que está em curso.
Segundo este argumento, nossa prioridade deveria ser derrotar o neofascismo, portanto deveria ser a luta pela democracia
E colocar o socialismo como objetivo atrapalharia a concentração de esforços necessária para atingir o objetivo principal.
Considero que este argumento é politicamente suicida, teoricamente incorreto e historicamente improcedente.
É suicida argumentar que a defesa do socialismo atrapalharia a luta pela democracia. Levado ao limite, nos conduziria à autodissolução.
É teoricamente incorreto contrapor a luta pelo socialismo e a luta pela democracia.
Certamente a luta pelo socialismo é distinta e inclusive antagônica ao liberalismo burguês; mas a luta pelo socialismo não é distinta e antagônica à democracia popular.
Finalmente, lembro que a luta pelo socialismo foi um aspecto fundamental da luta contra o fascismo histórico.
Foram as tropas da URSS que derrotaram o nazismo, foram as guerrilhas hegemonizadas pelo comunismo que derrotaram o fascismo, foi a revolução liderada pela esquerda que deu o golpe de graça no salazarismo.
No caso brasileiro, por exemplo, como vamos derrotar o bolsonarismo?
O bolsonarismo não se limita a votação de 2018, não é apenas o gabinete do ódio, não são apenas as forças armadas ou as polícias, não é apenas o empresariado, é tudo isso e também o apoio de um setor popular muito numeroso, importante e organizado, que enxerga no Bolsonaro o defensor de uma visão de mundo fundamentalista.
Esse núcleo duro de apoio, muito militante e parte dele armado, é exatamente a base de massas do fascismo à brasileira.
O único jeito de derrotar este núcleo duro é contrapondo outro núcleo duro, em torno de outra visão de mundo, uma visão de mundo humanista, socialista e revolucionária.
Não será o centro, mas a esquerda, que conseguirá derrotar o neofascismo. Mas para entusiasmar o apoio popular, a esquerda não pode se apresentar com a política e com o programa do “centro socialdemocrata” ou social-liberal que existe no Brasil.
Para concluir, eu quero exatamente falar da relação entre desenvolvimento e socialismo em nosso país, neste ano de 2020 e no que virá depois.
Começo lembrando que a questão central do capitalismo não é o investimento, nem é o crescimento; a questão central é o lucro.
Desde o final dos anos 1960 há um movimento mundial de queda nas taxas médias de lucro.
Os capitalistas compensaram isto com uma brutal ofensiva sobre o trabalho, com uma brutal ofensiva contra a periferia do mundo e, também, com uma crescente aposta na acumulação financeira especulativa, que faz parte daquilo que Marx chamava de capital fictício.
No caso do Brasil, esta ofensiva incluiu a crise da dívida externa nos anos 1980; as reformas neoliberais tucanas, nos anos 1990; e o ultraliberalismo que começou golpista em 2014 e se converteu em neofascista.
De conjunto, esta ofensiva pretende desfazer o que o desenvolvimentismo conservador fez entre 1930 e 1980, nos convertendo novamente em uma nação extrativista-primário-exportadora e, claro, importadora de produtos industrializados.
É importante ter claro que, do ponto de vista da classe dominante, esta opção é a mais lógica e a mais lucrativa.
Para começo de conversa, o Brasil possui extensas reservas de tudo que é demandado pelas potências industriais. Ganhe quem ganhar a batalha geopolítica em curso no mundo, o Brasil pode fornecer seus minerais, seus vegetais, suas proteínas etc.
Em segundo lugar, já existe um excesso de capacidade produtiva no mundo e, se a pandemia produzir um miniciclo de substituição de importações naquelas potências que descobriram que não conseguem produzir nem mesmo máscaras, este excesso de capacidade produtiva vai crescer ainda mais.
Neste cenário, a reindustrialização do Brasil exigiria altas doses de protecionismo, muito investimento e muita disposição para brigar com as grandes potências industriais já instaladas.
Exigiria, também, ampliar a capacidade de consumo da classe trabalhadora brasileira. E investir pesado na integração regional.
Ou seja, a classe dominante brasileira – que usa nossos baixos salários como vantagem comparativa – teria que abrir mão de parte dos seus lucros e correr riscos num imenso conflito geopolítico e geoeconômico.
Obviamente, é muito mais cômodo, para a classe dominante, aceitar a posição de gestora de um entreposto extrativista- primário-exportador, abastecendo-se com produtos industriais comprados nas grandes oficinas & laboratórios do mundo, sejam os Estados Unidos, a Alemanha ou até mesmo a China.
Uma das consequências desta prioridade primário-exportadora é a contada na fábula de Procusto: é preciso amarrar o Brasil na cama e cortar tudo que fique para fora.
Dito de outro jeito, fazer o Brasil de 2020 caber nas roupas do Brasil de 1920.
Um país extrativista-primário-exportador simplesmente não conseguirá oferecer saúde, educação, moradia, trabalho e salários para 210 milhões de brasileiros.
Aliás, do ponto de vista da lógica dominante, um país primário-exportador não precisa oferecer nada disto.
Em consequência deste apagão de políticas sociais, a classe dominante precisa tratar a chamada questão social como “caso de polícia”, reduzindo substancialmente as liberdades democráticas, os espaços institucionais e de auto-organização do povo.
Noutras palavras, o ultraliberalismo exige como complemento o neofascismo.
Evidentemente, nossa alternativa a isso deve ser desenvolvimento e democracia.
Mas qual desenvolvimento?
O dos anos 1930 a 1980? Dependente, desigual, conservador da renda, da riqueza e poder dos de sempre?
E qual democracia?
A mesma democracia liberal cujas instituições sacramentaram o golpe de 2016, a condenação e prisão de Lula, a fraude de 2018 e a eleição do cavernícola?
Na minha opinião, defender o desenvolvimentismo conservador e a democracia liberal seria não apenas um erro, seria utópico.
Isto porque a classe dominante não está disposta a isto.
Na atual situação interna e internacional, a única chance do Brasil trilhar um caminho de desenvolvimento & democracia, é se a classe dominante for derrotada e for substituída, no comando do país, pela classe trabalhadora.
Se conseguirmos fazer isso, nosso primeiro objetivo deve ser converter o Brasil e a região latino-americana e caribenha num dos polos produtivos e tecnológicos do mundo.
Isso exigirá colocar o oligopólio financeiro privado sob controle público; consolidar a pequena e a média propriedade rurais, como base de nossa soberania alimentar; integrar todo o Brasil com energia elétrica, cabeamento ótico, ferrovias e hidrovias; reurbanizar nossas cidades, atendendo 100% das necessidades de saneamento, moradia, transporte e equipamentos públicos de educação, saúde, cultura, esportes e lazer.
É a produção destes bens públicos, combinada com a ampliação do consumo de bens privados, que se converterá no carro-chefe da indispensável reindustrialização nacional.
Como já foi dito, isto não pode ser feito sob comando nem sob a direção da atual classe dominante.
Exigirá outro tipo de Estado, dirigido por outra classe social.
Que para se tornar dominante, terá que enfrentar a democracia seletiva, o racismo, a mentalidade colonial, a tutela militar, a ditadura comunicacional, o judiciário partidarizado, o parlamento oligárquico, a polícia militarizada, a misoginia, a lgbtfobia etc.
É neste contexto que será realmente possível edificar um Estado de Bem-Estar Social que mereça este nome, que efetivamente garanta saúde e educação pública, universal e gratuita; emprego com direitos trabalhistas; salário mínimo valorizado; aposentadoria digna.
Que sustente políticas especiais voltadas para as mulheres, negros e negras, para a juventude, setores majoritários da classe trabalhadora, que recebem menos e trabalham mais.
Que implemente políticas especiais destinadas às populações originárias, aos amplos setores sociais vítimas de histórica exclusão e desigualdade, às regiões submetidas a décadas e séculos de desenvolvimento desigual.
Medidas que visam ao mesmo tempo elevar a produtividade, aumentar a igualdade, combater todas as formas de opressão e dominação, ampliar a coesão social, sem as quais não derrotaremos o imperialismo, que inevitavelmente virá contra nós.
Com maior ou menor radicalidade, com maiores ou menores detalhes, os objetivos que relacionei antes são compartilhados por grande parte, senão pela totalidade da esquerda brasileira.
Mas um pedaço da esquerda brasileira acredita que seja possível alcançar esses objetivos socialmente revolucionários, sem lançar mão de métodos politicamente revolucionários.
Claro que parte desses objetivos são alcançáveis, mesmo dentro do capitalismo e sob o Estado atual, bastando para isso mudar o governo.
Mas se olharmos tudo o que fizemos desde 1988 – por exemplo, do SUS a previdência pública, da política de empregos ao Bolsa Família – qual é a conclusão?
Primeiro, que a classe capitalista odeia, sabota e busca destruir cotidianamente tudo isto.
Segundo, que dadas as restrições impostas pelo capitalistas, o máximo que conseguimos é produzir ilhas de bem-estar num oceano de desigualdade.
Nem saneamento, gente, nem saneamento existe na maior parte das casas brasileiras.
Terceiro, que os governos minimamente comprometidos com os interesses populares são, mais cedo ou mais tarde, golpeados. Vargas em 1954, Jango em 1964, Dilma em 2014, Lula preso em 2018.
Sem trocadilhos infames, não acho boa política emular Sisifo.
Prefiro tirar a conclusão de que, para cumprir globalmente um programa democrático e popular, construir um país verdadeiramente soberano, desenvolvido, igualitário e com liberdades, faz-se imprescindível colocar a classe trabalhadora no comando do país, mudar a ordem social interna e enfrentar o imperialismo.
Portanto, cumprir o programa exige uma revolução política.
Todos aqui certamente conhecem o ditado Si vis pacem, para bellum.
Se queres paz, prepara-te para a guerra.
Nós que somos os autoproclamados guardiões da última flor do Lácio, poderíamos dizer: Se queres desenvolvimento, lute pelo socialismo.
Uma alternativa sistêmica para uma crise sistêmica.
Muito obrigado pela atenção de vocês.