O texto abaixo foi elaborado pelo setorial nacional de saúde da AE. Servirá de base para nossa intervenção na Conferência Nacional de Saúde e, também, para o debate no 8o Congresso Nacional da tendência petista Articulação de Esquerda. Agradecemos críticas e sugestões de emenda.
1. Militantes, filiados, simpatizantes, membros do quadro diretivo e parlamentares do PT integraram o Movimento pela Reforma Sanitária, nas décadas de 1970 e 1980, assim como lutaram pelo acesso universal à saúde na 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986.
2. No Congresso Constituinte de 1987-1988, nossa bancada de deputados federais defendeu o Sistema Único de Saúde universal, público, gratuito e estatal.
3. A “Saúde como direito de todos e dever do Estado” é uma conquista consagrada pela Constituição de 1988, que começou a ser efetivamente executada em 1990, com a Lei Orgânica da Saúde, expressa nas leis 8.080 e 8.142/1990, que deram início à implantação do SUS, embasado nos pilares da descentralização, da integralidade e do controle social.
4. De lá para cá, mesmo com todas as interdições e descaminhos impostos pelas forças neoliberais e de extrema direita que hegemonizam o sistema político brasileiro, seja nos diferentes níveis do executivo, legislativo ou judiciário, assim como no setor privado da saúde e na mídia empresarial, a militância de esquerda e do Partido dos Trabalhadores segue lutando em diferentes espaços, junto aos movimentos sociais, governos e conselhos de saúde, pela consolidação de um sistema de atenção à saúde para todes, comprometido com a intersetorialidade, a equidade e a integralidade de ações, uma vez que o direito à saúde não se esgota no tratamento de doenças.
5. Para uma vida digna e saudável, a população precisa ter acesso à alimentação, moradia, saneamento básico, meio ambiente, trabalho, renda, educação, comunicação, transporte, cultura, lazer e outros bens e serviços essenciais.
6. Como projeto, o SUS se contrapõe ao modelo de desenvolvimento capitalista, porque é uma política pública inclusiva e nacional, que demanda ação integrada e capilarizada das diversas políticas sociais de um Estado forte, que ao ser implementado fere e busca superar interesses de quem defende e atua para que a Saúde seja mercadoria.
7. Na década de 1990, a onda neoliberal dificultou, distorceu, mas não impediu o processo de inclusão social estimulado pelo SUS, que adquiriu capilaridade em todo território nacional.
8. Desde então até hoje, é evidente o impacto positivo nos indicadores de saúde, tais como: redução da mortalidade infantil, da mortalidade materna, da mortalidade por doenças infecciosas e parasitárias, bem como o aumento da esperança de vida ao nascer da população.
9. Esses avanços convivem, entretanto, com uma precária estabilização do financiamento do SUS, sabidamente insuficiente para sistemas universais como o nosso e bem menor que o desejável. Além disso, parte importante do financiamento do sistema é desviado em direção ao setor privado, bem como a um insustentável modelo de atenção que prioriza a atenção especializada e de alto custo em detrimento da atenção básica e das ações de prevenção das doenças e promoção da saúde. Além de existir evidente desequilíbrio entre as instâncias federal e estadual frente a sobrecarga dos municípios.
10. Também não foram consolidados e integrados sistemas transparentes que possibilitassem um gerenciamento adequado, marcado pela disseminação generalizada da entrega e terceirização da gestão dos serviços à iniciativa privada; nem conseguimos por fim aos desmandos e à lucratividade desenfreada dos planos e seguros saúde, que impactam nos gastos de trabalhadores com bens e serviços privados de saúde, especialmente de idosos.
11. Na pandemia, em que prevaleceu no nível federal o obscurantismo militarizado e grotesco, violento e agressivo, configurado no genocídio e no negacionismo da necropolítica, o SUS salvou milhões de vidas. Na contramão do discurso imposto pelos neoliberais, que tanto influencia a cultura política do nosso povo, grande parte da população pode enxergar no SUS uma estrutura estatal de confiança; inclusive os monopólios de mídia foram obrigados a retratar o sistema como uma solução, ainda que isto tenha sido facilitado pelo fato de que o elogio dizia respeito a vacinação e ao combate a uma pandemia.
Governo Lula
12. No contexto do governo de coalizão encabeçado por Lula, o Ministério da Saúde nestes primeiros meses, com Nísia Trindade e equipe, vem acertando em suas prioridades, embora haja um longo caminho para reverter as muitas perdas dos últimos anos.
13. A nova ministra, pela experiência gestora como autoridade sanitária e reconhecido compromisso com a saúde pública, com a ciência e com a democracia, veio para coordenar e repactuar com as demais instâncias a retomada das capacidades de governo, retirando os militares que colonizavam a estrutura ministerial, concentrando esforços na reconstrução de políticas que estavam enfraquecidas para responder às necessidades da população.
14. Sua gestão vem priorizando a emergência na saúde dos povos Yanomani para, junto com outras instâncias governamentais, focar na reversão do genocídio em curso daquele povo; a recuperação das coberturas vacinais em queda, atuando para retomar a credibilidade e a confiança nas vacinas com a reorganização do Programa Nacional de Imunização; a realização de investimentos contínuos em ciência, tecnologia e inovação, com a descentralização da produção de bens de saúde como vacinas, medicamentos e equipamentos médicos para reduzir a dependência em relação a importações; a criação de condições financeiras para pagamento do piso da Enfermagem com a sanção da lei que liberou aos estados e municípios o valor de R$ 7,3 bilhões para garantia de fontes pagadoras para efetivação do piso; a reorganização e recriação do Programa Mais Médicos, com o preenchimento total das 6 mil vagas na primeira chamada, podendo alcançar mais 10 mil vagas até o final deste ano, para as populações acessarem ações e serviços de saúde em zonas remotas como as terras indígenas e as periferias das grandes cidades, provendo profissionais com progressão de carreira, capacitação, acesso a telemedicina e abertura de novas vagas para cursos de Medicina voltados às necessidades da população e formação generalista; a liberação de recursos para reduzir filas de cirurgias no SUS, com alcance de pelo menos 18 estados desde fevereiro, através do Programa Nacional de Redução das Filas, prevendo chegar a R$600 milhões em repasses até o final de 2023, conforme planejamento e demanda dos estados e municípios para garantir equipes cirúrgicas completas e melhorar o fluxo de atendimento prioritários, de acordo com as realidades locais; a reaproximação do Ministério com o Conselho Nacional de Saúde (CNS), que é a principal instância de controle social das políticas públicas de saúde no país, cujo presidente integrou o grupo de trabalho temático sobre saúde na transição de governo, como também o primeiro escalão do ministério voltando a participar de suas reuniões e a retomada dos apoios à organização da 17ª Conferência Nacional de Saúde, a ser realizada em julho, e à 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental, que finalmente ocorrerá em outubro deste ano, após vários adiamentos ocasionados pela falta de vontade política de que ocorresse durante o governo anterior.
15. Mas a Saúde, nessa quadra histórica, na correlação de forças sociais em disputa, acumula desafios muito espinhosos, que envolvem iniciativas que transcendem a ação do Ministério da Saúde, a começar por se manter a esquerda no comando do Ministério, alvo central dos embates do governo Lula com o “Centrão” de Artur Lira, na mais recente chantagem para se impor como real governante do país.
16. Para além desses gravíssimos enfrentamentos, estão colocados desafios relevantes para nossas lutas em defesa do SUS 100% público, integral, equânime e democrático que dizem respeito ao desfinanciamento do SUS nos marcos da implementação do novo marco fiscal, à avassaladora privatização da gestão dos serviços e das ações assistências através da contratação maciça de serviços privados de forma substitutiva aos serviços públicos estatais, desregulamentação dos planos e seguros privados e insatisfatória ação gestora do Estado brasileiro combinada com a precarização da força de trabalho da saúde e as ameaças renitentes ao cuidado em liberdade e antimanicomial para viabilizar a reforma psiquiátrica no Brasil.
Novo Marco Fiscal (NMF) e a Saúde com um financiamento 100% público, ampliado e sustentado
17. Uma advertência: este texto está sendo escrito quando a Câmara Federal aprovou o (NMF) –também conhecido como Novo Arcabouço Fiscal– proposto pelo deputado Cláudio Cajado (PP-BA), que agora tramita no Senado. Para compreender o proposto por Cajado, é necessário compreender o que foi encaminhado pelo Ministério da Fazenda ao Congresso. E para isso é preciso começar nosso debate em 2022.
18. Em sua campanha à presidência e mesmo já no governo, durante os repetidos embates com o presidente do Banco Central atacando a taxa de juros no Brasil como uma das mais altas do mundo, o presidente Lula tem sempre reafirmado que “saúde não pode ser considerado gasto, é investimento”, ressaltando a proteção da saúde e da vida. Uma das diretrizes urgentes, portanto, é a recomposição do orçamento da saúde. Tendo por referência o investimento em saúde nos países desenvolvidos, nosso plano de governo apresentado ao povo brasileiro nas eleições de 2022, definiu a necessidade da “revogação da EC 95/2016, instituição de uma política fiscal que considere as necessidades de saúde, adotando regras estáveis e menos dependentes das flutuações cíclicas da economia, na perspectiva de elevar o gasto público em saúde (união, estados e municípios) para que possa atingir 6% do PIB.” Atualmente encontra-se em torno de 3,6%, sendo destes, 3% de transferências do governo federal e os outros 3% de governos estaduais e municipais.
19. Neste sentido, a proposta do NMF para os anos de 2024 a 2027, apresentado ao Congresso Nacional através do Projeto de Lei 093/2023, apesar de superar o teto de gastos, está muito longe de uma política fiscal amiga do desenvolvimento e do bem-estar social, algo oposto ao que fizemos o povo acreditar que implantaríamos quando eleitos.
20. Lembramos que o chamado “teto de gastos”, implementado desde 2017, buscava limitar por 20 anos a expansão do gasto público à variação inflacionária, excetuando os gastos financeiros, cuja evolução seguiu descontrolada. O resultado foi a evolução descontrolada da dívida pública, a desestruturação das políticas públicas e a estagnação da economia nacional. O preço quem pagou foi a maioria do povo. Entretanto, o que o Ministério da Fazenda sob o comando de Fernando Haddad propôs foi substituir o “teto de gastos” por um conjunto de metas de evolução para o saldo primário e regras de variação das despesas.
21. O NMF originalmente proposto estabeleceu metas de superávit primário, com o objetivo de chegar ao superávit primário em 2026. Foram previstas bandas (variações em torno da meta) e, também, punições, para o caso da meta não ser atingida. Para atingir este objetivo, o NMF propôs limitar a expansão dos gastos públicos a um percentual (70%) do crescimento das receitas, estabelecendo exceções a esta regra (na saúde, na educação, na previdência). Ao mesmo tempo, o NMF estabelecia um piso (0,6%) e um teto (2,5%) de expansão real (acima da inflação), percentuais que poderiam ser reajustados periodicamente. E estabelecia um piso (valor mínimo, a ser reajustado pela inflação) de investimentos, de R$ 70 bilhões.
22. A regra básica, que limita o investimento público a 70% da variação real da receita do ano anterior, limitado a 2,5% como crescimento máximo das despesas, é restritiva ao investimento público, e como tal, um fator que dificulta a recomposição do orçamento da saúde, que ficará limitado a 15% da RCL (Receita Corrente Líquida) em 2024.
23. É neste ponto que se faz necessário perceber uma das consequências do NMF. Como nos próximos anos vão aumentar as despesas, e como estas despesas não podem crescer mais do que 70% das receitas, o que vai acontecer é que haverá uma disputa para saber quais despesas serão mantidas ou serão cortadas. Por isso é que vai crescer a pressão para revogar os atuais pisos constitucionais da saúde e da educação, conforme aliás já anunciado pelo Secretário do Tesouro. Ou seja, um efeito colateral do NMF é jogar uns contra os outros, jogar os defensores de uma política pública conta os defensores de outra política pública. Isso é inadmissível em geral. E é inadmissível querer tocar no piso constitucional da educação e da saúde. No específico da Saúde, é preciso ampliar os recursos, para dar conta de todos os compromissos que a Saúde tem para recuperar e superar as dificuldades dos anos sombrios de genocídio bolsonarista e desmantelo pós-golpe, sendo também necessário incorporar ao seu orçamento as perdas advindas dos anos em vigor da EC 95/2016, calculadas em R$ 70,4 bilhões, os recursos das emendas impositivas e do piso da enfermagem (extra-teto).
24. Há que se considerar nova fonte de custeio do SUS por meio do fundo social do petróleo e, no caso de emergência sanitária (calamidade pública) como ocorreu com a escassez de insulina, abrir créditos extraordinários (extra-teto).
25. Denunciamos, portanto, que o NMF – dados os parâmetros propostos – impõe, como consequência lógica, matemática, a necessidade de uma PEC com a alteração dos atuais pisos da saúde e educação, visando reduzir o crescimento dessas despesas para próximo da velocidade máxima do teto. Isso porque o teto cresce na velocidade de 70% da receita (ainda limitado a 2,5% de ganho real) e saúde e educação crescem com base em 100% da receita. A saúde e educação passarão a ocupar crescentemente o espaço das áreas que não têm piso. Como compatibilizar isso com tantas necessidades de crescimento orçamentário?
26. Resumidamente: enquanto o teto de gastos impedia a expansão real do gasto público, o NMF permite que isso ocorra. Mas o NMF permite isso apenas sob determinadas condições, entre as quais a obtenção de superávit, o crescimento das receitas e – como pressuposto geral – o crescimento da economia.
27. Portanto, em um cenário muito provável, no qual não haja grandes investimentos internacionais nem grandes investimentos privados nacionais, em que não se consiga aumentar os impostos, em que não se consiga avanços significativos no combate às desonerações e à sonegação, o NMF imporá reduzir o piso constitucional. Por isso repetimos: o NMF não é adequado e precisa ser substituído por outro. E, ao mesmo tempo, dizemos: já que é assim, é preciso então cobrar mais impostos dos ricos.
28. Repetimos também: ao estabelecer um crescimento das “despesas” sempre menor do que as receitas, o NMF projeta um futuro em que o Estado será mais mínimo do que é hoje. O único jeito de evitar isso, mantidas as demais variáveis, é criando impostos sobre as grandes riquezas, sobre os grandes patrimônios.
29. Pelas razões expostas anteriormente, reafirmamos que as opções do NMF (na versão Haddad e na versão Cajado) são, em si mesmas, erradas, contraditórias com as posições históricas do Partido, quando contrastadas com o que o Brasil necessita para sair das atuais condições de desigualdade social, da condição de país primário-exportador, de uma saúde efetivamente universal, equânime, integral, 100 % pública e de qualidade.
30. Argumentou-se que tais opções decorriam da correlação de forças. De fato, a correlação de forças é um problema. Mas a questão não está em constatar a correlação de forças, mas sim em alterar a correlação de forças. Se nos limitamos a constatar, é óbvio que o passo seguinte será retroceder ainda mais.
31. O esperado era que o Partido, que não foi ouvido previamente, tivesse podido debater a proposta antes de ser encaminhada à Câmara. E, uma vez na Câmara, apresentasse emendas no sentido de: 1) estabelecer metas de crescimento e geração de empregos, como parâmetros para a política fiscal; 2) estabelecer metas fiscais compatíveis com a política monetária, para evitar um duplo efeito contracionista; 3) estabelecer metas de evolução do superávit que estejam subordinadas às necessidades de investimento, em nenhum caso aceitando déficit zero ou superávit enquanto a economia brasileira não crescer de forma sustentada; 4) diluir ao longo de vários anos as “punições” previstas para o caso de não cumprimento das metas de superávit primário; 5) incluir propostas tributárias que, além de rever desonerações e combater a sonegação, aumentem os impostos sobre os ricos; 6) alterar os números de variação da receita, crescimento mínimo dos gastos e crescimento médio dos gastos, no sentido de garantir que não haja restrição permanente ao papel do setor público na economia brasileira: o peso do setor público frente ao PIB deve crescer; 7) retirar a educação, a saúde, a previdência, o salário-mínimo e os investimentos da conta dos gastos, para evitar arrocho sobre os demais gastos públicos; 8) permitir que o Tesouro transfira recursos aos bancos públicos.
32. Tais emendas não foram apresentadas. Prevaleceu na bancada uma postura recuada. E o efeito foi que a direita, através do relator, pode agir sem nenhum contraponto.
33. Submetido ao debate no Congresso, o NMF original foi alterado para pior, com a introdução de contingenciamento obrigatório, criminalização, eliminação de exceções, proibição de concursos e reajustes etc. A bem da verdade, no essencial se piorou o que já era ruim.
34. Supondo que o Senado faça como a Câmara e aprove a proposta do relator Cajado, não haverá como negar que passamos a ter dois problemas: uma política monetária e uma política fiscal que não contribuem para o desenvolvimento. O que nos obrigará a travar uma batalha imensa por uma reforma tributária progressiva, que faça os ricos pagarem a conta.
Saúde como elemento estratégico na política de desenvolvimento nacional do programa de governo de reconstrução e transformação do Brasil – Em defesa do SUS 100% público e gradativamente estatal
35. Mantido o cenário atual ‒ onde convivem privatização e terceirização na saúde, ausência de Carreira Única nacional, multiprofissional e pactuada do SUS, com compartilhamento interfederativo, incipiente integração sanitária no Sistema entre os entes federados, desfinanciamento a partir do Golpe de Estado de 2016, imensa renúncia fiscal e desonerações diversas em favor de entes privados ‒, serão imensos os obstáculos para a saúde se converter em um elemento estratégico de uma política de desenvolvimento nacional.
36. Será preciso ampla discussão e mobilização social para que a saúde seja umas das prioridades contínuas no Programa de Reconstrução e Transformação do Brasil, que vem que sendo implementado pelo governo Lula.
37. Ou seja, manter a saúde como componente fundamental na estratégia de desenvolvimento nacional perpassa as questões econômica, social, sanitária, humanitária e política, pois visa conferir concretude aos pontos que se seguem.
a. Garantir a implantação e manutenção de uma política global em defesa da vida de todas as pessoas.
b. Garantir a adequada reprodução da força de trabalho nacional.
c. Garantir a incidência direta da área da saúde no crescimento econômico geral.
d. Garantir a área da saúde como suficiente e permanente produtor de bens e de serviços necessários à consecução das finalidades do SUS, tanto as clínicas – com foco individual – quanto as coletivas – com foco na população.
e. Garantir ao SUS o papel de orientador do desenvolvimento do Complexo Médico e Industrial da Saúde do País, o que é fundamental para a soberania nacional.
f. Garantir ao aparato sanitário do SUS sua ampliação no território nacional, o que significará ampliar sobremaneira a força de trabalho em saúde – intensiva no emprego de mão-de-obra –; prover assistência à saúde da população de regiões do País que convivem com vazios assistenciais; prover equipamentos de saúde especializados – hospitais, centros especializados e unidades de urgência e emergência – e equipes de vigilância em saúde em regiões do País nas quais são insuficientes ou ausentes.
g. Estancar e iniciar a reversão de toda sorte de privatização direta ou indireta do SUS, adotada pelo Ministério da Saúde e pelas Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, ao lado da criação de Carreira Única nacional, multiprofissional e pactuada do SUS, com compartilhamento interfederativo, contemplando todas as profissões e ocupações existentes no Sistema.
h. Estabelecer uma política de estruturação e ampliação da rede própria de forma a paulatinamente substituir a rede privada contratada em todos os níveis de atenção.
i. Ampliar o Programa “Mais Médicos” para o “Mais Saúde” com a inclusão de outras categorias profissionais fundamentais na estruturação da atenção básica nos municípios.
j. Instituir a contratualização direta entre os serviços da Rede SUS e as respectivas gestões nos correspondentes níveis administrativos, garantindo autonomia administrativa e financeira bem como a profissionalização da gerência e gestão desses serviços.
38. Entendemos que combater a privatização no SUS significa também eliminar todas as formas de gerência, gestão e ações assistenciais – como fundações de direito privado, serviços sociais autônomos, EBSERH e congêneres -, que de forma direta ou indireta retroalimentam o clientelismo e patrimonialismo no Estado e atentam contra direitos básicos dos servidores públicos como a estabilidade, que é a forma de garantir imunidade dos trabalhadores contra ações fisiologistas de governos.
Pela ampliação do financiamento público do cuidado em liberdade laico no SUS
39. O governo Lula incorporou importantes lutadores da reforma psiquiátrica e sanitária para os quadros do Ministério da Saúde, que adotam as premissas da Reforma Psiquiátrica, defendendo o cuidado em liberdade social, territorial e comunitária e a redução de danos como diretrizes do atendimento a usuários de substâncias psicoativas, destacados representantes dos movimentos sociais da luta antimanicomial no último período, que se somam às ruas e ao controle social no SUS. Estes sujeitos trazem para disputa institucional a agenda de ampliação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) em consonância com a lei 10.216/2001, cuja implantação incompleta e conturbada em nossos governos, frontalmente atacada pós-golpe, é retomada pela priorização dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Centros de Convivência e Cultura, Residências Terapêuticas, Oficinas de Geração de Renda, ou seja, a implementação de diversos serviços substitutivos, a qual se agregou mais recentemente, a interdição parcial e completa dos Hospitais Custódias no Brasil, instituída pela resolução 487 do Conselho Nacional de Justiça apoiada pelo Ministério da Saúde e entidades/movimentos sociais progressistas.
40. É neste cenário de avanços, que se apresentam também contradições. Se em 2011, durante o governo Dilma, as Comunidades Terapêuticas (CT) foram inseridas na RAPS, através da portaria 3.088/2011, agora em janeiro de 2023 foi anunciado um departamento das CT no Ministério do Desenvolvimento Social, que consolidou recentemente sua nomenclatura em “departamento de entidades de apoio e acolhimento atuantes em álcool e outras drogas”. Ação de governo essa que favorece o setor privatista da saúde, a ala conservadora da igreja e seus partidos, e os tratamentos para usuários em abuso/dependência em substâncias psicoativas fora dos preceitos de direitos humanos. Prevaleceu o financiamento de 214 milhões em 2023 para práticas asilares não laicas focadas na abstinência. É importante destacar que as CT não se enquadram na Resolução de Tipificação dos Serviços Socioassistenciais aprovadas no Conselho Nacional de Assistência Social (n. 13/2014) e possuem diversas denúncias de irregularidades em todo o Brasil, apontadas no Relatório da inspeção nacional em CTs, elaborado pelo Conselho Federal de Psicologia, pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e pelo Ministério Público Federal (2018).
41. Nesse sentido, defendemos que o governo Lula revogue o decreto federal que cria tal departamento, como recomendou o Conselho Nacional de Saúde, e simultaneamente desenvolva ações, sob a coordenação do Ministério da Saúde, voltadas ao controle e vigilância de modo a gradativamente extinguir tais instituições, suspendendo a transferência de verbas públicas e definindo-as como asilos religiosos ou assemelhados, agenciando seu fechamento com a retomada e fortalecimento dos serviços substitutivos na RAPS.
A reconstrução do pacto federativo na Saúde com efetiva regionalização e uma carreira interfederativa, única e nacional do SUS
42. Sem a vigorosa restauração democrática, sem pujante incremento do número de empregos e restauração e aprofundamento dos direitos sociais, o Brasil não superará o caos provocado pelos neofascistas, ultraliberais e neoliberais. Na verdade, além de melhorar os indicadores epidemiológicos e promover o bem-estar social, a política de saúde, a um só tempo, deve almejar combater o desemprego e a desigualdade, contribuindo para o crescimento econômico e a desconcentração de renda, em um novo ciclo de desenvolvimento inclusivo com sustentabilidade ambiental.
43. O entrelaçamento entre política de saúde, crescimento econômico e desenvolvimento ficou evidenciado em plena pandemia de coronavírus, quando, por exemplo, o mercado produtor nacional não fabricou luvas, nem seringas, tampouco agulhas e conjunto de testes diagnósticos em quantidade suficiente para que pudéssemos combater a pandemia. Isso demonstrou que, em nome da soberania sanitária, é estratégico o papel do SUS como instância de dinamização dos complexos econômico-industriais produtivos em saúde.
44. A sustentabilidade e o futuro do SUS, estão umbilicalmente ligados ao compromisso de luta contra a privatização do sistema de saúde e contra as diversas formas de mercantilização no seu interior, mediante a reversão gradual, organizada e acelerada da privatização até agora existente, criando as bases econômicas e institucionais para a reconstrução do Estado na área da saúde. Boa parte dos problemas de gestão do SUS decorrem do seu sucateamento e o Estado, sob controle social, deve privilegiar a progressiva e definitiva alocação de recursos financeiros para a administração pública direta e indireta, como reza a Lei Orgânica da Saúde, até efetivamente os recursos públicos serem investidos de forma planejada apenas nas instituições públicas estatais, ficando a compra de serviço privado complementar destinada para as necessidades imprevistas e emergenciais.
45. Destacamos as questões nacionais de fundo que devem ser enfrentadas para a sustentabilidade e o futuro do SUS por um governo de reconstrução e transformação nacional, conforme enfatizaremos nos pontos que se seguem.
A. Estancar e reverter toda sorte de privatização direta ou indireta do Sistema adotada pelo Ministério da Saúde e pelas Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, porque:
A.1. os processos de privatização direta ou indireta, inclusive da gestão, que foram se amiudando no SUS nos últimos 20 anos, tornaram-no mais custoso ao Erário Público do que se fosse operado exclusivamente pelo Poder Público;
A.2. do ponto de vista da gestão do cuidado fornecido às pessoas e da multiplicidade de serviços prestados aos cidadãos e às cidadãs que envolvem o cuidado às pessoas, tornaram-no incontrolável;
A.3. existem evidências sólidas, extraídas da experiência internacional, sobre o modo mais efetivo para organizar a saúde, ou melhor, Sistemas públicos e nacionais têm melhor desempenho que modelos privados.
B. Impõe-se que a União e todos os Estados da Federação (re) assumam protagonismo maior e de novo tipo no Sistema, dando um basta ao sacrifício que se impôs historicamente às municipalidades e, assim, garantindo a efetiva integração sanitária sistêmica entre os entes federados e a natureza nacional do SUS.
C. Múltiplos fatores na evolução histórica do SUS determinaram a fragmentação do Sistema em redes de unidades de saúde dos entes federados – Municípios, Estados, Distrito Federal e União – em função do Ministério da Saúde e as Secretarias Estaduais de Saúde não terem conseguido integrar o aparato sanitário nacional ao longo do tempo. Tal fragmentação é aprofundada pela existência de:
C.1. múltiplas lógicas organizativas no Sistema (administração direta e indireta, contratos e convênios, organizações sociais – OS e outros);
C.2. relação existente entre hospitais e ambulatórios privados e filantrópicos e o SUS, há décadas, sobre os quais os gestores públicos têm baixa capacidade de controle e governabilidade;
C.3. crescente – e destrutiva! – privatização da gestão de serviços e de redes de unidades de saúde municipais e estaduais, criando-se nos territórios de entes federados gestores privados com poder e autonomia para definir política de pessoal, estratégias de cuidado de usuários, entre outros.
D. Urge conferir uma nova institucionalidade para o SUS, o que pressupõe lutar pela organização e a operacionalização do SUS a partir das 438 Regiões de Saúde existentes no país – processo denominado regionalização previsto na Constituição Federal de 1988 –, buscando superar a fragmentação e garantir a integração sanitária do Sistema.
E. O processo de regionalização demanda o forte protagonismo das Secretarias Municipais de Saúde, das Secretarias Estaduais de Saúde dos Estados e do Distrito Federal, compartilhado necessariamente com o Ministério da Saúde, tratando-se de gestão compartilhada pelos entes federados cuja institucionalização requer aprovação de lei federal específica.
E.1. Lei federal específica com tal finalidade – organização e a operacionalização do SUS a partir das Regiões de Saúde existentes no país – pode ensejar a criação de uma estrutura administrativa estatal nacional, gerida pela Comissão Intergestores Tripartite – Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS) –, sob o acompanhamento do Conselho Nacional de Saúde, no plano federal.
Manter-se-iam, com a ampliação da complexidade de suas funções, o papel institucional das Comissões Intergestores Bipartite estaduais – Secretarias Estaduais de Saúde e Conselhos de Secretários Municipais de Saúde de cada Estado da Federação (COSEMS) – e Conselhos Estaduais de Saúde, no plano estadual; das Comissões Intergestores Regionais – representantes regionais de Secretarias Estaduais de Saúde e os Secretários Municipais de Saúde de municípios localizados em cada Região de Saúde de cada Estado da Federação, no plano regional; e das Secretarias Municipais de Saúde e Conselhos Municipais de Saúde, no plano municipal.
E.2. Lei federal específica com tal finalidade – organização e a operacionalização do SUS a partir das Regiões de Saúde existentes no país – pode decorrer, eventualmente, em outro arranjo jurídico.
F. Criação de Carreira Única nacional e multiprofissional e pactuada do SUS, com compartilhamento interfederativo, contemplando todas as profissões e ocupações existentes no Sistema, na qual seja implantado Plano de Carreira, Cargos e Salários do SUS, que contemple cargos de comando e assessoria técnica na carreira do SUS, cujo concurso de ingresso tome como referência territorial o Estado da Federação e que, na sua estruturação, possibilite a adesão de funcionários municipais, estaduais e federais. Enfim, faz-se tarde a criação de tal instrumento potente para conferir prioridade e nobreza à profissionalização do trabalho no setor público de saúde no Brasil.
46. Ressaltamos que, ainda que um processo de transformação do Brasil pressuponha mudar a essência da chamada lei de responsabilidade fiscal – LRF no sentido de substituí-la por legislação de responsabilidade social, em caráter emergencial, é necessário lutar para que sejam retirados os funcionários da área da saúde – Municípios, Estados, Distrito Federal e União – da base de cálculo da chamada LRF, porque a área da saúde é intensiva no emprego de mão-de-obra, além de também ter atribuições de fiscalização e controle que lhes são próprias e são destinadas a preservar a saúde e a vida das pessoas.
47. É preciso, igualmente, conhecer e eliminar os fatores que causam as doenças, sendo hoje os principais determinantes a superexploração do trabalho, a desigualdade, a pobreza, a fome, o desemprego, a violência, o analfabetismo e a destruição do meio ambiente. É preciso água de qualidade, saneamento básico em cada moradia, alimento sem agrotóxico em toda mesa e transporte público adequado para todas e todos.
48. Esse conjunto de medidas representa um desafio gigantesco, mas com o apoio das frentes políticas e movimentos populares e democráticos estariam reunidas condições mais favoráveis para a luta pela realização dessas reformas estruturais. É uma tarefa extraordinária, mas, neste momento, é vital valorizarmos a solidariedade entre as nações, bem como a função social da propriedade, o planejamento e o mercado interno, desprivatizando, assim, o fundo público e incorporando a sociedade civil autenticamente representativa, consciente e organizada no processo decisório governamental.
49. Por fim, na 17ª Conferência Nacional de Saúde, devemos cerrar fileiras e organizar a luta em torno da defesa, da ampliação e do aprofundamento do SUS, conforme foi inscrito na Constituição Federal de 1988 – CF de 1988, a saber:
A. um SUS de fato nacional – urge que a União e os Estados da Federação (re) assumam protagonismo maior e de novo tipo no Sistema dando um basta no sacrifício que se impôs historicamente às municipalidades;
B. um SUS de fato único – urge superar a fragmentação do Sistema em redes de entes federados que podem fazer – e fazem – o que querem, porém guardam entre si insuficiente interação sistêmica, fragmentação essa agudizada pela avassaladora privatização de redes públicas de saúde por meio de Organizações Sociais;
C. um SUS de fato público – urge estancar e reverter toda sorte de privatização direta ou indireta do Sistema, a começar por aquela realizada por meio de Organizações Sociais;
D. um SUS de fato universal – para todos os brasileiros e todas as brasileiras;
E. um SUS de fato com carreira de âmbito nacional – urge criar uma Carreira Única nacional, multiprofissional e pactuada do SUS, com compartilhamento interfederativo, contemplando todas as profissões e ocupações existentes no Sistema, que na sua estruturação possibilite a adesão de funcionários municipais, estaduais e federais, cujo concurso de ingresso tome como referência territorial o Estado da Federação;
F. um SUS de fato com renovada e deliberativa participação da comunidade; e,
G. um SUS de fato com financiamento adequado – bloqueado desde o seu nascedouro pela classe dominante brasileira que agiu politicamente para obstaculizar o suficiente financiamento federal e, desse modo, dificultar sobremaneira a implantação plena do Sistema.