Sobre a redução da letalidade policial paulista: comemorar e lamentar

Por José Burato (*)

Está sendo amplamente divulgada a brusca redução da letalidade nas ações policiais militares de 19 batalhões no Estado de São Paulo – uns 15% do total de unidades. Uma façanha, caso os dados sejam verdadeiros, alcançada com a simples instalação de câmeras nas fardas dos (as) policiais. Trata-se de um programa de monitoramento da atividade policial nomeada “Olho Vivo”, implantado nesses aludidos batalhões.

Os dados são surpreendentes, porque entre junho de 2020 e maio de 2021 foram totalizadas 207 mortes por intervenção policial nessas unidades, caindo para 41 mortes nos 12 meses seguintes, após a implantação do programa, ou seja, queda de 80%.[1] Surpreende, também, porque nos cinco primeiros meses de 2020 a Polícia Militar paulista bateu o recorde de pessoas mortas em decorrência de suas intervenções em relação aos mesmos períodos desde 2001, foram 442 pessoas.[2]

Mas se por um lado temos motivos para comemorar, por outro temos motivos para lamentar.

Comemoramos finalmente uma redução abrupta da letalidade policial, ainda que em pequena fração do total de unidades policiais militares paulistas e menor ainda em comparação com o total no Brasil. Acreditamos que essa iniciativa será ampliada no estado e, quem sabe, no país. Esse tipo de monitoramento demorou a acontecer, antes tivemos diversas tentativas governamentais para a diminuição da letalidade policial no Estado de São Paulo, todas fracassaram ou tiveram resultados irrelevantes, como, por exemplo, a Resolução SSP-05, de 7 de janeiro de 2013, que pretendia preservar o local dos fatos de ocorrências em que havia vítima de confronto com a polícia, proibindo que ela fosse socorrida por viatura policial[3]; e o mapeamento dos batalhões da PM que apresentassem maior incidência de ocorrências com mortes por intervenções policiais, em 2015, o que poderia resultar na substituição de seus comandantes e no afastamento dos policiais envolvidos.

Em 2012 chegou-se ao cúmulo de o estado oferecer prêmios em forma de gratificação salarial para o policial militar que “matasse menos”. Vale lembrar que a letalidade policial já foi estimulada monetariamente no Estado de São Paulo, entre 1974 e 1978, quando Erasmo Dias, estando à frente da Secretaria de Segurança Pública, “pagava gratificações” aos policiais que matassem criminosos[4].

Não é de agora que pressionamos e esperamos ações eficazes dos governantes para a solução do problema da alta letalidade policial, mesmo neste país em que a violência de estado é notoriamente proporcional à violência econômica, e sabendo que essa violência é histórica e até necessária ao estado, segundo a lógica capitalista periférica superexploradora e atroz que o estado representa, defende e mantém.

Por outro lado, quando pensamos nas estatísticas sobre mortes por intervenção policial no Estado de São Paulo e no Brasil, lamentamos que os dados divulgados sobre a redução da letalidade nessas 19 unidades paulistas possam indicar, caso essa situação ora refletida possa ser considerada uma amostra, que 80% dos casos de mortes por intervenção policial em todos os anos anteriores e em todos os estados brasileiros decorreram de abusos policiais. Isso representaria, para termos ideia, 29.621 pessoas mortas no Brasil por conta de abusos policiais, de 2013 a 2020, e 1.344 pessoas apenas nos anos 2019 e 2020, no Estado de São Paulo.[5]

É claro que uma amostra tão limitada não pode ser considerada legítima para uma análise voltada ao passado, como essa que fizermos no parágrafo anterior – nenhuma análise séria pode ser baseada em amostras limitadas. Entretanto, esses dados abrem possibilidades diversas para as reflexões e debates sobre o tema da letalidade policial, porque nunca tivemos tal parâmetro para análises e porque sempre tivemos muitas denúncias de execuções sumárias e de ocorrências cujos registros não corresponderiam à verdade. Seguimos por tanto tempo acompanhando essas denuncias pelas organizações de direitos humanos nacionais e internacionais, incluindo a ONU, mas nunca tivemos uma ação concreta do estado que pudesse revelar números tão expressivos quanto os revelados pelo citado programa.

Lamentamos porque as vidas humanas que se perderam são irrecuperáveis, assim como a dor e sofrimento das famílias. Lamentamos porque a letalidade policial é uma doença que asfixia a sociedade brasileira e depõe contra a civilização. É recente a ocorrência em que um homem morreu em uma ação policial em Sergipe, e que provavelmente seria registrada apenas como mais uma morte por resistência à prisão, caso a ação não fosse filmada por populares.

Ainda é possível lembrarmos a entrevista de Fernandes Neves, ao jornalista Rodrigo Paneghine, da Rede Brasil Atual, quando assumiu a Ouvidoria das Polícias de São Paulo, em 2014, demonstrando preocupação em reconquistar a confiança da sociedade paulista em suas polícias.[6] Ocorre que a qualidade de uma democracia depende em grande medida da qualidade das polícias e da confiança da população nessas polícias.

Outra coisa a se lamentar é a necessidade de programas coercitivos ou inibidores de ações para as policiais, porque não há programa para a humanização que seja eficaz enquanto a segurança pública for militarizada. O conservadorismo político brasileiro se opõe à desmilitarização da polícia e do sistema de segurança, os discursos de guerra ainda dão frutos políticos eleitorais – temos a prova disto na figura do atual chefe de estado brasileiro. Dessa forma, interessa em determinados momentos o elogio às ações policiais que resultam em muitas mortes[7], mas se faz necessário a criação de programas para conter a violência policial em outros momentos, especialmente diante da pressão das organizações de defesa da vida e dos direitos humanos.

O lucro político com a violência em geral parece ser um dos principais motivos para que não ocorra uma transformação qualitativa no sistema de segurança pública nacional. Não bastam as estatísticas e os diagnósticos de todos os meses e anos, são esforços necessários e elogiáveis, mas não bastam.

Essa luta deve ser travada, sem dúvida, no campo político. É uma responsabilidade de todas as organizações populares e da classe trabalhadora. É um dever social em nome da civilização. Os sindicatos, as centrais sindicais, os partidos progressistas e socialistas, as organizações de defesa dos direitos humanos e da cidadania e os movimentos populares devem se mobilizar e mobilizar a população para o enfrentamento da lógica de guerra e a militarização do sistema de segurança pública no Brasil. Enquanto a preocupação for o protagonismo na luta, nada conseguiremos. Protagonista é a vida, a igualdade em dignidade e os direitos humanos.

Se esperamos e cobramos do estado providências que amenizem a realidade ora exposta, com maior legitimidade esperamos e cobramos das organizações supracitadas que cumpram os seus papeis.

Ou transformamos definitivamente a velha estrutura do sistema de segurança pública ou nos condenamos a eternizar a reprodução da violência e letalidade policial no Brasil, com suas consequências irreparáveis.

(*) José Burato é graduado em filosofia, mestre em gestão de políticas e organizações públicas e doutorando em economia política mundial. Ex-sargento da Polícia Militar do Estado de São Paulo, Ex-chefe do setor de Estatística e Inteligência da Secretaria de Segurança Urbana de São Bernardo do Campo. Autor de “Ditadura no Gatilho: a institucionalização da violência policial”, militante da Articulação de Esquerda do Partido dos Trabalhadores.


Livro em pdf disponível em:

https://guardianoseguranca.com.br/conteudo.php?p=artigos-e-livros


[1] Saiba mais em Após um ano de uso de câmeras em uniformes, mortes por policiais caem 80%, de Wanderley Preite Sobrinho, publicado em 05 de julho de 2022, site UOL, disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/07/05/cameras-no-uniforme-da-pm-letalidade-policial-intervencao-lesao-corporal.htm.

[2] Veja em Número de mortos pela PM em 2020 é recorde em SP; policiais dos batalhões da região metropolitana mataram 70% mais, por Cíntia Acayaba e Léo Arcoverde, publicado no G1-Globo, 14 de julho de 2020, disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/07/14/numero-de-mortos-pela-pm-em-2020-e-recorde-em-sp-policiais-dos-batalhoes-da-regiao-metropolitana-mataram-70percent-mais.ghtml>.

[3] No ano anterior à publicação da Resolução SSP-05/2013, 95% das vítimas em confronto com a Polícia Militar e que foram socorridas por viaturas policiais morreram durante o trajeto ou no hospital. Com a Resolução em vigor, foi constatada redução de 34% das mortes causadas por ação policial durante os seis primeiros meses de 2013. Essa medida foi combatida e derrubada na justiça, pois era considerada uma ordem para a omissão de socorro. Saiba mais sobre essa redução da letalidade policial em artigo de Camila Maciel, intitulado Em São Paulo, 95% dos feridos transportados pela polícia morrem no trajeto, publicado em 30 de julho de 2013, no site Rede Brasil Atual, disponível em: <https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2013/07/95-dos-feridos-em-confronto-policial-transportados-pela-policia-morrem-no-trajeto-5435/>; e sobre a Resolução em Governo de SP proíbe Polícia de socorrer vítimas, publicado em Revista Consultor Jurídico – Conjur, 8 de janeiro de 2013, disponível em: <https://www.conjur.com.br/2013-jan-08/governo-sp-proibe-policia-socorrer-vitimas-crimes-graves>.

[4] Informação de Bruno Paes Manso, em artigo sobre estratégia do estado para a redução da letalidade policial, intitulado PM que matar menos terá gratificação maior, publicado em 9 de agosto de 2012, no Jornal da Tarde, Caderno JTCidade, p. 3.

[5] De 2013 a 2020 morreram em intervenções policiais 37.027 pessoas no Brasil, e 1.681 pessoas no Estado de São Paulo, nos anos 2019 e 2020. Veja estatística em <https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/07/4-as-mortes-decorrentes-de-intervencao-policial-no-brasil-em-2020.pdf>; e <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/07/15/letalidade-policial-e-a-mais-alta-da-historia-negros-sao-78-dos-mortos.htm>.

[6] Veja a entrevista em: <https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2014/01/novo-ouvidor-das-policias-de-sao-paulo-quer-reconquistar-confianca-da-sociedade-5953/>.

[7] Um exemplo disso foi o elogio de Doria e de Bolsonaro à ação policial em Guararema, em abril de 2019, com 11 pessoas mortas. Veja em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/04/05/analise-acao-da-rota-foi-eficiente-mas-doria-e-bolsonaro-erram-ao-elogiar.htm>.

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