Orientação da Universal pretende controlar votos de seus membros. O resultado é um texto que é uma aberração teológica, política e ética
Por Paulo Sérgio de Proença (*)
Não causou espanto o editorial publicado em 23 de janeiro deste ano na Folha Universal intitulado “5 motivos que mostram que é impossível ser cristão e ser de esquerda”, assinado pelo bispo Renato Cardoso, genro e virtual sucessor do patriarca daquela empresa religiosa. Provocou indignação.
O documento pretende ser um guia para fieis que se recusam ou não são incentivados a pôr seus neurônios em funcionamento, terceirizando, assim, o pensamento. No fundo, a intenção mal disfarçada é controlar o (voto do) rebanho, de modo a garantir que os interesses dos donos da Igreja não sejam contrariados. Essa organização tem sido historicamente aliada ao poder, qualquer que seja, em negação a um dos mais importantes ensinos de Jesus: “Meu reino não é deste mundo” (João 18.36).
Todo o conteúdo do editorial é composto de acusações à esquerda; contudo, as menções evocadas se enquadram como uma luva no programa ultradireitista das hostes bolsonaristas: caos e desgoverno. O texto é, assim, uma farsa, uma manipulação que procura jogar uma cortina de fumaça nas trapaças da própria Universal.
O primeiro motivo faz menção à família: “A esquerda prega contra o casamento convencional e incentiva questões como a liberdade do uso de drogas […] Com a sociedade doente, os esquerdistas podem posar de ‘defensores da liberdade’ para ganhar votos”. Não há miopia mais devastadora do que essa miragem. A esquerda não é contra o casamento convencional – nunca foi. Nem incentiva a liberdade para as drogas. A esquerda defende a Liberdade, acompanhada do que exige o devido respeito às escolhas individuais. Se a sociedade está doente, a causa não é – nunca foi – a esquerda. Aliás, a religião pode contribuir para o adoecimento da sociedade, por meio de pastores e instituições que querem controlar – ou impedir – o pensamento do rebanho, em comportamento de seita. A esquerda defende a Liberdade, principalmente a de pensamento.
O segundo motivo discorre sobre formas de governar e apresenta esta pérola: “O Império Romano nada mais era que uma ditadura disfarçada de democracia”. Não era democracia porque perseguiu o cristianismo, ainda diz o texto. Há, aqui, anacronismo imperdoável. Democracia é um conceito moderno que não se aplica à Palestina do século I. Nem o regime que havia nas cidades gregas pode ser comparado ao que concebemos hoje como democracia. O que há, no texto da Universal é a tentativa de superpor duas realidades históricas distintas e associar a esquerda ao império romano-inimigo do cristianismo. O PT, por acaso, proibiu o cristianismo? De fato, quem está matando Jesus Cristo é essa pregação alienada, que pretende acorrentar a liberdade de pensamento dos seguidores dessa empresa religiosa.
Da oposição entre crença cristã e marxismo se ocupa o terceiro princípio. De um lado está a existência de Deus; de outro, o marxismo, “base de toda e qualquer ideologia esquerdista”, que tem por princípio o materialismo dialético que “nega a existência de Deus”. Nova tentativa de torcer as ideias. O materialismo dialético é um princípio metodológico: para investigar e compreender o mundo, valem somente as condições materiais, isto é, a realidade objetivamente observada e descrita, para cuja finalidade as referências abstratas não oferecem fundamento seguro. Assim, o materialismo dialético não nega a religião nem Deus; apenas assume que eles não oferecem princípios metodológicos para explicar cientificamente os fenômenos reais.
O quarto motivo desafia princípios básicos de exegese e de hermenêutica bíblicas, o que vale para todo o documento. Associar as noções de direita e de esquerda do mundo antigo à cultura política atual é desrespeitar de forma irresponsável o conteúdo bíblico. De fato, nas Escrituras, o lado direito é indicador de coisa boas, ao contrário do significado de esquerdo. Trata-se, contudo, de uma noção partilhada por diversas culturas, que associavam a noções espaciais certos valores: o bem era associado ao alto e ao lado direito; o mal, ao baixo e ao lado esquerdo. Tais noções, ainda hoje, se fazem presentes entre nós. Por exemplo, o termo baixo indica noções negativamente valorizadas: quando dizemos “fulano é baixo” queremos mostrar que tem valores morais questionáveis (claro que o sentido literal é possível, a depender do contexto); baixaria também pode ser entendido nessa direção. O mesmo ocorre com o termo esquerda; até recentemente, crianças canhotas chegavam a apanhar para aprender a escrever com a mão direita e jogadores de futebol teimam em entrar em campo com o pé direito, o que não deixa de ser superstição. Portanto, essa antiga organização cultural nada tem a ver com posições políticas, inclusive porque essa distinção entre tendências políticas de esquerda ou de direita apareceram somente no período da Revolução Francesa, pelo fato de que ocuparam a posição esquerda quem era progressista e apoiava a revolução e os conservadores, que apoiavam a monarquia, ocuparam o lado direito dos assentos na Assembleia Nacional. Como se vê, foi uma motivação meramente acidental essa distinção. Direita e esquerda como elementos identificadores de tendências políticas nada têm a ver com a cultura bíblica.
O quinto e último motivo apela à unidade para, subliminarmente, indicar que não deve haver dissenso em torno da orientação que a Universal dá, o que estaria em acordo com as orientações de Deus. A esquerda, alega o texto, incentivaria o desacordo, “apesar de pregar falsamente que é a favor das diferenças”. O texto termina assim: “Quem instiga o ódio é o diabo”. Concordo com esse final: olhem para Bolsonaro e encontrarão a exata feição diabólica do ódio.
Para fazer avaliação desse texto poderíamos perguntar: se tivéssemos que classificar Jesus, pelo que ele disse e fez nos Evangelhos, diríamos que ele seria de direita?
O texto da Universal beira a barbaridade. É uma aberração teológica. É uma manipulação política. É um embuste ético imperdoável. É uma afronta à inteligência dos simpatizantes dessa empresa religiosa e de todos nós.
Sou cristão – e de esquerda!
(*) Paulo Sérgio de Proença é ex-pastor e Professor da Unilab-BA