Por Marcos Jakoby (*)
No dia 27 de março, aconteceu a segunda das 13 jornadas de debates sobre o socialismo no século 21, promovida pela Fundação Perseu Abramo, pela Escola Nacional e pela Secretaria de Formação do PT. Assisti à segunda mesa, que teve como tema “A luta pelo socialismo no século XX e a experiência soviética, 30 anos depois da dissolução da URSS.” Os expositores eram Breno Altman, Tatau Godinho e Tarso Genro (disponível aqui)
A fala de Tarso foi a que mais me suscitou questões das quais tenho discordância ou um ponto de vista diferente, por isso, os comentários que faço neste texto dirigem-se à exposição realizada por ele. Creio que com as outras duas falas tenho mais convergência e como se trata de uma jornada de “debates”, acredito que seja mais útil abordar esses dissensos.
A fala de Tarso tem muitas idas e vindas, mas a minha interpretação é que o conjunto da obra aponta para algumas direções: 1) estabelece-se a social-democracia como eixo estruturante de análise do movimento socialista internacional; 2) uma tentativa, a meu ver, infrutífera, de apresentar uma perspectiva teórica superior à socialista “rupturista” e à social-democracia “clássica”; 3) uma crítica permeada por reducionismos acerca da Revolução Russa e de algumas correntes marxistas; 4) a defesa de uma social-democracia renovada.
Tarso inicia a exposição mencionando que a Revolução Russa é merecedora de “homenagens” pelo seu legado (embora queira concentrar a sua fala em outros pontos): “que é a questão da derrota do nazifascismo; a derrota de uma sociedade capitalista com traços feudais e a alavanca para um progresso extraordinário, que teve reflexo em toda a humanidade; e a manutenção da ideia socialismo, da ideia de igualdade, a ideia de justiça que permeou sempre os grandes momentos da Revolução Russa”.
Antes de avançar em sua análise, Tarso faz uma observação metodológica acerca do marxismo, para quem “ela [a teoria marxista] é muito mais uma filosofia do sujeito do que uma teoria econômica.” Para Tarso, a meu juízo, no que tange à economia, o marxismo sempre se inclina ao economicismo, ao mecanicismo e ao determinismo. Crítica muito difundida pelos que combatem o marxismo. E quem seria o sujeito da filosofia de que menciona? É o proletariado fabril do início do século XX; e como o “sistema do capital destruiu esse sujeito”, logo o marxismo seria…. anacrônico.
É uma forma muito ossificada de entender o marxismo. A composição do capital e do trabalho está em constante mudança, assim como a composição das classes sociais. A noção principal de classe trabalhadora no marxismo, é de que ela é formada por todos aqueles que são obrigados a vender a sua força de trabalho ao capital para garantir a sua subsistência. A visão de que no marxismo a classe trabalhadora se reduz ao operário fabril gera esse tipo de distorção que permeia a visão de Tarso.
Essa interpretação talvez tenha origem na ideia de que classe trabalhadora inglesa analisada por Marx, ou a classe trabalhadora urbana da Rússia de Lênin tinham como a principal fração o operariado das grandes fábricas, mas isso não significa que eles tivessem reduzido a classe trabalhadora à essa fração. Se a verificarmos hoje, evidentemente, em muitos países de capitalismo avançado, o operariado fabril reduziu-se enquanto outras frações cresceram. Mas nem sempre é dito que esse mesmo operariado fabril aumentou em outros países, como na China, na Índia, etc. Claro que possivelmente não na mesma proporção, até em vista do desenvolvimento científico e tecnológico.
E como dissemos, a composição da classe se altera o tempo todo. Vivenciamos no Brasil um processo de desindustrialização há décadas, mas se construirmos uma via de desenvolvimento onde a industrialização jogue um grande peso, haverá mudanças novamente na composição da classe. Não estou dizendo que o proletariado fabril será majoritário do ponto vista social, mas pode crescer numericamente e de importância econômica e política. Por outro lado, hoje mais pessoas vivem a partir da sua venda da força de trabalho do que antes. Seja como for, não entendo que o “sujeito revolucionário” em Marx, Lênin ou no marxismo esteja congelada em uma fotografia onde somente perfilam operários da grande indústria.
Destaco mais um trecho de sua fala que vai também nessa direção: a “teoria econômica do marxismo teve predicado extraordinários, como examinar, fazer uma análise profunda e radical do sistema do capital e fazer com que nós compreendêssemos o fenômeno do capitalismo, particularmente até o fim do predomínio do capitalismo industrial clássico, portanto até a década de 1950, a década de 1960”. Tarso, mais uma vez, parece reproduzir uma crítica simplista ao marxismo, a de que ele seria perspicaz em analisar o capitalismo industrial, de tipo fordista, mas que perderia sua força explicativa a partir das transformações que ocorreram a partir de meados do século passado.
O marxismo é uma crítica ao capitalismo de conjunto e que aponta para as possibilidades de superação desse sistema. É equivocado, a meu juízo, reduzi-lo à uma crítica do capitalismo em sua dimensão industrial. Por exemplo, o próprio marxismo lapidou muitos dos conceitos de diferentes formas de capitalismo: mercantil, agrário, industrial, monopolista, financeiro, imperial e assim adiante. Se a fração do capital financeiro hoje predominante, em nada diminui sua capacidade de compreender o capitalismo. Pelo contrário, o capitalismo hoje é mais, e não menos, hegemônico no mundo, bem como nunca tantas pessoas viveram sob a égide das relações de trabalho capitalistas. Portanto, “particularmente” agora que o marxismo se faz mais necessário do que nunca na luta anticapitalista.
Mas retornando propriamente à fala de Tarso. Aquele marxismo, segundo ele, informava um “tronco originário: a visão social-democrata do início do século passado” que sofreu um grande impasse e uma grande divisão: “daí saiu o bolchevismo revolucionário e saiu também o projeto social-democrata [reformista]”.
Não sei porque Tarso reduz a ala socialista, que não capitulou às burguesias nacionais na Primeira Guerra Mundial e ao projeto reformista, de “bolchevismo”, sendo que essa divisão se deu entre os socialistas de outros países. Intencionalmente ou não, é um termo muitas vezes utilizado para quem quer desqualificar a Revolução Russa, como se fosse a imposição da vontade, e de um senso de oportunidade, de uma pequena vanguarda. E como foi a imposição de uma vanguarda, logo se tornaria uma experiência autoritária, burocrática e degenerada.
Qual o caminho que Tarso propõe? “E eu sou da opinião que para que nós possamos reelaborar a teoria socialista contemporânea posterior às grandes transformações tecnológicas e de organização do trabalho que ocorreram nos últimos quarenta anos, nós temos que voltar ao começo do século passado e compreender o que foram esses dissensos e quais foram seus resultados”.
Mas o próprio Tarso reconhece que “se nós analisarmos esses dissensos exclusivamente a partir de uma visão de superioridade da experiência bolchevique no que se refere a grandes transformações econômicas e sociais, em comparação ao que resultou a socialdemocracia, nós não temos dúvidas de que a radicalidade da revolução russa foi expoente da social-democracia no começo do século passado.”
Curioso que se tenha dado ênfase em compreender os “dissensos” para “reelaborar a teoria socialista”, mas ao mesmo tempo afirma-se que as duas experiências não tenham mais quase nenhuma “universalidade”. Ou seja, ele não demonstra como esses dissensos podem contribuir para atualizar a teoria socialista, dedica-se na verdade a demonstrar que ambas estão superadas e a apresentar, a meu ver, uma falsa equivalência entre a social-democracia reformista e o “bolchevismo revolucionário”.
Se de um lado temos a degeneração e a capitulação da social-democracia clássica, de outro lado temos a Revolução Russa que “se transformou numa revolução burguesa tardia através da hegemonia das que as classes dominantes, hoje classes dominantes russas, foram preparando através de uma burocracia interna ao Estado, que dirigiam o processo de acumulação no Estado, que preparavam esse processo de acumulação para apropriação privada.”
Na linha “nem-nem”, Tarso segue “então tem uma tragédia histórica que nós temos que examinar com prudência. Também temos que perceber que a experiência socialdemocrata hoje é o leito mais adequado para a reprodução para do projeto neoliberal. Então o fracasso da experiência soviética como socialismo realmente existente produz e tem ao seu lado o fracasso da experiência socialdemocrata que teve um curto período de vigência nobre”.
E pelo que se deduz da sua fala, os socialistas que pretendem construir uma ruptura com o capitalismo, e que enxergam a na Revolução Russa elementos de universalidade, incorrem em um grande erro: “a minha grande divergência com os companheiros que se referenciam na Revolução Russa como uma experiência universal, que ela tem que ser integrada de maneira acrítica no presente, é essa. Eu acho que não. A Revolução Russa é uma grande experiência universal, mais importante para o futuro da humanidade do que a que a Revolução Francesa, mas que ela perdeu sua universalidade.”
Não sei de quem Tarso está falando, pois o socialismo de tipo soviético sempre foi objeto de muitas críticas no PT desde a sua fundação. Não vejo quem realmente defenda a “integração de sua experiência” de forma “acrítica”. Portanto, é uma polêmica falsa, mas faz parte de um truque discursivo para pintar os socialistas, que almejam uma revolução, como anacrônicos.
Agora, o que podemos entender da afirmação de que a Revolução Russa perdeu a “sua universalidade”? Da ideia de que para construir o socialismo a classe trabalhadora precisa conquistar o poder de Estado? De que o Estado tem um caráter de classe? De que é necessário construir um Estado de outro tipo? Por outro lado, é evidente que cada classe trabalhadora faz o seu próprio caminho na luta pelo socialismo, é Tarso que fica forçando a mão em achar que os socialistas de hoje querem simplesmente replicar a experiência soviética, isso não corresponde às formulações dos que hoje trabalham para construir o socialismo em nosso país.
Para ele, no entanto, a Revolução Russa perdeu sua “a sua universalidade porque a evolução do sistema do capital destruiu o seu sujeito” que é “aquele grupo consciente estruturado, aquele grupo não consciente estruturado na fábrica moderna, pela intelectualidade revolucionária iria tomar conhecimento de que ele deveria liderar uma revolução”. Aqui Tarso volta a uma ideia simplificada do que o marxismo e a maior parte dos socialistas sempre compreenderam como classe trabalhadora. Ademais, muitas das revoluções do século XX contaram com a participação decisiva de outras classes sociais, como o campesinato e de outras frações da classe trabalhadora. Por outro lado, creio que a maioria dos socialistas não negam a constatação óbvia de que a classe trabalhadora hoje é muito mais fragmentada, diversa, heterogênea do que antes.
Agora se a universalidade que Tarso busca é a identidade da configuração da classe trabalhadora entre diferentes países e tempos históricos, como sujeito transformador, ele não irá encontrar universalidade em nenhuma experiência revolucionária ou socialdemocrata. As classes trabalhadoras têm diferentes configurações que correspondem à sua realidade histórica e social.
Tarso fala das circunstâncias históricas que permitiram o surgimento da experiência histórica da social-democracia do pós-guerra e que impulsionou o Estado de Bem-estar Social. Faz esse resgate para dizer que “nesse sentido, nós tivemos aqui no Brasil, com o governo do ex-presidente Lula, uma experiência social-democrata tardia” e que fez “através de uma típica conciliação de classe”, onde Lula soube levá-la “a melhor possibilidade naquele tempo histórico para a classe trabalhadora. Eu não sei se tinha outra saída”.
Discordo de Tarso, não acho que tenhamos tido uma experiência “socialdemocrata”. Embora os inúmeros avanços que conquistamos e a melhoria de vida experimentada pelo povo, faltou muito para que possamos comparar a nossa experiência com as experiências clássicas da social-democracia, que vale lembrar foram marcadas por grandes reformas sociais, onde o capital financeiro não era hegemônico e onde os capitalistas tiveram que contribuir economicamente com o Estado de Bem-estar Social. E como o próprio Tarso ressaltou, são circunstâncias históricas muito diferentes que permitiram a experiência europeia e que atualmente não existem.
O limite da hegemonia do capital fianceira é levantada pelo próprio Tarso, mas de uma forma peculiar. Ele menciona que a ideia social-democrata clássica não terá “mais vigência a partir de agora. Eu diria a partir do predomínio do sistema financeiro, do capital financeiro, sobre a vida econômica das nações, sobre a vida financeira das nações, que não dão margem de negociações internas para que os blocos capitalistas hegemônicos façam negociações em nome próprio, estarão sempre referenciados e negociando com o sistema financeiro global que controla os bancos centrais dos países, que controla o orçamento dos países, que controla a estrutura financeira dos países em função do controle que eles têm da dívida pública.”
Lendo assim, parece que o predomínio do capital financeiro é algo quase etéreo, onipresente e inevitável, de tal maneira que nem mesmo os “blocos capitalistas hegemônicos” de cada país podem fazer negociações em “nome próprio”, imagine-se então se o restante da sociedade teria condições de o fazer. Tarso coloca uma cunha onde não existe, entre o sistema financeiro e os “blocos capitalistas hegemônicos nacionais”. Estes blocos fazem parte do bloco histórico comandado pelo capital financeiro, de modo integrado e orgânico, onde a dinâmica do capital “nacional” e “produtivo” é parte do sistema financeiro.
A financeirização que hoje assistimos é uma evidência da profundidade crise vivenciada pelo capitalismo em sua dimensão “real” e produtiva. Se quisermos superarmos essa crise não basta enfrentarmos o sistema financeiro, por mais fundamental que isso seja, mas derrotarmos de conjunto os capitalistas.
Essa perspectiva fica mais evidente quando Tarso desenvolve algumas linhas gerais do que seria uma social-democracia renovada, diz ele, “se estamos pensando num período novo dentro do regime democrático burguês, um novo projeto democrático e popular, análogo ao que o Lula desenvolveu, ele não é uma ideia socialista, ele é uma ideia social-democrata renovada que deve fazer uma crítica radicalizada do projeto social-democrata vigente na sociedade industrial clássica”.
E prossegue “ele vai ter que compreender, por exemplo, que a política externa no próximo período vai predominar sobre as condições internas. Que das políticas internas e da capacidade de negociação que um governo democrático e popular e progressista vai estabelecer em escala mundial, que ele vai retirar as possibilidades de financiamento do Estado e internalizar estas negociações para um outro projeto interno, para outro pacto interno”.
O Brasil é uma das maiores economias do mundo, mas as “possibilidades de financiamento do Estado” dependem da “capacidade de negociação” em “escala mundial”? Claro, isso vale para quem acha que há contradições entre “bloco capitalista hegemônico nacional” e o sistema financeiro internacional e de que haveria condições de estabelecer com partes deste bloco um “pacto interno” em nome da “salvação nacional”. E também para quem não quer mexer de modo mais estrutural com a riqueza e a propriedade desse “bloco capitalista”.
Se por um lado Tarso desenvolve algumas ideias do que seria uma social-democracia renovada, por outro lado afirma que a revolução e a social-democracia clássica “não são mais paradigmas para o desenvolvimento de projetos emancipatórios em países como o Brasil”. Mas na toada de idas e vindas, ele diz mais à frente que “não terminou nem a ideia de socialismo, nem a ideia social-democrata. São dois polos emancipatórios que estão colocados na história da humanidade dentro do progresso e da barbárie capitalista que vão continuar se opondo”.
Mais à frente, Tarso volta à realidade nacional, de “contrarrevolução fascista” para desenhar, a meu ver, mais algumas linhas dessa social-democracia renovada “presidida pela ideia de salvação nacional”. “Isso significa, não fazer concessões ao capital financeiro, mas demarcar de maneira frontal com o domínio que ele exerce sobre os processos políticos, econômicos e sociais dos países. Isso começa por exemplo como um ato revolucionário de acabar com a autonomia do Banco Central. Sem isso não se pode pensar uma sociedade muito mais justa do que aquelas que nós construímos inclusive nos anos do presidente Lula. Essa questão da não submissão do Banco Central, de acabar com independência do Banco Central de maneira plena, ela só poder se feita também através daquele primeiro requisito, de uma política externa de cooperação interdependente com a soberania”.
E cita mais algumas medidas: “um projeto de taxação das grandes fortunas, determinar alíquotas sobre o rendimento do capital, tributação das heranças dos riquíssimos e uma série de medidas que são chocantes para a classe dominante local”. Assim como Haddad na primeira mesa, fico impressionado que parte das nossas principais lideranças ao falar de socialismo (ou mesmo de social-democracia renovada), quando descem para o terreno programático, não conseguem ir além da taxação e tributação dos capitalistas e do enfrentamento “revolucionário” à independência do Banco Central.
Tarso afirma que “não terminou nem a ideia de socialismo, nem a ideia social-democrata”. Mas pouco tratou concretamente do que seria um novo projeto socialista e de como a crise atual do sistema capitalista poderia ser enfrentada a partir de uma perspectiva socialista. Sobre a ideia de “social-democrata-renovado”, desenhou alguns contornos do que seria esse projeto, e, a meu ver, não é capaz nem mesmo de superar o projeto social-democrata clássico criticado por ele. Talvez em uma próxima oportunidade. Do contrário, será necessário perceber com outras lentes a contribuição do marxismo e dos socialistas “rupturistas”.
(*) Marcos Jakoby é professor e militante do PT
(**) Textos assinados não refletem, necessariamente, a opinião da tendência Articulação de Esquerda ou do Página 13.