Domingo não levaremos tia Lena para votar.
Ela se foi hoje, aos 93.
Dizíamos que ela nos enterraria todos, mas o pulmão não deixou.
O pulmão da tia Lena era um milagre da natureza. Tuberculosa quando jovem, fumante inveterada a vida inteira. Esperávamos que ela parasse depois que instalou um marca-passo dois anos atrás, não teve jeito. O corpo estava completamente desequilibrado por um impressionante desvio de coluna.
Mas a cabeça inteira.
A cabeça era aquilo de que ela mais se orgulhava.
Tia Lena era minha memória viva. Agora na pandemia passei sete meses sem vê-la, com medo de levar para ela algum vírus desgraçado. Mas gostava, nos dias de sol, de sentar na varanda e conversar longo tempo com ela.
E aí ela me contava histórias.
Tia Lena escrevia poemas. Nise da Silveira dizia de Manuel Bandeira, vizinho delas em Santa Teresa, que ele roubava os poemas da tia Lena.
Quando a Nise foi presa, em 1936, pela polícia do Getúlio, minha avó a visitava regularmente no presídio da Frei Caneca. Ia carregando tia Lena e minha mãe, cada uma com uma boneca de pano. As bonecas iam cheias (com documentos do Partido Comunista) e voltavam vazias.
Tia Lena nunca foi muito militante. Mas era esperta em arrecadar fundos para o Partido. Por isso foi rainha da “Imprensa Popular”, jornal diário do PCB durante a legalidade de 1945-1947 no Rio.
Adolescente, na Tijuca, nos tempos da rua Dr. Satamini, ela teve um namorado, Sergio, por quem foi apaixonada.
Mas minha avó impediu o casamento porque a família não era do partido. Verdade que a mãe do Sergio disse à tia Lena que comunista comia criancinha. Ela respondeu que não comia não; que na casa dela tinha muita criança e ninguém tinha sido comido.
Pois o Sergio reapareceu, depois de muitos anos, e passou a telefonar regularmente para tia Lena nas grandes datas. Queria vê-la; mas ela achou que não seria uma boa coisa.
Vai ser muito duro não ter mais tia Lena para conversar. Ela vai ser cremada amanhã [hoje] às 18 horas no Caju. Não haverá velório.
A foto é da eleição de 2018, a última em que tia Lena votou.
Recado de Tia Lena: “Ele não!”.
(*) Angelina Peralva é professora