Tiro no pé não mata

Por Valter Pomar (*)

 

Ouvi de várias pessoas diferentes a opinião segundo a qual eles deram um tiro no pé.

Pode ser. Não temos este monopólio.

Mas nem tudo aponta nesse sentido.

Por exemplo, a tal pesquisa Atlas divulgada hoje.

Segundo essa pesquisa, 75,8% discordam do que ocorreu domingo e 69% apoiam a intervenção federal decretada por Lula.

Mas 38% consideram que a ação de domingo foi “completamente justificada” ou “justificada em parte”; e 42% dizem que o cavernícola não é responsável pelo ocorrido.

Para piorar, 39,7% acreditam que Lula teve menos votos do que Bolsonaro.

Evidente que a pesquisa tem uma metodologia e um perfil que explicam, em parte, os resultados.

Outras pesquisas virão e podem apontar resultados diferentes.

Mas, para além das pesquisas, tem a vida real, com as declarações de Moro, Hamilton Mourão, atentados contra torres de alta tensão e convocação de novas manifestações de golpistas.

A “teoria do tiro no pé”, além de ser prematura, acaba contribuindo para minimizar o ocorrido e, por decorrência, nos leva a baixar a guarda.

O que houve não foi uma invasão de prédio público, com danos ao patrimônio.

O que houve foi uma tentativa fracassada de golpe de Estado.

Especialmente nisto – ser ou não uma tentativa de golpe de Estado – discordo totalmente do texto reproduzido ao final, de autoria de Stedile e Pagotto.

O fato de ter sido como foi e o fato de ter dado errado não mudam a natureza golpista do fato.

Aliás, noutros países (no Brasil, inclusive) é comum vermos um golpe de Estado ser precedido por um ensaio canhestro.

O tancazo no Chile, por exemplo, foi um ensaio do 11 de setembro.

Detalhe: depois do tancazo, o general Prats propôs a Allende trocar vários generais.

Allende não quis.

E a troca ocorrida foi: sai Prats, entra Pinochet.

Lembrei disto ao ler, no texto abaixo reproduzido, a notícia de que “no máximo, apenas os militares devem se (sic) escapar”.

Apenas?

Apenas??

Enquanto as forças armadas estiverem comandadas por golpistas, enquanto o ministro da Defesa for quem é, corremos alto risco.

Por tudo isso, nem que seja por cautela, vamos lembrar que tiro no pé (geralmente) não mata.

Especialmente no caso de quadrúpedes, vacas fardadas inclusive.

(*) Valter Pomar é professor e membro do diretório nacional do PT

***

SEGUE O TEXTO COMENTADO

Os fascistas deram um tiro no pé

10/01/2023

Por MIGUEL ENRIQUE STEDILE & RONALDO TAMBERLINI PAGOTTO*

Análise dos fatos no calor da hora

Jair Bolsonaro só chegou ao poder, porque a burguesia, desesperada com a crise capitalista, com a falta de alternativas em suas fileiras e a possibilidade da vitória da esquerda com Fernando Haddad, apostou suas fichas no capitão. Apesar de saber da ideologia fascista do capetão, precisava jogar todo peso da crise na classe trabalhadora, com a retirada de direitos trabalhistas e previdenciários, impor limites aos gastos sociais e assaltar os cofres públicos.

O bolsonarismo que se gerou representava uma coalizão de forças identificadas com a direita e a extrema direita, aproveitando uma janela de oportunidade histórica. Faziam parte desta unidade o lavajatismo, o mercado financeiro, os evangélicos, o agronegócio, varejistas e o baixo clero no Congresso com políticos tradicionais que tinham a antiga ARENA como referência (PP). No decorrer do governo, alguns destes setores ou representantes se distanciaram, outros foram definitivamente incorporados ao bolsonarismo. E o seu núcleo central dirigente eram os militares (como Villas Boas, Braga Netto e Augusto Heleno, e outros de menor rango, etc) aliados aos milicianos (família Bolsonaro), que por sua vez tinham ligações com a nova extrema direita mundial (Trump, Steve Bannon) através do Eduardo Bolsonaro e Olavo de Carvalho.

Com a pandemia, depois com as eleições e, finalmente, com a vitória de Lula, o bolsonarismo foi se fragmentando. Algumas frações dos setores foram buscar a sobrevivência no governo Lula (Centrão, alguns políticos da bancada evangélica, veículos de comunicação, capital financeiro). Outros tentam ocupar o espaço vazio da direita, deixado pela diminuição do PSDB (Lava Jato, Moro, PL, PSD, União Brasil) e, portanto, o núcleo central fascista, também está corrigindo a sua rota e tentando encontrar o caminho para a sua sobrevivência.

Porém, se gerou uma contradição. Parte do grupo central são militares, mesmo reformados, e portanto estão vinculados às instituições do Estado. As táticas deste setor é deixar tudo como está: indicaram o ministro da Defesa, não sofrerem represálias pelos erros e pela política dirigida na pandemia (especialmente a acusação de genocídio contra povos originários, política dirigida por Eduardo Pazuello e pelas Forças Armadas), querem que o novo governo não mexa na previdência militar e nem no ensino nas escolas militares. E muito menos correr risco de punições, pelos descalabros cometidos, por alguns dos 6.400 militares que haviam migrado para o executivo disputando privilégios e boquinhas.

Outra parte do comando é a família Bolsonaro que precisa sobreviver politicamente. Seguindo a estratégia e conselhos de Banon/Trump, Bolsonaro precisaria permanecer como grande líder da direita, para lhe dar condições de não ser preso e disputar as eleições em 2026. A base social “puro sangue” bolsonarista é formada especialmente por militares (incluindo policiais militares) e seus familiares, pessoas mais velhas, combinando temas morais e econômicos ultraconservadores. Sociologicamente são uma minoria de classe media branquela e racista. Esta base precisa ser constantemente mobilizada, principalmente de forma polarizada. Por isso, durante todo o governo, como não tinha ações práticas, Jair Bolsonaro tensionava permanentemente para manter sua base coesa e alerta. Por isso usa e abusa das fake news sobre cada acontecimento, para criar um estado de prontidão.

Assim, os acampamentos em frente aos quartéis tinham dupla função: pressionar pelas reivindicações políticas de seus valores conservadores e as demandas corporativas das Forças Armadas para manter seus privilégios. E sobreviver ao governo Lula e mantendo a base bolsonarista mobilizada para permanecer como força política. Em muitas cidades, os acampamentos eram formados por familiares de militares, especialmente mulheres. Mas, em Brasília, era um acampamento nacional, financiado pelo agronegócio e pelas as empresas de mineração, incluindo o lumpesinato do garimpo ilegal.

Como forma organizativa, o bolsonarismo se estruturou dentro do modelo da guerra híbrida ucraniana ou do terrorismo da Al Qaeda, com círculos de diferentes níveis de participação e direção, mas reproduzindo e buscado um objetivo central, ainda que permitindo autonomia relativa nestes círculos. O bolsonarismo não conseguiu se constituir como um partido formal, não só no sentido institucional, mas também como força política organizada. Essa é outra contradição que Valdemar da Costa Neto, presidente do PL, está enfrentando, porque o bolsonarismo não pode ser enquadrado dentro das “quatro linhas” de uma ação institucional tradicional. De maneiras que há uma mensagem central (desgastar o novo governo/mostrar força) e ter muitos satélites que atuam com táticas diferentes e certa autonomia.

Até as “emas” no Palácio da Alvorada sabiam que a ação deste domingo aconteceria: (a) A sequência de “fatos novos” que mantinha a base bolsonarista mobilizada se esgotou com a posse e diante do esvaziamento dos acampamentos e dos grupos em redes sociais após o primeiro de janeiro, era preciso reagrupar e mobilizar as tropas com um fato novo; (b) As relações do novo governo com as Forças Armadas permanece truncada, como se vê pela ausência de oficiais nas trocas de comando da Marinha e a ingerência de José Múcio Monteiro sobre essas forças; (c) Havia fidelidade e cumplicidade das diferentes forças policiais em Brasília, especialmente a PM/DF, como se viu na noite da diplomação (12 de dezembro 22); (d) Havia fidelidade e cumplicidade no governo do DF, demarcado pela nomeação de Anderson Torres, ex-ministro e fiel aliado de Jair Bolsonaro, justamente para controlar a segurança e as forças policiais.

A ação não foi e não tinha a intenção de ser um golpe de Estado, seus objetivos eram: (i) Fragilizar o novo governo e criar uma situação de ingovernabilidade com apenas oito dias de mandato; (ii) Poderia dar caldo para uma crise institucional e de legitimidade. Por exemplo, se o governo tivesse decretado Garantia de Lei e Ordem (GLO) e o Exército se recusasse a cumprir ou retirasse pacificamente os terroristas. Desmoralizaria o governo perante a sociedade e o exterior. Deixaria claro que não comanda as forças armadas e não poderia mexer no aparato militar; (iii) Destruir equipamentos e materiais do Gabinete de Segurança Institucional, onde estavam armas e HDs; (iv) d) Testar a fidelidade e depurar internamente a militância no bolsonarismo, deixando claro quem são os seguidores fiéis; (v) Demonstrar força e capacidade de mobilização, que seriam ativos maiores que os votos que Jair Bolsonaro teve e portanto, em qualquer condição, um líder da extrema direita que precisa ser consultado ou envolvido nas decisões políticas nacionais mesmo sem estar no poder (como a extrema-direita na França, por exemplo); (vi) Em caso de repressão, ter imagens de violência e talvez de morte, que realimentassem a militância nos próximos dias pela indignação, pelo discurso de autoritarismo ou da injustiça.

Esses objetivos e táticas, certamente foram acordados com as orientações da turma de SteveBanon/ Donld Trump, que já as havia aplicado nos Estados Unidos.

O elemento central da tática é que contassem com a cumplicidade do Exército. Tanto assim que os manifestantes voltaram tranquilamente para o acampamento, não dispersaram, pois sabiam que ali estavam protegidos.

Porém: (1) O governo agiu com rapidez, dureza e sem meias palavras: nomeou os culpados (Bolsonaro, Ibaneis, Anderson Torres e o agronegócio) e tomou medidas duras, constitucionais e respaldadas pela opinião pública; (2) Foi inteligente em não usar a GLO e não envolver mais as forças armadas. A única intervenção que restou ao Exército foi proteger na madrugada os acampados do despejo. E depois submeter-se às determinações do interventor federal no DF e acabou contribuindo para terminar como acampamento em Brasília e a prisão de mais de 1500 militantes fascistas.

Como saldo dos atos, foi um tiro no pé dos fascistas e gerou: (a) O novo governo conseguiu arregimentar a solidariedade internacional e nacional, institucional e midiática. Agora sim, se tornou um governo de união nacional; (b) O bolsonarismo se isolou como um bolsão de extrema direita, deve realmente depurar e se restringir a 10% da população. Porém, é um ativo que não interessa às forças políticas institucionais, incluindo o PL; (c) O bolsonarismo vai ter que enfrentar várias frentes de ataque, não apenas o discurso de herança maldita do governo, mas uma frente parlamentar (possibilidade de CPI), uma frente policial jurídica (STF e PF). Não terá forças para enfrentar todas ao mesmo tempo sem o aparelho do Estado (conivência de Aras). No máximo, apenas os militares devem se escapar. E a inelegibilidade e a prisão de Jair Bolsonaro não são mais apenas palavras de ordem; (d) Com a prisão dos “peixes pequenos”, abandonados, devem começar a surgir nomes dos verdadeiros financiadores e líderes. A cadeia de comando intermediária do bolsonarismo deve ser desmontada; (e) A cumplicidade das forças militares – e seus serviços de inteligência – ficou evidente e reduz a capacidade de negociação dos militares e moral diante da sociedade e no novo governo.

É possível que agora, diante da estupidez bolsonarista, a burguesia, a direita clássica busquem construir outros líderes, mais inteligentes e úteis.

Agora é preciso aproveitar esta vitoria política com a sociedade, para concluir o que não conseguimos fazer nas urnas: derrotar historicamente a extrema-direita como força política!.

É preciso mobilizar os movimentos em atos de massas; ter poucas bandeiras e diretas (prisão para terroristas, cpi, etc); apoiar as ações do governo com mobilizações; não foi uma tentativa de golpe de Estado, mas devemos chamar assim como denúncia; denunciar os financiadores, como os lojistas, clubes de tiro, e sobretudo a pequena burguesia do agronegócio, em especial do centro-oeste do país; manter-se alertas para as artimanhas nas redes sociais e em atos desesperados que a turba de fascistas ainda podem provocar.

*Miguel Enrique Stedile é doutor em história pela UFRGS e integrante do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

*Ronaldo Tamberlini Pagotto, advogado, é ativista do Movimento Brasil Popular.

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