Por Dante Lucchesi (*)
Se Bolsonaro, essa aberração humana, concluir o seu mandato, será a prova definitiva de que a sociedade brasileira está profundamente degradada e inerme, posto que é incapaz de se contrapor aos interesses mais vis da rapinagem financeira, das hordas que grilam terras, poluem os rios e devastam a floresta e o cerrado, das máfias do fundamentalismo religioso e das milícias criminosas que atuam nos quartéis e nas periferias das grandes cidades. É bem verdade que os interesses desses grupos são mantidos e defendidos por um judiciário corrompido, reacionário e arrogante, por uma mídia canalha e dominada por sabujos que se jactam de bajular os poderosos e por um congresso, no qual pilantras mercadejam as leis, como as que liberam venenos para contaminar os alimentos da população.
Uma sociedade com um mínimo de decência, com um mínimo de amor à civilização, não aceitaria passivamente (como tem feito) essa mistura de circo de horrores e ópera bufa que é o governo Bolsonaro, com sua corja de aberrações, desajustados, racistas, misóginos, recalcados, oportunistas, cretinos, ignorantes, pilantras e nazifascistas, com a conivência e participação de generais de pijamas reacionários, entreguistas e corruptos. Não permitiria que seus sistemas de saúde e educação públicas, sua cultura, ciência e diversidade sejam aviltados até as raias da destruição, que se distribuam livremente armas para todos os bandos de facínoras, desajustados e assassinos contumazes, que se promova o genocídio dos povos indígenas que se estimule e exorte o feminicídio, a homofobia, o racismo, que se faça do negacionismo ciência e da estupidez mais cretina a norma de conduta, levando à morte centenas de milhares de brasileiros, na pior pandemia dos últimos cem anos.
Não se pode pensar que a mixórdia do governo Bolsonaro, que só provoca espanto, escárnio e desprezo em todo mundo civilizado, seja um acidente histórico. A sociedade brasileira deveria se envergonhar até a revolta de ter permitido que um miliciano, oportunista, sonso, desqualificado, nazista e genocida chegasse à presidência da República. É inimaginável e absolutamente intolerável o que está acontecendo no Brasil. É bem verdade que uma mídia degenerada que só existe para servir aos interesses do grande capital normalizou a aberração Bolsonaro, em troca das garantias que Guedes, o lacaio da banca, lhe prometia e de um ralo verniz de legitimidade que um ex-juiz parcial e farsante emprestava a um governo que ele ajudara a eleger, usando seu cargo público para perseguir e condenar sem provas um homem inocente.
E só uma sociedade forjada na escravidão africana e no extermínio dos povos indígenas pode ser passiva e conivente com esta ação devastadora dos grupos de rapina e espoliação que dominam este desgraçado país e destroem impunimente instituições, entidades e serviços públicos construídos com esforço e o sacrifício de várias gerações. O racismo estrutural e o escravismo entranhado na mentalidade de uma boa parte da sociedade brasileira fizeram de Bolsonaro um “mito”, e explicam os 25% da população que ainda apoiam esse energúmeno.
Esse povo exangue tem em um improvável líder a maior esperança de recuperar o rumo de sua história. Um líder injustiçado e perseguido cruel e injustamente, até ser levado ao cárcere político, mas que se reergueu e se sobressai perante o mundo que o respeita, e, por isso mesmo, é odiado pelo que há de mais atrasado e ignóbil na sociedade brasileira, sendo o alvo preferencial de todos os estafetas de poderosos que infestam as redações dos monopólios da comunicação de massa no Brasil.
Será que esse retirante nordestino que se tornou torneiro mecânico em curso do SENAI poderá levar o povo brasileiro a resgatar sua dignidade, perdida na farsa que o imperialismo norte-americano montou a partir de 2014, para destruir os setores mais dinâmicos da economia nacional e se apoderar de nossas melhores reservas energéticas? Ou será que vai sucumbir às velhas tentações das conciliações de classe, das concessões àqueles que não querem abrir mão de nada, sobretudo de qualquer um de seus indefensáveis privilégios? Será que ele e seus aliados vão continuar se iludindo que haverá uma disputa justa e democrática, quando o golpismo e a manipulação midiática arreganham seus dentes despudoradamente, dia sim, dia também, e as instituições reguladoras sinalizam que serão tolerantes, como em 2018, com os tsunamis de fake news, criminosamente financiados e disparados nas redes sociais? Será que o país continuará deitado em berço esplêndido, sonhando com eleições escandinavas, enquanto hordas de sequazes midiáticos, militares, milicianos, polícias e grileiros tramam a sedição fascista, em plena luz do dia?
Deixar que o tosco miliciano genocida governe o país até as eleições de outubro é, além de todo desatino e de toda desmoralização para o país que isso representará, uma aposta demasiadamente arriscada na resistência das instituições brasileiras.
(*) Dante Lucchesi é sociolinguista e autor de Língua e Sociedade Partidas (Contexto, 2015).