Por Marcos Jakoby (*)
Segundo especialistas e muitas autoridades da área de saúde pública ainda não é momento de relaxar nas medidas de isolamento social. Ontem o número de óbitos pelo Covid-19 no Brasil alcançou a maior marca diária. Por isso, não há ainda como a esquerda e as forças populares construírem (ou pelo menos tentarem construir) manifestações massivas nas ruas, como a situação política exige, embora haja a possibilidade cada vez maior de surgirem manifestações “espontâneas”. Isso não impede que se organizem manifestações menores e/ou simbólicas, adotando as medidas recomendadas para prevenir a transmissão do coronavírus.
Dito isso, gostaria de chamar a atenção para o seguinte. Diante dos atos antifascistas ocorridos no último domingo, convocados especialmente pelas torcidas organizadas, e a convocação de novos atos para o próximo final de semana, ressurge um argumento defendido por setores ligados à esquerda e à direita contra as manifestações de rua. O argumento (bem surrado) alega que elas devem ser evitadas uma vez que podem servir de pretexto para Bolsonaro adotar medidas de exceção, de fechamento do regime, ou para uma ruptura institucional. Estaríamos caindo assim numa armadilha.
Qual a saída então para combater o governo Bolsonaro? A resposta muitas vezes não é apresentada em ato contínuo, mas está implícita. A luta deve ser travada sobretudo por dentro das instituições, como o STF, o parlamento, a mídia, dos governos etc. Se for para construir atos de ruas, devem ser em uma situação em que conte com a retaguarda dessas instituições e sob a cobertura de setores da elite. Caso contrário, estaríamos colaborando para a estratégia da extrema-direita.
Quando se trata da direita, esse argumento tem relação evidente em querer manter o controle da situação política e evitar que as forças populares acumulem forças para criar uma saída política em favor da classe trabalhadora e dos setores populares. Mas quando esse argumento parte da esquerda? Alguns realmente podem acreditar nisso. Mas aí fica a pergunta: essa ameaça não está pairando sobre as nossas cabeças o tempo todo, ainda mais com um governo comandado por neofascistas? E se assim for, quando as forças populares poderão ocupar a ruas de forma autônoma e sem que haja algum risco de repressão ou de medidas autoritárias? Possivelmente não há como. O clã Bolsonaro volta e meia menciona a rebelião popular do Chile exatamente porque eles têm consciência de que o neofascismo é derrotado sobretudo nas ruas.
Outro receio na esquerda parte daqueles que querem construir uma aliança com setores conservadores, da direita e parte da classe dominante que são oposição a Bolsonaro. Então, as manifestações populares de rua, sem esses aliados, podem representar uma radicalização e uma dificuldade em forjar essa aliança. Na verdade, aí sim estaremos numa armadilha, pois seremos empurrados a construir a luta contra o governo por dentro das instituições conservadoras e sob a tutela de uma fração da classe dominante.
Quando surgiram as grandes greves operárias no final da década de 1970, que desafiaram a ditadura militar, setores da esquerda usaram do mesmo tipo de argumento. Aquelas lutas eram uma provocação aos militares, que poderiam comprometer o processo de abertura do regime e consequentemente favorecer a ala mais dura das Forças Armadas. Ademais, isso poderia dificultar alianças com setores liberais que se encontravam na oposição. O que se sucedeu foi exatamente o oposto. As greves e as lutas populares foram fundamentais para a derrota da ditadura militar e criaram um ambiente que atraiu diversos segmentos políticos para a luta democrática e popular. Mudaram a correlação de forças.
Claro que a realidade de hoje é distinta. Não nos encontramos num momento de ascenso das lutas da classe trabalhadora. Mas ela precisará ser construída, e virá. Assim, parece evidente que cuidados precisam ser tomados e cada momento tem de ser avaliado. Mas quando a justificativa descrita vira um princípio permanente, as chances de obtermos vitória se esvaem. Está nítido que o governo Bolsonaro não “cairá de maduro”, ele precisará ser derrubado. E isso não será possível sem muita disposição de combate e tomando as ruas quando for possível.
(*) Marcos Jakoby é professor e militante do PT