Por Luiz Sérgio Canário (*)
Há uma discussão recorrente no Setorial de Ciência&Tecnologia e Tecnologia da Informação&Comunicação do Partido dos Trabalhadores. Ela se dá ao redor de duas palavras que exprimem conceitos defendidos por parte dos militantes do setorial: Tecnociência Solidária. São conceitos fora do eixo principal dos debates do partido, mas nem por isso não precisam ser tratados para que seus limites sejam expostos.
Não é somente deixar de usar certas palavras para usar outras, mas de mudanças profundas no entendimento dos temas da ciência e tecnologia e dos caminhos para uma transformação social profunda. O termo pressupõe, da forma como exposto por seus defensores, a prevalência de uma estratégia de superação do capitalismo por vias da solidariedade, da cooperação, da autogestão dos meios de produção e da busca de um certo “bem-viver”. Abandona a conquista revolucionária do poder pela classe trabalhadora como caminho para a superação do capitalismo, do controle dos meios de produção pelos trabalhadores e pelo povo e da construção do socialismo com a destruição do capitalismo.
Sobre a tecnociência
Começando pela conclusão, os limites entre a ciência e a tecnologia podem ser cada vez mais difusos, mas existem. Não podemos enquadrar toda a ciência e toda a tecnologia como tecnociência.
Essa discussão sobre ciência e tecnologia remonta aos tempos de Platão e Aristóteles, com os conceitos de téchne e epistéme. Aristóteles define a segunda como o saber teórico com um fim em si mesmo. E a primeira como o saber fazer as coisas do mundo, com um fim que não está em si mesmo, e sim em seu uso.
Ao longo do tempo esses conceitos foram evoluindo. O que para os gregos eram conceitos filosóficos, para nós são conceitos fortemente ligados a economia e a valorização.
A questão da subordinação se reveste de um caráter importante. A ciência é vista como a que produz todo o conhecimento racional e verdadeiro, que permite ver o mundo com objetividade, e a tecnologia como a materialização da produção científica, como a capacidade de produzir objetos ou técnicas que funcionem, atendendo alguma necessidade objetiva. A ciência seria pura, sem vínculos com os interesses imediatos nem com o lucro. Já a tecnologia se revestiria de um caráter mais mundano, da produção de artefatos para serem vendidos. A tecnologia se apropria da produção científica capaz de permitir a construção de produtos, de mercadorias ou de técnicas de fazer. A tecnologia é instrumental, a ciência produz a verdade.
Se partimos do princípio de que em uma sociedade dividida em classes, em que uma delas se sobrepõe as demais e determina o seu funcionamento, nada que é produzido pelo homem é isento e puro. Toda produção, científica ou não, tecnológica ou não, é realizada sob as determinações dos interesses das classes dominantes. Essa realidade contamina e define qualquer discussão. Nenhuma nomenclatura afasta de per si essa realidade. No mundo capitalista só se produz o que é do interesse do capital e da classe que o controla e detém.
De alguns anos para cá o termo tecnociência passou a ser utilizado. Esse termo pressupõe que modernamente não podemos mais conceber ciência e tecnologia como duas atividades distintas. Seriam atividades indissociáveis e fortemente vinculadas à atividade econômica. Há várias vertentes com algumas visões diferentes para o uso desse termo.
É fato que muitas tecnologias são desenvolvidas a partir de conhecimento científico. A mecânica quântica, um insondável ramo da física, permitiu a criação de vários artefatos, como laser e LED. Ou ainda computadores e criptografias quânticas. É fato também que muita ciência somente pode ser produzida a partir de artefatos tecnológicos, como os aceleradores de partícula ou telescópios poderosos e funcionando em várias faixas do espectro eletromagnético.
Ou seja, em muitas situações é difícil definir as fronteiras entre ciência e tecnologia, ou quem está servindo a quem, e o termo tecnociência se torna de uso evidente. Mas, por outro lado, não podemos dizer que todo conhecimento científico produzido tem utilidade para a produção de tecnologia e nem toda tecnologia deriva diretamente de conhecimentos científicos. Principalmente o considerado conhecimento científico. Qual a utilidade tecnológica nesse momento de toda a física desenvolvida por Stephen Hawking sobre buracos negros? Pode nos servir no futuro, da mesma forma que a física quântica não teve nenhuma utilidade logo após a sua formulação.
A tecnociência pressupõe o fato de que não é mais possível a separação de ciência, entendida como teoria, e prática. E que também elimina a intrínseca hierarquia que existe entre ciências e tecnologia. A tecnologia ganha lugar de destaque e deixa de ser o primo pobre da relação. Ambas adquirem o mesmo valor intrínseco.
Mas isso não é uma verdade absoluta. Por mais imprecisas que sejam as fronteiras elas existem. A base da produção do conhecimento científico segue sendo a busca por teorias e modelos que melhor expliquem o funcionamento da natureza, do universo e de nós mesmos, como seres biológicos e sociais. Por mais próximo que a ciência esteja da tecnologia, e está, o principal objetivo da ciência é ainda experimentar, testar, elaborar e reelaborar teorias em um ciclo sem fim. Evidente que quanto mais próximo de um produto, uma mercadoria de fato, a ciência esteja, mais atende aos interesses das classes dominantes. E é evidente que essa produção não é nem isenta nem neutra, como já visto.
Por sua vez a produção de objetos para o uso, de técnicas e de mercadorias, segue sendo o foco do trabalho e da pesquisa tecnológica. Para isso, além do conhecimento científico, é necessário um saber fazer, um conjunto de conhecimentos práticos oriundos de experiências anteriores. O como fazer exige conhecimentos específicos. Conhecimentos típicos de engenheiros, médicos e mecânicos, por exemplo, sempre são necessários no desenvolvimento tecnológico. É mais óbvio entender a produção de tecnologia como uma determinação das necessidades do capital por estar quase sempre associada a mercadorias ou produtos para serem vendidos.
Se olharmos as redes sociais veremos uma mistura de conhecimentos e tecnologias de diversas áreas. A alta computação com seus poderosos servidores que processam softwares que usam o estado da arte em Inteligência Artificial. Tudo isso desenvolvido com base em inúmeros estudos vindos das ciências sociais e do conhecimento da economia. Há aí muita ciência e ainda mais tecnologia. As enormes empresas que controlam essas redes investem bilhões direta e indiretamente, seja em suas instalações, nos institutos universitários ou em laboratórios independentes. Ou comprando empresas. Há alguns anos o Google comprou uma empresa mineira para poder se apropriar de seus algoritmos de busca.
O termo tecnociência é de fato controverso e gera confusões no sentido de substituir os termos ciência e tecnologia. Para o físico e filósofo da ciência Mario Bunge, por exemplo, somente pode ser aplicado a produção de pessoas como Galileu ou Tesla que produziam ao mesmo tempo ciência e tecnologia. Algumas vezes produziram tecnologia, como o telescópio, como fez Galileu, para produzir ciência.
Há assim espaço para se falar de tecnociência e de ciência e tecnologia, se afastamos qualquer tipo de segregação entre teoria e prática e qualquer subordinação ou hierarquia de uma com a outra. Se admitimos que nem uma nem outra são neutras, como querem fazer crer que a produção científica é. Ambas são determinadas por suas interações com a sociedade. Ambas estão expostas as subordinações estabelecidas por uma sociedade capitalista. Seja ciência, tecnologia ou tecnociência, considerados seus papeis na sociedade, devem ser apropriados e expropriados em favor da classe trabalhadora e do povo. Devem ser instrumentos da construção do socialismo, na direção de uma sociedade sem classes.
Resumindo, a construção de conhecimento de qualquer natureza em uma sociedade capitalista nunca é neutra. Sempre atende os interesses da classe dominante. No caminho da construção de uma sociedade sem classes, cabe aos trabalhadores e ao povo, e nisso o PT tem um papel importante, inverter essa situação, para mudar a orientação dessa produção para atender os seus interesses.
Sobre a economia solidária
Da mesma forma começando pela conclusão, a economia solidária não é uma alternativa para a superação do capitalismo, nem como modo de produção, nem como instrumento de dominação.
A economia solidária pode ser definida como atividades econômicas quaisquer que sejam organizadas com os princípios da autogestão, onde não existem nem patrões nem empregados. Todos são igualmente e ao mesmo tempo as duas coisas. Pretende ser uma alternativa diferente a gestão empresarial, a geração de empregos, na inclusão social e no trato com o meio ambiente. Suas bases seriam o bem-viver, a solidariedade, a autogestão e o respeito a natureza, dentre outros. Pretende também diminuir a desigualdade na sociedade.
É uma forma de organização muito antiga, existente há séculos, mas nos marcos do capitalismo surge como resposta dos artesãos à perda de suas fontes de renda, e a de seus empregados, com a Primeira Revolução Industrial. No Brasil esse modelo de negócios ganha força nos últimos anos em função de alguns fatores como o desemprego e o desalento, que levou parcela significativa da população a buscar formas alternativas de geração de renda. O MST é um grande exemplo da aplicação dos conceitos da economia solidária.
Mais recentemente, já no governo Lula em 2003, é criada uma secretaria específica para tratar do assunto, A secretaria Especial de Economia Solidária. Paul Singer foi o primeiro secretário. A secretaria foi extinta em 2016, no governo Temer.
O economista Paul Singer aponta que a economia solidária surge no Brasil na década de 70, em função da crise gerada pelo aumento dos preços do petróleo, como uma alternativa para enfrentar a fome, o desemprego e a miséria. A Igreja Católica, através da Cáritas, que começou esse trabalho. Alguns sindicatos mais tarde começaram a arrendar fábricas em processo de fechamento ou já fechadas para preservá-las e com isso seus empregos. Isso aconteceu com centenas de empresas na época e há vários casos de sucesso.
A campanha do Natal sem Fome nos anos 90 inspira Paul Singer e outros a buscar alternativas mais diretas contra a fome, atuando contra o desemprego. As primeiras soluções desenhadas foram a construção de cooperativas. O nome economia solidária para essas iniciativas surge na construção do programa de governo de Luiza Erundina em 1996. A proposta era a de organizar os desempregados em cooperativas. Esse acúmulo faz com que o tema esteja no programa de governo de Lula.
Singer em uma entrevista a Carta Capital (https://www.cartacapital.com.br/blogs/brasil-debate/Paul-Singer-Economia-solidaria-se-aproxima-da-origens-socialismo/) fala que a economia solidária é a volta do socialismo as suas origens. A Robert Owen, um reformista escocês do século XIX, um dos mais influentes socialistas utópicos. Ele é considerado o pai do cooperativismo e foram seus partidários que inventaram a autogestão. O socialismo utópico é duramente combatido por Marx e Engels, formuladores do socialismo científico. Para Singer essa visão do socialismo não era uma utopia. Para Marx e Engels, era.
Ao colocar que empreendimento da economia solidária, segundo Paul Singer, “nega a separação entre trabalho e posse dos meios de produção, que é reconhecidamente a base do capitalismo. (…) A empresa solidária é basicamente de trabalhadores, que apenas secundariamente são seus proprietários. Por isso, sua finalidade básica não é maximizar lucro, mas a quantidade e a qualidade do trabalho”, ele entende que “o único jeito de construirmos uma sociedade socialista, que mereça o nome e não seja meramente uma pretensão ou bandeira, é pela via democrática. Os valores da democracia são os valores do socialismo.”
Já um outro estudioso, Euclides Mance, diz que a economia solidária vai além da questão da geração de emprego e avança, com a colaboração solidária, na construção de uma sociedade pós-capitalista que garante o bem-viver para todos. Ele diz: “ao considerarmos a colaboração solidária como um trabalho e consumo compartilhados cujo vínculo recíproco entre as pessoas advém, primeiramente, de um sentido moral de corresponsabilidade pelo bem-viver de todos e de cada um em particular, buscando ampliar-se o máximo possível o exercício concreto da liberdade pessoal e pública, introduzimos no cerne desta definição o exercício humano da liberdade”
Como se pode ver a economia solidária pretende se colocar, do ponto de vista da organização social, como alternativa pós-capitalista baseada em ideias com origem no socialismo utópico. E do ponto de vista econômico como algum tipo de novo modo de produção pós-capitalista, na medida que os trabalhadores desse empreendimento capturam o valor e o mais valor daquilo que produzem, extinguindo, tanto do ponto de vista da organização social, quanto do ponto vista econômico as figuras do patrão e do empregado, sendo todos ao mesmo tempo as duas coisas. E isso sem indicar nenhuma ruptura radical com o capitalismo e aparentemente ignorando a luta de classes.
Não há números confiáveis para determinar o tamanho da economia solidária no Brasil. O último levantamento, precário, foi em 2013, com dados de 2010. Há muitos números circulando sem muita base. Assim é difícil medir sua importância econômica.
É certo que a economia solidária tem que ser considerada em qualquer programa de governo do PT. É um caminho para a geração de renda e trabalho, principalmente em uma conjuntura como a que vivemos. Pode ser considerada como uma alternativa importante para o desenvolvimento de algumas regiões ou para a produção de alguns produtos sofisticados. Mas certamente não pode ser o centro de uma política de geração de emprego e renda e de centro de um programa de desenvolvimento econômico para um país tão complexo, com uma economia sofisticada e com a população que temos. Nem no curto nem no longo prazo.
E falar em desenvolvimento não está associado ao “desenvolvimentismo” como falam alguns. O desenvolvimento é uma necessidade. Os trabalhadores precisam de emprego para sobreviver. Que forma de emprego? A que garantir um nível de vida adequado às necessidades de preservação da vida, com o Estado assumindo o seu papel de fornecer serviços sociais básicos como previdência, benefícios sociais, saúde, educação e segurança pública. Não estamos discutindo “carteira assinada” e sim a preservação de direitos, independentemente da forma de contratação, desde que ela seja formalizada. E precisamos de ciência e tecnologia que possibilitem esse crescimento e esse desenvolvimento.
A economia solidária é uma importante iniciativa para o exercício dentro dos marcos do capitalismo de soluções que podem estar na organização da produção pós-capitalistas. Mas ela em si não é uma inciativa pós-capitalista. Para qualquer lado que se olhe é uma forma de se organizar para produzir mercadorias que serão consumidas em um mercado capitalista. Seguimos produzindo valor de troca. E o mercado capitalista segue intocado.
O MST, por exemplo, está emitindo títulos para serem negociados no mercado de capitais para financiar algumas cooperativas. Esse é um exemplo da imersão da economia solidária naquilo que o capitalismo produziu de mais destrutivo: o mercado financeiro. Grosso modo o MST irá produzir solidariamente excedente para gerar ganhos para rentistas. Extraindo parte do mais valor produzido para ser transferido para o capital fictício. Certo ou errado, para o bem ou para o mal, no fim da linha é isso que está acontecendo.
Não podemos tirar do foco questões tão importantes como o sistema de proteção social do estado, incluindo previdência, saúde, assistência social, dentre outras coisas, nem educação e segurança pública. Não basta termos uma economia solidária, em que todos vivam uma situação de bem-viver e de felicidade sem pensar em como financiar o Estado. E não basta falar que não estamos aqui para falar do financiamento do estado capitalista. É nesse estado que vivemos e que viveremos até a tomada do poder pela classe trabalhadora. E é esse Estado que precisa ser financiado para garantir direitos ao povo.
Não podemos nos fixar em soluções utópicas de bem-estar infinito. A luta de classe é dura e cruel. Nos impõe obstáculos históricos que somente podem ser superados com a organização da classe trabalhadora e do povo para a tomada do poder. Esse é o caminho para a conquista de uma sociedade socialista que se dirige para a construção de uma sociedade sem classes.
A economia solidária é uma iniciativa importante que tem que estar presente nos nossos programas e ser incentivada de forma permanente, responsável e com os recursos necessários. Mas certamente não é uma alternativa ao capitalismo nem o centro de uma política de desenvolvimento e emprego para o nosso país. A questão é muito mais complexa. Não podemos ignorar ou simplificar a luta de classes sob o risco de sermos derrotados.
(*) Luiz Sérgio Canário é militante petista em São Paulo-SP