Valério Arcary e as sete vidas do PT

Por Valter Pomar (*)

O que vem a seguir é uma crítica ao texto “Natureza do PT e suas crises em perspectiva histórica”, de autoria de Valério Arcary e publicado no dia 25 de dezembro pelo Opera Mundi.

Como em dois recentes debates fui acusado de estar “xingando” alguém por tê-lo chamado de “oportunista” e de estar sendo “deselegante” com outro alguém, por ter tentado “desconstruir” seus argumentos, alerto às almas puras — que acham possível fazer debate sem debater — que parem por aqui e não leiam este texto. Aos demais, sigamos em frente.

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Conheci Valério Arcary no PT, quando ele era uma das principais figuras da tendência denominada Convergência Socialista. Infelizmente, os textos que tenho desta época ainda não estão digitalizados.

Quando Arcary saiu/foi expulso do PT, seguimos polemizando durante o longo período em que ele foi um dos principais dirigentes do PSTU. Um exemplo da polêmica pode ser visto aqui: http://desacato.info/o-debate-entre-valerio-arcary-pstu-e-valter-pomar-pt-que-percorre-as-redes/

Depois Valério Arcary saiu do PSTU e foi para o PSOL, mas nossas divergências prosseguiram, como pode ser visto em: http://valterpomar.blogspot.com/2019/03/valerio-arcary-e-estrategia-defensiva.html

Revisando mentalmente estes cerca de 30 anos de polêmica documentada, constato que Valério mudou de pele mas não de “estilo”: epígrafes, citações e uma pegada meio profética.

Como não sou bom em nada disto, só me resta o osso da literatura: criticar. Vamos a isso.

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O texto de Valério começa com prudência, reconhecendo que “permanecem vivas as controvérsias de critérios para a apreciação histórica dos partidos políticos. Só não se pode é julgar um partido por aquilo que ele pensa sobre si próprio”.

Pleno acordo. Valendo lembrar que a diretriz serve não apenas para o PT, mas também para o PSOL, o PCdoB, o PCO, o PCB, a UP, o PSTU etc.

Nenhum destes partidos pode ser julgado pelo que ele pensa sobre si próprio. O que certamente causa uma grande dor-de-cabeça para quem está iniciando a militância e se vê diante do desafio de escolher uma “organização para militar”.

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Segundo Valério, “há quem defenda que um partido se define, essencialmente, pela sua linha política: ou é de direita, centro, esquerda ou as variantes intermediárias. Esse critério é insuficiente e ingênuo. O vocabulário político flutua de acordo com a mudança nas relações sociais e políticas de força. Quando a situação política é reacionária tudo se desloca para a direita. Quando a situação é revolucionária tudo se desloca para a esquerda. Há muita dissimulação no vocabulário político”.

Compreendo que para Valério, que estava digamos excessivamente à esquerda (no PSTU, onde as vezes parece que já se está do outro lado) e agora está menos à esquerda de onde estava antes (no PSOL), possa ser reconfortante imaginar que seu deslocamento ocorreu em um momento em que “tudo” se deslocou.

Mas esta maneira de ver as coisas não é, na minha opinião, adequada. Afinal, não é “tudo” que se desloca. Se fosse “tudo”, nem as contrarrevoluções e golpes seriam necessários, nem as revoluções seriam possíveis, pois o deslocamento de “tudo” resolveria os conflitos sem que fosse necessário a derrota de umas classes por outras.

Seja como for, estou de acordo com a essência do argumento, a saber: que “esquerda” e “direita” são categorias móveis, cujo conteúdo concreto é definido uma em relação à outra. Portanto, ser de “esquerda” não é uma definição suficiente.

Como é sabido, há quem ache que Lenin estava “à direita” de Trotsky no debate sobre a paz com os alemães em 1918; e há quem diga que os integrantes das SA faziam parte da esquerda… do partido Nazista.

Logo, é preciso sempre se perguntar “à esquerda de quem”, “à direita de quem, “em relação ao quê”, “em qual contexto”.

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Para exemplificar sua posição, Arcary lembra que “nos anos oitenta, o que vingava no Brasil era o ascenso das lutas operárias e populares contra a ditadura militar, que se agigantou a partir da luta pelas Diretas Já em 1984. Como o pêndulo da relação social de forças girava a favor dos trabalhadores, a principal representação do núcleo duro da burguesia paulista assumiu o nome de partido da socialdemocracia. Socialdemocracia é o nome dos partidos socialistas de base na classe trabalhadora, os herdeiros da tradição da II Internacional, como o Labour britânico. O PSDB nunca foi social democrata. Sempre foi um partido burguês liberal”.

A respeito do assunto tratado no parágrafo anterior, penso que Valério está parcialmente correto.

A escolha da denominação “socialdemocrata” não foi apenas produto das circunstâncias (circunstâncias = o tal “tudo” que se deslocava para a esquerda).

Há pelo menos quatro outros fatores a considerar:

1/na mesma década dos 1980, a socialdemocracia europeia estava se deslocando para a direita, se convertendo em neoliberal;

2/naquele momento, à frente da criação do PSDB estavam figuras que tinham um pedigree de esquerda, como Fernando Henrique, José Serra e outros, para quem a denominação não era uma farsa, mas uma opção coerente com a visão que tinham de seu lugar na política brasileira;

3/no momento da criação do PSDB, não dá para afirmar sem ressalvas que “a principal representação do núcleo duro da burguesia paulista” fosse tucana;

4/não penso que em 2020 baste afirmar, sem incluir algumas mediações, que “Socialdemocracia é o nome dos partidos socialistas de base na classe trabalhadora, os herdeiros da tradição da II Internacional, como o Labour britânico”.

Sobre este último ponto, proponho o seguinte paralelo: se alguém afirmar que “Comunista é o nome dos partidos [socialistas] de base na classe trabalhadora, os herdeiros da tradição da III Internacional, como o PC da China”, isto não estaria errado no que diz respeito a localizar a origem do caso analisado, mas ajudaria muito pouco a entender a trajetória e as diferenças profundas – em cada momento da história  e também comparando os diferentes momentos — entre os partidos que reclamam a condição de comunistas.

Para dar um exemplo do tipo de diferença existente, deixo uma pergunta: por qual motivo Valério escolheu citar o Labour britânico e não o SPD Alemão?

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Valério considera inadequado definir um partido “somente pela sua ideologia”, pois “a imensa maioria dos partidos no Brasil não tem, se formos rigorosos, ideologia, são legendas eleitorais que defendem interesses”.

Aqui discordo quase totalmente de Valério. A discordância, claro, está relacionada a maneiras diferentes de utilizar o termo “ideologia”.

No meu vocabulário, ideologia é o nome que damos à “visão de mundo” expressa pelos indivíduos, pelas organizações, pelas classes sociais.

Portanto, sendo este o meu entendimento, todos os partidos têm ideologia. Mesmo os partidos de aluguel, que mercadejam seus currais eleitorais, seus mandatos e seus votos, têm ideologia, ou seja, possuem uma determinada visão de mundo que, no limite, corresponde ao ponto de vista que cada classe ou fração de classe têm acerca do mundo que nos rodeia.

Seja como for, concordo com Valério num aspecto: exatamente por ser um fenômeno geral, a definição ideológica de um partido também é insuficiente, para quem deseja compreender a fundo um partido.

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Neste ponto de sua análise, Valério Arcary diz que “partidos podem ser julgados pelo programa que apresentam para a transformação da sociedade. Ou podem ser explicados: (a) pela história de suas linhas políticas e de suas lutas políticas, sobretudo, as internas; (b) pelo confronto entre suas   posições  quando estão   na    oposição,   e   quando    se aproximaram  do  poder; (c) pelos valores  e   ideias  que  inspiram   seu programa (d)  pela  composição   social  de seus   membros,    militantes   ou simpatizantes, ou dos seus eleitores, ou da  sua   direção; (e) pelo  regime  interno   do seu funcionamento; (f) pelas formas de seu financiamento;  (g) pelas   suas  relações internacionais. Todos estes critérios são válidos e significativos, e a construção de uma síntese exige uma apreciação da sua dinâmica de evolução”. Mas, diz ele, “uma caracterização de classe é inescapável”.

E estava neste ponto da leitura, achando que teríamos uma caracterização de classe, quando Valério pegou uma vicinal e disparou uma série de afirmações: “O PT usou muito vocabulário marxista, mas nunca foi um partido marxista. Cultivou afinidades, mas nunca foi um partido socialdemocrata no formato europeu. Manteve relações com o PC da Alemanha Oriental até 1989, mas nunca se identificou com o aparelho dos partidos alinhados com a URSS. Estreitou relações com o PC cubano, os sandinistas da Nicarágua, a Farabundo Marti de El Salvador e com o governo de Chávez na Venezuela, nos anos noventa, com a formação do Foro de São Paulo, mas nunca foi um partido revolucionário”.

Chamou-me a atenção este jeito de definir pela negativa, ou seja, dizendo o que não é; mas o que mais chamou minha atenção foram duas afirmações: o PT “nunca foi um partido marxista” e “nunca foi um partido revolucionário”.

Comecemos pelo primeiro ponto: o que é ser “um partido marxista”? Quantos partidos no mundo, entre 1818 e 2020, merecem este qualificativo? Não sei qual é a instituição que distribui o “selo” de marxista, mas arrisco dizer que há várias, com critérios diferentes entre si.

Assim, para evitar debates doutrinários quase religiosos, sou de opinião que a questão que deveria nos interessar não é se o PT “foi” ou se “nunca foi” marxista; o que deveria nos interessar é se, em algum momento de sua história de 40 anos, o PT conseguiu fazer análise concreta da situação concreta, conseguiu achar o rumo certo em direção à vitória da classe trabalhadora.

Minha resposta para esta questão é: sim. Houve momentos nestes 40 anos em que o PT soube achar o caminho das pedras. Se isto ocorreu apesar ou graças à influência de alguma das variantes do marxismo, é outro debate.

Vamos para a segunda questão: o PT “nunca foi um partido revolucionário”.

Pergunto: qual é a comprovação de que um partido é “revolucionário”? Se autoproclamar? Ou ter efetivamente participado e contribuído para o êxito de um processo revolucionário?

Ademais, como participar em uma festa não te converte em festeiro, há vários exemplos de partidos “revolucionários” – no sentido de que efetivamente participaram de processos revolucionários, alguns derrotados e outros vitoriosos – que mudaram de posição depois, ou seja, deixaram de ser revolucionários.

Deste ponto de vista digamos histórico-prático – afinal não se pode “julgar um partido por aquilo que ele pensa sobre si próprio” –, nenhum dos partidos de esquerda hoje atuantes no Brasil pode ser rigorosamente considerado “revolucionário”.

Aliás, se formos ser “rigorosos”, como o Brasil nunca viveu uma “revolução” no sentido plebeu deste termo, nenhum dos partidos de esquerda existentes no Brasil teve a chance de demonstrar ser revolucionário.

Querendo ser, há vários. Mas comprovar que se é mesmo, aí são outros quinhentos.

Por detrás deste mal posto dilema (ser ou não marxista e revolucionário) está um dos principais problemas dos que — como eu e suponho Valério também — consideram que a revolução é uma condição necessária para o socialismo.

Este problema é resolvido, por certos setores da esquerda, de uma maneira muito simples: alguns pelo caminho da autoproclamação (penso que sou revolucionário, logo sou); outros chamando de “revolução” o ato de melhorar a vida do povo.

Aceita esta segunda definição, o PT seria um partido revolucionário, à medida que teria “revolucionado” as condições de vida do povo. Esta definição de “revolução” é tão rigorosa quanto aquela que faz de Obama um socialista e do Foro de São Paulo um instrumento para construir a URSAL.

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É visível, pelo trecho percorrido até agora, que Valério gosta de preliminares. Mas chegado finalmente ao ponto, ele pergunta: “Afinal o que é o PT? O PT é o maior partido que a classe trabalhadora brasileira construiu em sua história. Conheceu uma gênese nos anos oitenta, o apogeu na virada do milênio, e entrou em uma lenta, porém, ininterrupta decadência desde 2013”.

Notem o detalhe: de 1980 até 2000, o PT foi da gênese ao apogeu. E desde 2013, começou a ininterrupta decadência. Pergunto: e o que teria ocorrido entre 2001 e 2012? Voltaremos a isso mais adiante. Por enquanto, sigamos o fio do raciocínio do nosso criticado.

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Segundo Valério, o “PT é um tipo especial de partido de esquerda. É um partido eleitoral, reformista, mas não mantém relações estáveis, permanentes e orgânicas com a burguesia. Nenhum grupo capitalista nunca controlou sequer uma ala do PT. O PT é independente da classe dominante. É um aparelho eleitoral profissional, mas não porque concorre a eleições. É eleitoral, porque depende, há muitas décadas, dos mandatos parlamentares e do financiamento público para sobreviver, e não da sua militância. É reformista, não porque luta por reformas, mas porque está adaptado ao regime. Reformista, portanto, porque defende a regulação do capitalismo ou a colaboração de classes. Mas a condição eleitoral e uma política reformista não transformam o PT em um partido burguês. Um partido é burguês quando mantém relações estruturais com alguma fração dos capitalistas. Portanto, o PT é diferente do peronismo”.

Já foi dito que é nos detalhes que Deus e o Diabo se manifestam. Já vimos o “detalhe” que falta na definição anterior: o PT entre 2001 e 2012. Vejamos agora o detalhe presente na definição acima, segundo a qual o PT seria um “tipo especial” de partido de esquerda.

Notem que pouco antes havia sido dito que o termo “esquerda” seria um critério “insuficiente e ingênuo”. Agora o termo reaparece, acompanhado da palavra “especial”. “Especial”, no senso comum, tem geralmente um sentido positivo. Mas no rigor do dicionário, refere-se a algo “que não é geral”, a algo que é “individual, particular”, “próprio, peculiar, específico, típico”.

Sendo assim, pergunto: estas características que Valério atribui ao PT e que ele resume com o termo “especial”, são mesmo específicas do PT? Ser eleitoral é específico do PT? Ser reformista é específico do PT? Não ter relações estáveis, permanentes e orgânicas com a burguesia é uma característica específica do PT?

Até onde eu conheço os partidos de esquerda que existem no Brasil e fora do Brasil, eu consigo lembrar de muitos partidos que possuem características semelhantes.

Reconheço, entretanto, que a opinião de Valério é extremamente similar a de muitos intelectuais e altos dirigentes do PT, que consideram que nosso partido é “especial”, no sentido de que teria uma trajetória singular, sem igual em nenhum outro partido.

Talvez por pensar assim, estes intelectuais e dirigentes não tenham tomado, nem pensado em tomar, algumas medidas óbvias para buscar impedir que o PT sofresse dos mesmos males de outros partidos.

Afinal, como seríamos por definição diferentes, especiais, nenhum malefício igual nos acometeria.

Um exemplo: o professor Marco Aurélio Garcia disse certa vez que nosso partido seria “pós-socialdemocrata” e “pós-comunista”. E claro, durante muito tempo havia quem considerasse que o PT era “pós-trabalhista”. E eis que hoje estamos sofrendo alguns dos males que acometeram estas três tradições…

Dizendo de outro jeito: um partido que representa a classe trabalhadora pode ser capturado pelos interesses da classe dominante, mesmo que “nenhum grupo capitalista” controle “sequer uma ala deste partido”.

Nesse sentido, não deixa de ser “especial” ver um intelectual do PSOL (e proveniente do PSTU) reconhecer que o PT é por definição “independente da classe dominante”.

Mas assim como nunca acreditei nas críticas exageradas, tampouco acredito em elogios exagerados. Por isso, prefiro dizer que nestes 40 anos o PT manteve sua autonomia, mas veio perdendo sua independência. E veio perdendo exatamente entre outros motivos porque, para usar os termos de Valério, tem grande dependência, “há muitas décadas, dos mandatos parlamentares e do financiamento público para sobreviver”.

Claro que há pessoas dentro do PT que acham normal, democrático, que o Partido dependa em mais de 90% de recursos provenientes do Estado (via fundo público ou via contribuições de parlamentares etc.).

Penso diferente. É sem dúvida democrático que haja financiamento público nas campanhas eleitorais, pois isso em tese serve para garantir igualdade de condições na disputa entre candidaturas. Mas acho antidemocrático obrigar o povo brasileiro a financiar igrejas, clubes, entidades privadas de qualquer tipo e partidos políticos. Assim como era e sigo contra o imposto sindical. E, portanto, considero um perigo que o PT se torne dependente do dinheiro público, pois isso estatiza o partido. E um partido estatizado é um partido prisioneiro do Estado realmente existente, e o Estado realmente existente não é neutro, não está acima das classes.

Nosso maior risco não é o estrangulamento financeiro, mas sim a generosa dependência frente aos recursos do Estado, que nos autonomiza demais em relação à militância, às bases sociais. O estrangulamento só é um risco mortal para quem está dependente.

Valério, como eu disse antes, está no PSOL, veio do PSTU, mas nessa questão pensa como muitos petistas pensam: afirma que o PT é “independente da classe dominante”, mesmo sendo “dependente” dos recursos públicos e “adaptado ao regime”. Ou seja: naquilo que eu considero ser uma imensa ameaça à única coisa que o PT não pode perder de jeito nenhum (a independência de classe), Valério parece não ver algo por definição incompatível com a independência de classe.

Como veremos adiante, esta atitude num certo sentido surpreendente de Valério não tem relação com o diagnóstico em si, mas com o significado diferente que cada um de nós atribui ao termo.

Agora vejamos melhor o tema do reformismo.

Segundo Valério, o PT seria “reformista, portanto, porque defende a regulação do capitalismo ou a colaboração de classes. Mas a condição eleitoral e uma política reformista não transformam o PT em um partido burguês. Um partido é burguês quando mantém relações estruturais com alguma fração dos capitalistas. Portanto, o PT é diferente do peronismo”.

A mim parece óbvio que o PT é diferente do peronismo, mas suponho que para a tradição morenista esta questão deva ter alguma relevância.

No que me diz respeito, a questão relevante é: o risco para o PT não está em se converter em crocodilo azul, digo, em partido burguês. O risco para o PT está em adotar uma política que não abale a hegemonia da burguesia, o controle da classe dominante sobre a sociedade brasileira. E para quem se coloca deste ponto de vista, não basta que o PT tenha autonomia, ele precisa ter independência de classe. E independência de classe não é um estado de espírito, nem uma marca de nascença; independência de classe significa entre outras coisas não estar “adaptado” aos limites do regime, não estar “dependente” dos recursos do Estado etc.

Portanto, é ótimo que Valério reconheça que o PT não é um “partido burguês”. E é melhor ainda que não sejamos um partido burguês. Mas nosso desafio é ser um partido da classe trabalhadora, independente da classe dominante e de seu Estado.

Como veremos a seguir, Valério compartilha desta preocupação, mas a expressa com outras palavras.

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Diz Valério: “Reconhecer a natureza de classe de um partido não equivale a dizer que sua política representa os interesses da classe. É muito mais complicado. Um partido reformista pode ser um instrumento adaptado à gestão do capitalismo e, ao mesmo tempo, independente da burguesia. Isso significa que tem a liberdade para fazer ‘giros políticos à esquerda’, ainda com maior impulso se está na oposição”.

Na passagem acima fica claro que Valério considera que um partido de trabalhadores (natureza de classe) pode defender os interesses de outra classe. Nas minhas palavras, o partido pode ter autonomia (é dirigido pela classe), mas não ter independência (está preso dentro dos limites da ordem).

Palavras à parte, penso que na essência estamos quase de acordo: “um partido reformista pode ser um instrumento adaptado à gestão do capitalismo”.

Digo quase, porque “um partido reformista” (ou seja, que tem como limite máximo fazer reformas) sempre será, na minha opinião, um “instrumento adaptado à gestão do capitalismo”.

Aliás, poucos partidos reformistas tentaram ir além do capitalismo e nenhum que tentou conseguiu pôr um dedinho para além do umbral da porta.

Novamente, tendo Valério a história que tem, este “pode” me surpreende. Pois um partido de esquerda deve sempre lutar por reformas; mas na tradição da esquerda que reivindica do marxismo, uma coisa é lutar por reformas, outra coisa é ser “reformista”.

Evidentemente, não vou ensinar padre-nosso ao vigário; e não acho que Valério esteja querendo abandonar o clube-dos-que-querem-fazer-uma-revolução; minha hipótese é que ele apenas está sentindo as pressões decorrentes de estar num partido-reformista-sem-consciência-de-seu-próprio-reformismo.

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Mas o objetivo do texto de Valério não é analisar o PSOL, mas sim analisar o PT. E num resumo que ele mesmo diz ser “brutal”, Valério afirma que nos anos oitenta, “com erros táticos aqui ou acolá, [o PT] foi um instrumento poderoso de representação dos interesses de classe e cumpriu um papel progressivo. Ao longo dos anos noventa oscilou muito e, depois que conquistou a presidência prevaleceu o papel regressivo”.

Lembram daquele detalhe citado lá no início? Permitam-me repetir: “Afinal o que é o PT? O PT é o maior partido que a classe trabalhadora brasileira construiu em sua história. Conheceu uma gênese nos anos oitenta, o apogeu na virada do milênio, e entrou em uma lenta, porém, ininterrupta decadência desde 2013”.

Permitam-me agora apresentar em paralelo os argumentos presentes nos dois parágrafos:

1/ (…) “conheceu uma gênese nos anos oitenta” (…) “com erros táticos aqui ou acolá, [o PT] foi um instrumento poderoso de representação dos interesses de classe e cumpriu um papel progressivo”;

2/ (…) “ao longo dos anos noventa oscilou muito” (…) “o apogeu na virada do milênio”;

3/ (…) “depois que conquistou a presidência prevaleceu o papel regressivo” (…) “e entrou em uma lenta, porém, ininterrupta decadência desde 2013”.

Previsivelmente, não vejo necessidade de glosar a avaliação que está no item 1: o PT dos anos 1980, quando Valério estava entre nós, era mesmo muito legal.

Agora, a avaliação que está no ponto 2 é um pouco paradoxal: oscilamos e ao mesmo tempo chegamos ao apogeu. Não se trata de um desdobramento óbvio: na mesma época, muitos partidos de esquerda oscilaram e desapareceram (PCI), mudaram de nome (PPS), mudaram de lado. Já o PT, segundo Valério, oscilou e… chegou ao “apogeu”.

A avaliação que está no ponto 3 também contém algo de misterioso: vínhamos de uma oscilação que nos levara ao apogeu, chegamos à presidência, aí “prevaleceu o papel regressivo”, o que fez o PT entrar em “lenta, porém, ininterrupta decadência” … só que dez anos depois de termos chegado à presidência.

Voltaremos a estas inconsistências mais adiante.

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Valério diz que o golpe de 2016 demonstrou que o PT “não era um partido burguês”. Verdade. Mas antes que esta conclusão leve Valério a passos mais audaciosos, ele saca da algibeira o seguinte: “não somos metafísicos, vamos além do aristotelismo”.

E aí surge a afirmação de que, “em outro grau de abstração, todos os partidos reformistas, são partidos do regime democrático-liberal, dependentes da institucionalidade, e o PT não é diferente. Marxistas da III Internacional usavam uma fórmula para identificar esta integração na defesa dos limites da ordem estabelecida: definiam a social democracia como um partido operário-burguês. Ou seja, partidos independentes da classe trabalhadora, com direções que capitulavam diante da pressão da classe dominante. Quando no governo, com responsabilidades de gestão do Estado, ocupavam o lugar de um partido burguês-operário”.

Maravilha! É mais ou menos como dizer: nos lascamos, mas nossos antepassados já haviam nos avisado que ia dar merda. E daí? E daí nada, pois aceita esta lógica nada haveria o que fazer, pois estaríamos num oito e dele não teríamos como sair.

Aliás, para reforçar esta hipótese do oito, vale lembrar que metade da bancada do PSOL admite entrar no bloco de Maia, sendo que nesta metade estão exatamente os parlamentares vinculados à “esquerda do PSOL”.

Na minha opinião, o único jeito de não escorregarmos para esta “maldição do oito” – em que tudo ocorre conforme previsto em análises feitas nos anos 1930 — é analisar melhor o que ocorreu nestes 40 anos, em particular nos anos 1990 e no período 2001-2016.

Depois que Valério saiu/foi expulso do PT, a esquerda do Partido alcançou maioria, por um breve biênio, no Diretório Nacional do PT. Não conseguimos fazer o que queríamos; mas o outro setor do Partido tampouco conseguiu o que talvez desejasse.

É essa famosa “disputa de rumos” que explica o fato do PT “oscilar” e, apesar de “oscilar”, ainda conseguir cumprir “um papel progressivo”, não apenas nos anos 1980, mas também nos anos 1990.

Valério era um espectador externo desta disputa nos anos 1990 e, por razões óbvias, a derrota da esquerda petista era então funcional aos seus objetivos. Mas os fatos são: essa disputa ajudou a manter abertas algumas alternativas (basta lembrar da vitória do presidencialismo, do impedimento à revisão constitucional, da candidatura do Lula em 1998 etc.), que uma hegemonia mais moderada no partido teria ajudado a fechar. E sem aquelas alternativas, o tal “apogeu” seria um raio em céu azul.

A mesma lógica se aplica ao período do governo. Sem a famosa disputa de rumos, a crise de 2005 poderia ter terminado em um imenso desastre.

Detalhe: assim como a esquerda atingiu maioria em 1993, quando Valério já não estava no PT; também as chapas de oposição ao grupo majoritário no PT atingiriam maioria no DN de 2005, quando já haviam sido expulsos ou haviam saído do PT os que criariam o PSOL.

O que teria ocorrido se os criadores do PCO, do PSTU e do PSOL não tivessem renunciado a disputar os rumos do PT, não saberemos nunca. Mas sabemos muito bem o que ocorreu: os que ficaram disputando os rumos do PT contribuíram para que o desfecho de 2005 não fosse o que a burguesia queria, nem fosse o que alguns dos setores moderados do Partido aceitavam que pudesse ser.

Cabe lembrar que Valério refere-se ao período dos governos Lula e Dilma como um período em que “prevaleceu o papel regressivo”. Sendo assim, repetimos a pergunta feita antes: se isso fosse verdade, por qual motivo o PT teria entrado em “lenta, porém, ininterrupta decadência” somente dez anos depois?

Por óbvio, penso que a resposta não está na definição da III Internacional acerca dos partidos operários-burgueses, mas na análise concreta da luta política e social da famosa “década”.

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Uma observação nada lateral: em alguns aspectos, a lógica adotada por Valério é a mesma adotada por setores majoritários no PT. Trocam-se os sinais, mas o ponto de partida é o mesmo: se aceitamos participar da institucionalidade, temos que abrir mão de objetivos revolucionários. Reconheço que as pressões são imensas, que as chances de êxito do caminho alternativo são mínimas, mas daí não decorre capitular, nem decorre achar que as possibilidades são nulas.

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Valério diz que “como tudo que existe os partidos, também, se transformam (….) mudanças não são possíveis sem crises (…) No seu processo de transformações, o PT enfrentou muitas crises. (…) Uma crise é significativa quando um partido sai dela diferente daquilo que era”.

Diz também que o PT teria vivido uma primeira crise nos anos 1980, “a primeira ruptura, pela direita”, quando “Bete Mendes e José Eudes, liderados por Airton Soares, romperam com o partido em 1985, porque o PT não apoiou a Aliança Democrática que elegeu, indiretamente, a chapa Tancredo/Sarney no Colégio da ditadura”.

Em seguida, Valério diz que “a atitude da bancada do PT em relação à Constituição de 1988 foi simbólica deste período. O PT votou contra a Constituição, mas assinou o documento, portanto, assumiu, publicamente, o respeito pela legitimidade do novo regime. A direção do PT sabia muito bem que estava sinalizando para a classe dominante um compromisso. A burguesia brasileira compreendeu o gesto. Não por acaso, a direção do PSDB, liderada por Mario Covas, unanimemente, declarou o apoio a Lula contra Collor no segundo turno em 1989. Assim como Brizola”.

Rapaz! Que raciocínio extravagante.

Em primeiro lugar, em 1989 a “burguesia brasileira compreendeu o gesto” … fazendo campanha maciça e massiva em favor de Collor.

Em segundo lugar, para a burguesia brasileira, tanto naquela época quanto hoje, a Constituição de 1988 fez concessões inaceitáveis.

Em terceiro lugar, houve uma dura luta interna no PSDB a respeito.

Por fim, qual era mesmo a alternativa?

Parece-me meio óbvio que o PT foi no limite do que a correlação de forças permitia: votar contra e assinar.

Ademais, reconhecer a “legitimidade do novo regime” não é igual a abrir mão de lutar contra este regime.

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A análise de Valério oscila.

Numa passagem ele afirma que “nos anos oitenta”, “com erros táticos aqui ou acolá, [o PT] foi um instrumento poderoso de representação dos interesses de classe e cumpriu um papel progressivo”. E que as “oscilações” teriam ocorrido nos anos 1990.

Noutra passagem do seu texto, ele diz que “o processo de adaptação político-social aos limites do regime democrático que saiu da eleição de Tancredo/Sarney no Colégio Eleitoral era nebuloso para a maioria da vanguarda ativista que tinha referência no PT, porém, como a evolução futura confirmou, dramaticamente, já era irreversível”.

Até entendo o problema teórico e político enfrentado por Valério: se ele admite que o processo não era irreversível, ele teria que reconhecer que foi um erro ter saído/sido expulso do PT no início dos anos 1990 e ter apostado na criação do PSTU.

Seria como dizer que cerca de 20 anos de militância foram investidos numa aposta que, frente às outras disponíveis, não foi nem de longe a mais exitosa.

Por outro lado, afirmar que a “adaptação” já era “irreversível” em 1989, deixa a pergunta: que catsus de “adaptação” é essa, se dez anos depois teríamos o “apogeu” e se o supostamente irreversível declínio só teria começado em 2013?

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A maneira como Valério tenta lidar com a questão acima inclui o seguinte raciocínio: esta supostamente irreversível adaptação “não impediu que, ainda durante alguns anos, uma parcela majoritária da esquerda petista considerasse que o PT, e mesmo sua direção, seria um partido “em disputa” para o projeto da revolução brasileira. O que obscurecia a mudança política profunda era que, embora o PT tivesse deixado de ser oposição ao regime democrático, era não só oposição ao governo Sarney, mas uma oposição intransigente e radical”.

Uma das coisas divertidas em analisar os textos de Valério é isso: no meio do caminho, ele invoca uma força sobrenatural, com a qual nos colocamos a debater, deixando de lado a realidade tão sem graça.

A realidade é: o PT era e segue sendo um partido em disputa. E o fato é que essa disputa permitiu que o PT chegasse aonde chegou (ao apogeu dos anos 2000, por exemplo). Parte, pequena ou grande tanto faz, desta disputa foi travada pela chamada esquerda petista (que mudou de composição e de linha ao longo dos últimos 40 anos, mas sempre existiu). Sem essa disputa, provavelmente a história do PT teria sido outra, menos exitosa. Portanto, do ponto de vista dos interesses da classe trabalhadora, que é o que nos importa, foi importante que tivéssemos travado esta disputa. Respeito quem desistiu dela, mas olhando para trás, não vejo nenhuma prova de que estavam certos os que desistiram. Mas vejo inúmeras provas de que estavam corretos os que persistiram e seguem persistindo.

Agora vamos à força sobrenatural: “uma parcela majoritária da esquerda petista” considerava que o PT, e mesmo sua direção, seria um partido “em disputa” para “o projeto da revolução brasileira”.

Vou deixar de lado os detalhes (“parcela majoritária da esquerda petista” e “mesmo sua direção”) e vou me concentrar no núcleo da afirmação: o PT seria ou não um partido em disputa para o projeto da revolução brasileira?

Confesso aqui que nunca escrevi, mas pensei várias vezes em escrever, uma malcriação contra o termo “projeto” (muito utilizado pelos defensores de um “projeto para o Brasil”).

Nunca fui arquiteto, nem engenheiro, sou profissionalmente um primo pobre, um técnico em produção visual gráfica formado pelo Senai. Mas o termo “projeto” para mim sempre me pareceu suspeito, meio tecnocrático, pois traz meio que implícito ser possível um grau de planejamento altamente detalhado de um processo social raro e caótico. Quatro palavras (processo, social, raro, caótico) que me remetem para qualquer coisa, menos para “projeto”. Mas enfim, nunca escrevi a malcriação, assim que pulo esta parte e volto ao núcleo do problema: a revolução.

O Brasil certamente precisa de uma revolução. A ausência de uma revolução explica a persistência de traços coloniais, da escravidão, da política oligárquica, além da abissal desigualdade social. Assim, precisamos de uma revolução. E se esta revolução vier a ocorrer, não tenho a menor dúvida de que a dinâmica desta revolução vai nos empurrar para a disjuntiva capitalismo versus socialismo. Um socialismo que não será de tipo soviético, chinês ou cubano, mas sim brasileiro, pelo simples motivo de que será obra não de trabalhadores russos, chineses ou cubanos, mas sim de trabalhadores e trabalhadoras brasileiras. Classe trabalhadora que só será capaz de fazer uma revolução, se for capaz de travar lutas políticas e sociais e culturais num grau de intensidade muitas vezes maior do que atual. Lutas que farão emergir uma vanguarda, de quem se espera que conduza o processo.

Que formas poderá assumir esta vanguarda? A de um partido ao estilo bolchevique? As de um partido-exército ao molde chinês? As de um partido-guerrilha aos moldes cubanos? Ou asssumirá outras formas, inclusive não-partidárias no sentido estrito do termo? Ou, ou? E que caminhos concretos estas lutas vão seguir, caso elas atinjam a potência indispensável a algo que possa ser de fato chamado “revolução”?

Não sei dizer, embora possa especular muito a respeito. O único que sei dizer com absoluta certeza é começa errada e vai terminar errada qualquer tentativa de construir uma “organização revolucionária”, apartado da classe trabalhadora.

Este foi o pano de fundo do debate sobre o PT, desde o final dos anos 1970 até hoje. Neste debate, os que seguiram outro caminho podem dizer muito acerca do que o PT “não é” ou “nunca foi”. Podem dizer, também, que os que tentaram disputar os rumos do PT não tiveram êxito pleno até agora e dificilmente terão. O que não podem dizer é que eles apostaram num caminho alternativo, que tenha dado certo sob os mesmos critérios que eles adotam quando criticam o PT. Uma prova disto é o reconhecimento por parte do PCO, do PSOL e da Consulta Popular acerca da importância do PT. Outra prova é que o PSTU saiu do PT, mas eles continuam vivendo em função do PT. E uma terceira prova é a recente campanha do PSOL na cidade de São Paulo, tão exitosa em ser e parecer “petista”. Sem falar do apoio a Maia desejado por parte da bancada federal psolista.

O curioso nesse debate, como já disse antes, é que a maneira de raciocinar de Valério (que na minha opinião pode ser resumida assim: nunca teria dado certo) no fundo, no fundo, joga água no moinho dos setores moderados do PT.

Quantas vezes não ouvimos dentro do PT alguns destes moderados dizerem algo assim: este partido que vocês querem, o PT nunca será, nunca poderá ser. O que no fundo equivale a dizer: “não vai ter revolução”!

O mesmo dogmatismo de fundo, que leva a desconsiderar as possibilidades do PT, conduz inevitavelmente a considerar impossível uma revolução no Brasil. E, portanto, nos condena per omnia saecula saeculorum a conviver com esta sociedade brutal em que vivemos.

*

Valério fala que “no início dos anos 1990, quando a situação política evoluía à direita, a direção do PT convocou o 1º Congresso e decidiu expulsar a Convergência Socialista, uma corrente trotskista. Foi uma nova crise. Dali para frente, as tendências de esquerda que ainda resistiam no PT ficaram sabendo qual seria o seu destino, se desafiassem a direção. Esta crise não teve repercussão eleitoral, mas deixou uma ferida incurável: uma das correntes da ala revolucionária tinha sido eliminada”.

Esta versão que Valério nos apresenta é assaz depurada. Como disse na época um amigo advogado, é impossível defender quem não quer ser defendido. Havia um setor majoritário da Convergência que considerava positivamente a expulsão, pois a análise deste setor é que a situação evoluía não para a direita (como diz agora Valério), mas para a esquerda; que apesar disso o PT não se engajaria radicalmente na luta contra Collor; e que, portanto, a Convergência (ou o que fosse produto da expulsão dela) atrairia estes setores radicalizados. A história, como sabemos, seguiu outro caminho.

Passaram-se dez anos até que, noutra circunstância histórica, ocorresse outra expulsão. Dez anos onde não faltaram lutas internas tremendas. E mesmo assim, para que uma nova expulsão se consumasse, foi imprescindível mais uma vez que os expulsos dessem uma mãozinha para os que queriam expulsar; e novamente por avaliar que a história do PT tinha chegado ao fim e que, a partir daí, viria a “degeneração final”.

Trata-se de uma escola de pensamento, sempre à espera do Termidor.

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De algum jeito, Valério tem que reconhecer o paradoxo, mas o faz de maneira bem contida. Nas suas palavras: “Paradoxalmente, após o impulso do Fora Collor, a corrente majoritária do PT — que tinha ido muito longe no seu giro à direita no 1º Congresso de 1991 — se dividiu, originando a Articulação de Esquerda. Esta corrente, unida às tendências marxistas DS (Democracia Socialista) e Força Socialista, entre outras, obteve uma vitória no Encontro Nacional do PT em 1993. A reação, no entanto, foi um fogo de palha e se revelou efêmera”.

Noutros textos já descrevi detalhadamente os fatos daquele período, segundo meu ponto de vista. A luta interna dentro da velha Articulação se agudizou entre 1990 e 1993. O primeiro Congresso de 1991 foi um ponto importante, sem dúvida. Mas muito mais importante foi o que ocorreu depois: o movimento Fora Collor, a disputa sobre participar ou não do governo Itamar, a disputa sobre o plebiscito acerca do parlamentarismo ou presidencialismo, a discussão sobre nossa tática e programa nas eleições de 1994.

Foi nesse contexto que ocorreu a cisão da velha Articulação e uma maioria de esquerda no Diretório Nacional eleito no 8º encontro nacional de 1993. Esta maioria durou pouco; mas julgar se ela foi “fogo de palha” ou “efêmera” depende de como avaliamos seus efeitos.

Perdemos por dois (repito, dois) votos a votação da tese guia do encontro seguinte, em 1995. E a chamada esquerda petista continuou uma força poderosa, durante muitos e muitos anos, condição que só perdeu depois de 2007.

Mais importante: aquela maioria “efêmera” ajudou a impedir, por exemplo, que o Partido embarcasse na revisão constitucional, entre outros erros que se cometidos teriam nos causado ainda mais dificuldades nos anos 1990.

A narrativa que Arcary constrói, ao subestimar, omitir ou negar a influência da esquerda no PT, acaba jogando água no moinho dos setores moderados do PT. Afinal, se a esquerda petista não existe, é apenas fogo de palha, êfemera ou subestimável, o tal “apogeu” da virada do milênio foi produto apenas do grupo majoritário do PT.

Mas vamos dar um desconto: talvez por agora ser da maioria do PSOL, Valério esteja adquirindo hábitos insuspeitos.

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O caso é que, para Valério, depois de 1995 “a ilusão de um partido em disputa desmoronou, e a inflexão da situação política após a vitória de FHC, e a derrota da greve petroleira em 1995, foram o bastante para que a luta interna no PT se transformasse num assunto, essencialmente, de profissionais políticos”.

Novamente: rapaz!

Segundo esta versão, a partir de 1995, todas as disputas travadas pela esquerda petista e outros setores não passam de “ilusão”; e, também a partir de 1995, a luta interna do PT teria se convertido em assunto de “profissionais políticos”.

Pode ser que eu esteja iludido, por ter participado ativamente da luta interna e pública do PT neste mesmo período, mas confesso que não encontro amparo factual para estas afirmações. A disputa de rumos do PT continuou real. Basta pensar no encontro do Glória, ou da disputa pela candidatura de Palmeira ao governo do Rio, ou do congresso de Minas, ou do encontro de Recife, ou do ocorrido no ano de 2005. Reduzir esta luta a assunto de profissionais políticos é uma distorção do efetivamente ocorrido. E, novamente, se fosse verdade, como explicar a vitória de 2002? Como produto de algum gênio??

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Valério descreve de seu jeito o debate de 1999, omitindo que o movimento pelo Fora FHC teve entre seus promotores Tarso Genro e João Paulo Cunha, que não eram da esquerda petista.

Observando de hoje, é perfeitamente compreensível (mesmo que não fosse e siga não sendo aceitável) a lógica defendida por José Dirceu. Fazer uma campanha pelo Fora FHC em 1999 seria, na melhor das hipóteses, antecipar o processo eleitoral. Isso não acrescentaria nada em favor da candidatura de Lula. Pelo contrário, deixar FHC sangrar em praça pública (o que efetivamente ocorreu) seria melhor. Em 2005, Alckmin fez o mesmo cálculo e se deu mal. Dirceu fez este cálculo em 1999 e se deu bem. A alternativa era politicamente mais correta? Claro que sim. Daria certo? Nunca saberemos.

Mas Valério não está muito preocupado com a descrição histórica, mas sim com o seguinte: ser contra o Fora FHC teria revelado “para a classe dominante a disposição de fazer a disputa respeitando o calendário eleitoral do regime”. A expressão é bonita, mas é pura retórica e no fundo não quer dizer nada. O impeachment também está previsto no “regime”; se houvesse impeachment, o vice poderia assumir ou poderiam ser convocadas novas eleições; e o calendário eleitoral em si não implicaria em questionamento ao “regime”.

Minha impressão é que Valério tenta produzir artificialmente um encaixe entre duas dinâmicas que não se encaixam: a disposição de moderação de alguns setores do PT e a disposição de moderar por parte da classe dominante.

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Seja como for, penso que o giro efetivo que houve na política do PT não foi na votação da Constituição de 1988, não foi no segundo turno de 1989, não foi na expulsão da CS, não foi no Fora FHC, mas sim na chamada “Carta aos Brasileiros”.

Valério não esclarece que esta Carta, assim como a candidatura de José Alencar para vice, não foram unânimes no Diretório Nacional do PT. Nem cita algo muito mais relevante, do ponto de vista simbólico: Palocci defendeu e conseguiu suprimir do programa partidário a palavra “ruptura”, que constava do documento aprovado em dezembro de 2001 pelo encontro realizado pelo PT em Recife.

Detalhe: este documento, inclusive a palavra “ruptura”, foi elaborado pelo Celso Daniel, que era do mesmo grupo então majoritário e que só não foi figura central no primeiro mandato de Lula, porque foi assassinado em janeiro de 2002 e em seguida substituído pelo execrável Palocci.

Notem que curioso: o momento do “apogeu” do PT (segundo Arcary) coincide com Palocci no primeiro plano. Daí se deduzem duas possibilidades: ou bem o aparente elogio (implícito na palavra “apogeu”) não é propriamente um elogio; ou bem estamos diante de um ponto de virada, um ponto de ruptura na trajetória, a partir do qual o Partido poderia ir num ou noutro sentido.

Penso que o período 2003-2005 foi isso: uma brutal disputa de rumos, a mesma que Valério disse que era uma ilusão. Se tivéssemos perdido, talvez o bando de Palocci (é bom lembrar, havia muita gente que o apoiava, embora hoje ninguém goste muito de lembrar disso) tivesse convertido o PT em um PSDB. Mas não perdemos esta disputa. A “prova de laboratório” (novamente para usar termos de Valério) de 2016 só teve o resultado que teve, porque não perdemos a batalha “ilusória” pela disputa de rumos do PT.

Ganhamos a disputa? Tampouco, pois não conseguimos alterar a estratégia e a conduta geral do Partido. Mas não perdemos. Outros perderam. Inclusive os que, como Valério, imaginavam que o naufrágio do PT permitiria a ultrapassagem do PT por outra esquerda. Talvez Valério esteja hoje no PSOL, porque não perdemos aquela batalha.

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É curioso que Valério perceba que 2016 foi uma “prova de laboratório” de que o PT não é um partido burguês. Mas sobre 2005 ele demonstra ter refletido menos. Ele diz que a expulsão de 2003, de parlamentares que depois criariam o PSOL, “foi uma nova crise e transformação. Ficou comprovado que a mão da direção do PT não iria tremer no seu giro estonteante. A classe dominante brasileira compreendeu o significado deste gesto. Foi, porém, em 2005, que o PT atravessou a primeira crise séria de sua história”.

Não seria o caso de considerar 2005 como outra “prova de laboratório”? Uma prova de que o PT, mesmo na época da hegemonia de Palocci, não era confiável para a classe dominante?

Acontece que Valério parte de outra hipótese. Palavras dele: “Apesar de indisfarçável satisfação das frações majoritárias da classe dominante com o governo Lula desde o primeiro mandato, a oportunidade aberta pela crise do mensalão precipitou uma ofensiva política burguesa no Congresso Nacional e na mídia, com algum eco nas ruas, que fez Lula tremer no Palácio do Planalto”.

Indisfarçável satisfação? Talvez com Palocci. Mas com o governo como um todo? E com o PT?

Valério acrescenta que “o mensalão obrigou o PT a sacrificar Zé Dirceu e outras lideranças, e deixou o partido, parcialmente, desmoralizado entre os setores mais críticos do ativismo operário e popular, em boa parte da vanguarda estudantil mais lutadora, e nos meios da intelectualidade de esquerda mais honesta”.

(Quem é a esquerda “menos” honesta, só Valério poderá dizer!)

O “parcialmente” poderia ser acompanhado do “temporariamente”. Pois depois de 2005, vem o segundo mandato de Lula. Que, como todas as pesquisas e o senso comum demonstram, foi de crescimento da influência do PT.

Uma época durante a qual a vida do povo estava melhorando, ainda que por caminhos que podiam e deviam ser criticados, especialmente por não se ter aproveitado o momento de bonança para se preparar para o que aconteceria depois, inevitavelmente.

*

Valério passa de 2005 para 2013. Antes de falar das Jornadas, um registro: me surpreende como Valério simplesmente desconsidera, em sua análise do governo Lula e do que viria depois, os efeitos da crise internacional de 2008. Nela está, penso eu, a explicação fundamental para o esgotamento da estratégia adotada pelo PT. Mas nenhuma, nenhuma palavra é dita a respeito por Valério.

Ele fala que a “incerteza política, e a tendência à estagnação econômica, contaminaram os humores da maioria da burguesia, que elevou o tom de suas exigências”. Mas não diz uma, nem uma única palavra, a respeito da crise mundial de 2008. Espantoso. Bons tempos em que a crise do capitalismo e os acontecimentos mundiais não faltavam numa análise deste tipo.

*

Sobre as jornadas de junho de 2013, o resumo de Valério tem a mesma pegada do que eu escutei pessoalmente ele falar na época: grande entusiasmo e pouca atenção para o lado B do que estava ocorrendo. Naquela época, salvo engano da minha parte, Valério ainda estava no PSTU. Não sei o que ele pensava na época da linha política resumida na chamada “que se vão todos”, linha que me parecia de um ultra-esquerdismo atroz.

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E aí veio, segundo Valério, a quinta crise (lembrando: Convergência, 2001-2003, mensalão, junho 2013): a nomeação de Levy para o ministério da Fazenda, em 2015. Nesta crise teria ocorrido, segundo ele, “um salto de qualidade na ruptura da geração mais jovem da classe trabalhadora com o PT”.

Pode ser, mas não tenho pesquisas que confirmem isto. Seja como for, o problema é que esta ruptura, tendo ocorrido ou não ali, não reforçou as fileiras de outra esquerda. Um indicador disso: se observarmos o desempenho eleitoral da esquerda entre 2012 e 2020, o que fica claro é uma redução geral, com o PT perdendo muito, embora mantendo a liderança frente aos demais partidos. Ou seja: as parcelas da classe trabalhadora que se deslocam do apoio ao PT, na sua maioria o fazem em direção à direita, à abstenção, ao voto branco e nulo. Uma minoria transita do PT em direção a outros partidos de esquerda. E o que é pior: a abstenção, o voto branco e nulo são mais frequentes entre os jovens.

*

Aí vem — sempre segundo Valério — a sexta crise, quando o PT não teria sido “mais capaz de responder à altura, nas ruas, à iminência do golpe institucional”. E depois teria vindo a sétima crise: “Agora, ao final de 2020, o PT vive a sua sétima grande crise. Embora com resiliência entre os ativistas veteranos que vieram dos anos oitenta e noventa, em especial, nos setores mais organizados da classe trabalhadora, o PT perdeu influência na juventude para o Psol”.

Quem sou eu para minimizar os problemas do PT. Mas minha impressão, lendo este texto de Valério, é que ele usou um roteiro antigo, atualizado com fatos mais recentes: a pegada segue a mesma, embora mais cautelosa, talvez devido ao fato de outras previsões não terem se materializado.

Segundo Valério, seria “difícil prever qual será o destino de um PT envelhecido, quando consideramos a entrada em cena do vigor do movimento feminista, da potência das jovens negras, da audiência ambiental, do impulso dos LGBT, e da ruptura da nova geração de trabalhadores, os mais instruídos da história do país, porém, precários e com salários miseráveis”.

Que o PT está envelhecido, não tenho dúvida. Que o Partido corre imensos riscos, também não tenho dúvidas. Mas a narrativa de Valério sugere implicitamente algo que não é nem de longe garantido, a saber: que o enfraquecimento do PT será seguido pelo fortalecimento do PSOL.

O PT atual é produto do que até hoje foi a maior onda de lutas populares da história do Brasil. Sem uma onda de lutas similar, sem que a classe trabalhadora se lance em revolta aberta contra o regime atual, assim como o fez no final dos anos 1970, não vejo como possa surgir algo superior e melhor do que o PT.

Na ausência desta onda de lutas, o enfraquecimento do PT produz o enfraquecimento de toda a esquerda. As ilusões causadas pelo resultado eleitoral de São Paulo capital são, neste sentido, ilusões de verdade.

Valério se pergunta: “Quem irá dirigir a próxima onda de lutas no Brasil? A esquerda estará à altura do desafio de derrotar Bolsonaro? Não é possível prever se o PT se recuperará ou não porque ainda estamos em uma situação desfavorável e defensiva na luta contra Bolsonaro. Mas a história sugere que a luta de classes pode assumir formas lentas, até que se torna vertiginosa”.

De acordo. E acho que existem condições objetivas para que haja uma mudança no clima em 2021. Entretanto, supondo que esta luta ocorra, por quais motivos ela não poderia beneficiar exatamente o PT, a exemplo do que ocorreu em alguns países do mundo, em que partidos “tradicionais” da esquerda foram o veículo principal para a insatisfação popular?

O cálculo de que uma onda de lutas vai beneficiar necessariamente outro partido, que não o PT, é uma hipótese; mas quando olhamos a distribuição real de forças entre os partidos de esquerda no Brasil, sua presença regional e social, fica mais forte uma outra hipótese: a de que o PT pode se beneficiar.

Aliás, não é por outro motivo que cooptar, neutralizar ou destruir o PT continua sendo objetivo prioritário da direita, em todas as suas facções. E é por este mesmo motivo que a luta interna do PT segue viva, pois para que haja luta, e inclusive para que esta luta possa revitalizar o PT, ajudará muito que haja uma mudança na linha política e na conduta do Partido.

Enfim, estou de acordo que os partidos nascem e morrem; e que as mortes podem ser lentas ou rápidas. Mas não estou de acordo que o PT esteja fadado a disjuntiva “adesão/desaparecimento”. Nem na versão da esquerda moderada (adesão ou desaparecimento), nem na versão da esquerda antipetista (adesão e desaparecimento), não concordo que este seja o único destino possível do PT. E entendo que devemos lutar para que outro destino prevaleça.

Lutar contra a classe dominante. E também lutar contra aqueles que, dentro ou fora do PT, acham que nosso destino está traçado. Até porque nosso sucesso ou insucesso não seria de um partido qualquer, mas sim o sucesso ou insucesso do “maior partido que a classe trabalhadora brasileira construiu em sua história”. Algo assim há de ter mais que sete vidas.

(*) Valter Pomar é professor e membro do Diretório Nacional do PT


 

SEGUE ABAIXO O TEXTO CRITICADO

Natureza do PT e suas crises em perspectiva histórica

O PT é um tipo especial de partido de esquerda. É um partido eleitoral, reformista, mas não mantém relações estáveis, permanentes e orgânicas com a burguesia

VALÉRIO ARCARY

Vinho e riqueza mudam o homem mais sóbrio.

Conheces o marinheiro quando vem a tempestade.

Sabedoria popular portuguesa

O centro da polêmica em “Que fazer?” e em “Um passo à frente, dois passos para trás”, é a distinção entre o partido (revolucionário) e a classe (trabalhadora), o que rejeita todas as tentativas de confundir ou identificar ambos. Essa distinção, elementar do ponto de vista do marxismo da Segunda Internacional, implica examinar a especificidade da esfera política, suas correlações de forças e seus próprios conceitos. Esse terreno não é simplesmente um reflexo ou uma extensão da correlação de forças sociais. Ele expressa a transformação das relações sociais (e da luta de classes) em termos políticos, com seus próprios – como a psicanálise diz – deslocamentos e condensações. [1]

Daniel Bensaïd

Permanecem vivas as controvérsias de critérios para a apreciação histórica dos partidos políticos. Só não se pode é julgar um partido por aquilo que ele pensa sobre si próprio.

Há quem defenda que um partido se define, essencialmente, pela sua linha política: ou é de direita, centro, esquerda ou as variantes intermediárias. Esse critério é insuficiente e ingênuo. O vocabulário político flutua de acordo com a mudança nas relações sociais e políticas de força. Quando a situação política é reacionária tudo se desloca para a direita. Quando a situação é revolucionária tudo se desloca para a esquerda. Há muita dissimulação no vocabulário político.

Nos anos oitenta, o que vingava no Brasil era o ascenso das lutas operárias e populares contra a ditadura militar, que se agigantou a partir da luta pelas Diretas Já em 1984. Como o pêndulo da relação social de forças girava a favor dos trabalhadores, a principal representação do núcleo duro da burguesia paulista assumiu o nome de partido da socialdemocracia. Socialdemocracia é o nome dos partidos socialistas de base na classe trabalhadora, os herdeiros da tradição da II Internacional, como Labour britânico. O PSDB nunca foi social democrata. Sempre foi um partido burguês liberal.

Desde 205/16, o pêndulo da relação social de forças girou de forma reacionária. Bolsonaro é um neofascista e o seu governo é uma coalizão de extrema-direita, mas é retratado pela mídia como se fosse de direita. O bloco político de direita, que se articula em torno do PSDB/MDB e DEM, que venceu as recentes eleições municipais é apresentado como centro.

Há quem defenda que um partido se define somente pela sua ideologia. Também é inadequado. A imensa maioria dos partidos no Brasil não tem, se formos rigorosos, ideologia, são legendas eleitorais que defendem interesses. Na verdade, o tema exige uma pluralidade de critérios.

Partidos podem ser julgados pelo programa que apresentam para a transformação da sociedade. Ou podem ser explicados: (a) pela história de suas linhas políticas e de suas lutas políticas, sobretudo, as internas; (b) pelo confronto entre suas   posições  quando estão   na    oposição,   e   quando    se aproximaram  do  poder; (c) pelos valores  e   ideias  que  inspiram   seu programa (d)  pela  composição   social  de seus   membros,    militantes   ou simpatizantes, ou dos seus eleitores, ou da  sua   direção; (e) pelo  regime  interno   do seu funcionamento; (f) pelas formas de seu financiamento;  (g) pelas   suas  relações internacionais. Todos estes critérios são válidos e significativos, e a construção de uma síntese exige uma apreciação da sua dinâmica de evolução.

Para aqueles que usam o marxismo como método de análise das relações sociais e políticas, todos estes elementos são significativos, mas uma caracterização de classe é inescapável. Mas análises marxistas são o estudo das contradições em vários níveis distintos de abstração, e através de mediações.

O PT usou muito vocabulário marxista, mas nunca foi um partido marxista. Cultivou afinidades, mas nunca foi um partido socialdemocrata no formato europeu. Manteve relações com o PC da Alemanha Oriental até 1989, mas nunca se identificou com o aparelho dos partidos alinhados com a URSS. Estreitou relações com o PC cubano, os sandinistas da Nicarágua, a Farabundo Marti de El Salvador e com o governo de Chávez na Venezuela, nos anos noventa, com a formação do Foro de São Paulo, mas nunca foi um partido revolucionário.

Afinal o que é o PT? O PT é o maior partido que a classe trabalhadora brasileira construiu em sua história. Conheceu uma gênese nos anos oitenta, o apogeu na virada do milênio, e entrou em uma lenta, porém, ininterrupta decadência desde 2013.

O PT é um tipo especial de partido de esquerda. É um partido eleitoral, reformista, mas não mantém relações estáveis, permanentes e orgânicas com a burguesia. Nenhum grupo capitalista nunca controlou sequer uma ala do PT. O PT é independente da classe dominante. É um aparelho eleitoral profissional, mas não porque concorre a eleições. É eleitoral, porque depende, há muitas décadas, dos mandatos parlamentares e do financiamento público para sobreviver, e não da sua militância. É reformista, não porque luta por reformas, mas porque está adaptado ao regime. Reformista, portanto, porque defende a regulação do capitalismo ou a colaboração de classes. Mas a condição eleitoral e uma política reformista não transformam o PT em um partido burguês. Um partido é burguês quando mantém relações estruturais com alguma fração dos capitalistas. Portanto, o PT é diferente do peronismo.

Reconhecer a natureza de classe de um partido não equivale a dizer que sua política representa os interesses da classe. É muito mais complicado. Um partido reformista pode ser um instrumento adaptado à gestão do capitalismo e, ao mesmo tempo, independente da burguesia. Isso significa que tem a liberdade para fazer “giros políticos à esquerda”, ainda com maior impulso se está na oposição.

Resumindo uma longa história e sendo, portanto, “brutal”, o PT nos anos oitenta, com erros táticos aqui ou acolá, foi um instrumento poderoso de representação dos interesses de classe e cumpriu um papel progressivo. Ao longo dos anos noventa oscilou muito e, depois que conquistou a presidência prevaleceu o papel regressivo.

Mas a prova no “laboratório da história” sobre o PT foi que, em 2016, a classe dominante brasileira se unificou para derrubar o governo Dilma Rousseff, e organizou uma campanha para criminalizar sua direção e destruir, politicamente, sua máxima liderança Lula. Ficou claro que a operação LavaJato, embora tenha atingido, também, PSDB, MDB, PP e outros, obedecia a uma estratégia de luta pelo poder, e isso exigia deslocar o PT. A fúria de classe da burguesia confirmou que não era um partido burguês. Mas não somos metafísicos, vamos além do aristotelismo.

Portanto, dialeticamente, em outro grau de abstração, todos os partidos reformistas, são partidos do regime democrático-liberal, dependentes da institucionalidade, e o PT não é diferente. Marxistas da III Internacional usavam uma fórmula para identificar esta integração na defesa dos limites da ordem estabelecida: definiam a social democracia como um partido operário-burguês. Ou seja, partidos independentes da classe trabalhadora, com direções que capitulavam diante da pressão da classe dominante. Quando no governo, com responsabilidades de gestão do Estado, ocupavam o lugar de um partido burguês-operário.

Mas como tudo que existe os partidos, também, se transformam. E o PT de 2020 é evidentemente muito diferente do PT de 1980. Análises históricas não devem se resignar a reconhecer permanências, porque o desafio é descobrir as mudanças. A direção do PT é a mesma, mas estes quarenta anos não passaram em vão, e o partido que nasceu na luta contra a ditadura não é mais o mesmo, se é que ainda existe.

Acontece que mudanças não são possíveis sem crises. Os partidos podem ter crises de crescimento, alimentadas pelos seus acertos e desafios engrandecidos que vêm com uma influência maior, ou crises produzidas pelos seus erros. Mas não é possível não ter crises.

No seu processo de transformações, o PT enfrentou muitas crises. A dinâmica política de sua evolução não foi linear. O critério para definir quais entre as crises foram as mais importantes será sempre controverso. O que importa não é se os que viveram o processo compreenderam a gravidade da mudança que aconteceu, mas se o desenvolvimento futuro do Partido confirmou que ela foi decisiva.

Uma crise é significativa quando um partido sai dela diferente daquilo que era. Nos anos oitenta, por exemplo, quando a situação política evoluía à esquerda pela mobilização mais ativa dos trabalhadores e da juventude, o PT teve a primeira ruptura, pela direita, mas foi indolor, tanto na vanguarda mais orgânica, quanto na área de influência eleitoral.

Três deputados federais, Bete Mendes e José Eudes, liderados por Airton Soares, romperam com o partido em 1985, porque o PT não apoiou a Aliança Democrática que elegeu, indiretamente, a chapa Tancredo/Sarney no Colégio da ditadura, na sequência da campanha das Diretas em 1984. Saíram sozinhos, sem deslocamentos militantes, e sem maiores sequelas na influência eleitoral, que permaneceu ascendente.

A atitude da bancada do PT em relação à Constituição de 1988 foi simbólica deste período. O PT votou contra a Constituição, mas assinou o documento, portanto, assumiu, publicamente, o respeito pela legitimidade do novo regime. A direção do PT sabia muito bem que estava sinalizando para a classe dominante um compromisso. A burguesia brasileira compreendeu o gesto. Não por acaso, a direção do PSDB, liderada por Mario Covas, unanimemente, declarou o apoio a Lula contra Collor no segundo turno em 1989. Assim como Brizola.

O processo de adaptação político-social aos limites do regime democrático que saiu da eleição de Tancredo/Sarney no Colégio Eleitoral era nebuloso para a maioria da vanguarda ativista que tinha referência no PT, porém, como a evolução futura confirmou, dramaticamente, já era irreversível.

O que não impediu que, ainda durante alguns anos, uma parcela majoritária da esquerda petista considerasse que o PT, e mesmo sua direção, seria um partido “em disputa” para o projeto da revolução brasileira. O que obscurecia a mudança política profunda era que, embora o PT tivesse deixado de ser oposição ao regime democrático, era não só oposição ao governo Sarney, mas uma oposição intransigente e radical.

No início dos anos 1990, quando a situação política evoluía à direita, a direção do PT convocou o 1º Congresso e decidiu expulsar a Convergência Socialista, uma corrente trotskista. Foi uma nova crise. Dali para frente, as tendências de esquerda que ainda resistiam no PT ficaram sabendo qual seria o seu destino, se desafiassem a direção. Esta crise não teve repercussão eleitoral, mas deixou uma ferida incurável: uma das correntes da ala revolucionária tinha sido eliminada.

Paradoxalmente, após o impulso do Fora Collor, a corrente majoritária do PT — que tinha ido muito longe no seu giro à direita no 1º Congresso de 1991 — se dividiu, originando a Articulação de Esquerda. Esta corrente, unida às tendências marxistas DS (Democracia Socialista) e Força Socialista, entre outras, obteve uma vitória no Encontro Nacional do PT em 1993. A reação, no entanto, foi um fogo de palha e se revelou efêmera.

No Encontro Nacional de 1995, na sequencia da segunda derrota presidencial de Lula em 1994, a Articulação, liderada por Zé Dirceu, recuperou a maioria, em aliança com a tendência Nova Esquerda, liderada por José Genoíno e Tarso Genro.

A ilusão de um partido em disputa desmoronou, e a inflexão da situação política após a vitória de FHC, e a derrota da greve petroleira em 1995, foram o bastante para que a luta interna no PT se transformasse num assunto, essencialmente, de profissionais políticos.

Em 1999, a direção do PT, depois da terceira derrota eleitoral em 1998, realizou mais uma inflexão à direita: impôs um veto à campanha Fora FHC que a CUT e o MST vinham construindo, com o apoio da esquerda interna e externa ao PT, e que tinha realizado em Brasília um ato com cem mil ativistas. A campanha pelo Fora FHC de 1999 tentava mimetizar o que tinha sido a campanha Fora Collor em 1992, e ameaçava crescer em um contexto de intenso mal estar provocado pela maxidesvalorização do real no primeiro mês do segundo mandato de FHC. O posicionamento inflexível da direção do PT – Zé Dirceu condicionou a sua eleição à presidência do PT à derrota da moção pelo Fora FHC – revelou para a classe dominante a disposição de fazer a disputa respeitando o calendário eleitoral do regime.

Em julho de 2002, a direção do PT articulou através de Palocci, ex-prefeito em Ribeirão Preto, um Manifesto no lançamento da quarta candidatura de Lula à presidência, desta vez tendo como vice Zé Alencar, um dos maiores empresários do setor têxtil, e senador por Minas Gerais. Este documento declarava com todas as letras a decisão de honrar o pagamento da dívida pública, interna e externa. Finalmente, em 2003, depois da eleição de Lula, a direção do PT não hesitou em expulsar Heloísa Helena, e os deputados que vieram a fundar o PSOL, com a acusação de indisciplina por terem se recusado a votar no Congresso a reforma da Previdência.

Foi uma nova crise e transformação. Ficou comprovado que a mão da direção do PT não iria tremer no seu giro estonteante. A classe dominante brasileira compreendeu o significado deste gesto. Foi, porém, em 2005, que o PT atravessou a primeira crise séria de sua história. Uma parcela do núcleo duro de sua direção foi decapitada, politicamente, pela crise aberta pelas denúncias do mensalão. Apesar de indisfarçável satisfação das frações majoritárias da classe dominante com o governo Lula desde o primeiro mandato, a oportunidade aberta pela crise do mensalão precipitou uma ofensiva política burguesa no Congresso Nacional e na mídia, com algum eco nas ruas, que fez Lula tremer no Palácio do Planalto.

O mensalão obrigou o PT a sacrificar Zé Dirceu e outras lideranças, e deixou o partido, parcialmente, desmoralizado entre os setores mais críticos do ativismo operário e popular, em boa parte da vanguarda estudantil mais lutadora, e nos meios da intelectualidade de esquerda mais honesta.

A quarta grande crise foi precipitada pelas Jornadas de Junho de 2013. Milhões nas ruas em mobilizações contra todos os governos, sem poupar os governos liderados pelo PT, em especial, Haddad em São Paulo, e Dilma Rousseff em Brasília, puseram fim aos dez anos de estabilidade política no país. Em um mês, os índices de aprovação do governo Dilma desabaram, vertiginosamente, de quase 60% para menos de 30%, em um contexto muito semelhante ao do “que se vayan todos” da Argentina em dezembro de 2001, das mobilizações da “geração à rasca” em Portugal, dos “indignados” da Puerta de Sol em Madri, ou mesmo dos jovens desempregados na Grécia. Depois de setembro de 2013, todavia, o governo liderado pelo PT se recuperou.

A incerteza política, e a tendência à estagnação econômica, contaminaram os humores da maioria da burguesia, que elevou o tom de suas exigências, depois da reeleição muito apertada de Dilma Rousseff em 2014 contra o PSDB de Aécio Neves. Mas a direção do PT, confiante depois da quarta vitória eleitoral para a presidência, não hesitou em jogar a carta da conciliação, mais uma vez, para acalmar os ultimatos da classe dominante, a aceitou entregar o Ministério da Economia para Joaquim Levy, indicado pelo Bradesco, um dos dois maiores bancos nacionais, e aceitou o ajuste fiscal que mergulhou o país na mais grave recessão desde o fim da ditadura. Essa decisão precipitou a quinta grande crise: a ruptura da geração mais jovem da classe trabalhadora com o PT deu um salto de qualidade.

Mas nada pode ser comparado à ofensiva, iniciada em 2015, e que culminou em 2016 no impeachment de Dilma Rousseff, no governo de Temer em 2017, e passou pela condenação e prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro em 2018. O PT viveu a sexta grande crise quando ficou claro que já não era mais capaz de responder à altura, nas ruas, à iminência do golpe institucional. Hesitou em chamar à mobilização popular durante um ano, não usou as posições institucionais para se defender, e entregou à CUT e ao MST, em vão, toda a responsabilidade.

Agora, ao final de 2020, o PT vive a sua sétima grande crise. Embora com resiliência entre os ativistas veteranos que vieram dos anos oitenta e noventa, em especial, nos setores mais organizados da classe trabalhadora, o PT perdeu influência na juventude para o PSol. É difícil prever qual será o destino de um PT envelhecido, quando consideramos a entrada em cena do vigor do movimento feminista, da potência das jovens negras, da audiência ambiental, do impulso dos LGBT, e da ruptura da nova geração de trabalhadores, os mais instruídos da história do país, porém, precários e com salários miseráveis.

Quem irá dirigir a próxima onda de lutas no Brasil? A esquerda estará à altura do desafio de derrotar Bolsonaro? Não é possível prever se o PT se recuperará ou não porque ainda estamos em uma situação desfavorável e defensiva na luta contra Bolsonaro. Mas a história sugere que a luta de classes pode assumir formas lentas, até que se torna vertiginosa.

O mesmo vale para o destino dos partidos.

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