Por Valter Pomar (*)
Leio quando posso os textos de Antonio Martins.
Mas como disse em artigo respondendo a ataque que Antonio fez contra o PT, os textos dele às vezes me fazem lembrar “aqueles livrinhos de bolso, com histórias de faroeste ou de espionagem. Eram muito legais. Mas você lia um, lia todos. Assim parecem certas análises de quem se acha vocacionado a renovar a esquerda, quando na verdade apenas opera nos marcos da ‘narrativa’ da direita.”
Para quem quiser ver a citação no original, está aqui:
Valter Pomar: Antonio Martins e “os três erros grosseiros” do PT
Foi exatamente nisto que pensei, ao ler o texto Na Venezuela, notas tristes e frágil esperança – Outras Palavras
Segundo Antonio, “as eleições de 28/7 não foram limpas e Maduro não obteve a maioria dos votos”.
Segundo ele, três “fatos” levariam “a constatar a ilegitimidade do resultado eleitoral”.
Na verdade, o que Antonio apresenta não são “fatos”, mas hipóteses.
Em nenhum momento ele comprova ou demonstra que Maduro “não obteve a maioria dos votos”.
O que ele chama de terceiro fato seria a “inconsistência do principal argumento utilizado até agora pelo governo, para justificar o sumiço dos números urna a urna”, o “ataque de hackers na noite das eleições”.
Tomem nota: “inconsistência”.
O segundo fato seria o “o afã em oficializar um resultado e encerrar o processo eleitoral, quando ainda não havia condições mínimas para isso”.
Tomem nota: “quando ainda não havia condições mínimas”.
O primeiro fato seria a ausência do “dado fático mais elementar em qualquer apuração: o resultado urna a urna”. Segundo Antonio, não faltariam “apenas estes documentos, mas a própria realidade que eles representam”.
A ideia é forte, mas o que é mesmo que Antonio quer dizer com “faltam não apenas estes documentos, mas a própria realidade que eles representam”?
Tomada ao pé da letra, a expressão “a própria realidade” são os votos dados por todos e cada um dos eleitores.
Pois bem, com atas ou sem atas, ninguém contesta que os eleitores compareceram às urnas e votaram.
Mais ainda: ninguém questiona que a primeira fase do trabalho de apuração foi feita.
Portanto os fiscais dispõem dos comprovantes emitidos nas urnas, grande parte dos quais checada com os votos físicos depositados ao lado das urnas eletrônicas.
Aliás, foi com base nesses comprovantes que a oposição tentou emplacar uma suposta apuração paralela, apuração que hoje já está completamente desmoralizada, até porque parte das supostas atas foi comprovadamente fraudadas.
É também com base naquela realidade que a justiça venezuelana ordenou que os partidos (e o próprio CNE) apresentassem todas as atas, recibos e comprovantes do processo.
Sendo assim, o que Antonio está reclamando faltar são os documentos totalizadores, não a “realidade que eles representam”.
Mas, claro, fica muito mais impactante falar que faltou a realidade, pois isso reforça a impressão de que tudo o que o CNE fez foi artificial, fraudulento.
É exatamente esta a hipótese de Antonio: os 5.150.092 votos de Maduro e os 4.445.978 de Guaidó Segundo, atribuídos aos 80% da totalização, teriam sido inventados, numa conta de trás para frente.
E não apenas teriam sido inventados, mas como teriam sido mal inventados, pois com estes números – sempre segundo Antonio – não seria possível projetar a vitória de Maduro.
Segundo Antonio, “com 80% das urnas apuradas, estavam computados, até aquele momento, 10.058.774 votos. Como 12.352.042 pessoas compareceram às urnas eletrônicas, faltava computar 2.393.268 votos. Mas a vantagem entre Maduro e González era de apenas 704.114 sufrágios (…) Ou seja, o número de votos ainda por apurar era 3,39 vezes maior que a vantagem atribuída a Maduro. A suposta dianteira, portanto, seria perfeitamente reversível. (…) Como responderíamos, os partidários de Lula, se em novembro de 2022 Jair Bolsonaro agisse da mesma maneira?”
Bom, no Brasil de outubro de 2022, a disputa era entre dois candidatos. Caso fosse esta a situação na Venezuela, caso a disputa fosse apenas entre Maduro e Guaidó Segundo, realmente a eleição não poderia estar definida aos 80% da apuração.
Mas na Venezuela havia outras oito candidaturas, que somadas chegavam a 4,6% ou 462.704 votos.
Quando se leva em conta estas oito candidaturas, é “aritmeticamente” possível considerar irreversível a vantagem obtida por Maduro.
(ps. Aqui há mais um problema, que me foi indicado pelo companheiro Mauro Lopes. Antonio Martins fala em 80% das urnas. As notícias divulgadas pelo CNE falam, salvo engano, em 80% das atas. E nada disso quer dizer, necessariamente, 80% dos votos. Motivo pelo qual a conta feita por Antonio faz menos sentido ainda.)
Claro, para ter certeza absoluta seria necessário saber de onde viriam os votos que faltava apurar. A parcial posterior confirmou a afirmação do CNE. Mas como já dissemos, Antonio parte de outra hipótese: haveria “indícios” de que foi tudo sacado da cartola.
Indícios, convenhamos, não são provas.
Seja como for, quais seriam os indícios?
Primeiro, uma declaração de um candidato opositor, que diz não saber “de onde o senhor Amoroso tirou este papel com o suposto resultado”.
Depois, um “estudo assombroso” publicado no El País, segundo o qual todos os resultados teriam sido inventados.
Novamente, peço atenção para os termos de Antonio: a conclusão do tal estudo seria “difícil de desmentir”, “provavelmente” os números foram inventados.
Indícios, difícil, provavelmente é diferente de provas, impossível, seguramente.
É com base neste tipo de argumento que Antonio constrói sua peça acusatória.
Não me convence. Mas confesso que, se Antonio tivesse razão, estaríamos diante da fraude mais tabajara de toda a história.
Antonio usa a mesma técnica para sustentar a “inconsistência do principal argumento utilizado até agora pelo governo, para justificar o sumiço dos números urna a urna”, o “vasto ataque de hackers na noite das eleições”.
A dupla prova da inconsistência seria i/uma empresa russa que monitora os ataques deste tipo em todo o mundo, e nada teria registrado no período aludido e ii/o exame do processo venezuelano de contagem dos votos.
Simplesmente não sei o que dizer acerca da tal empresa russa, mas acho genial o “exame do processo”.
Afinal, segundo Antonio, em todas as mesas eleitorais, os mesários e fiscais imprimem uma ata e a tornam pública.
Acompanhem o raciocínio:
1/as atas existem e são públicas;
2/mas não é com base nelas que o CNE afirmou que Madurou venceu, pois os números do CNE teriam sido inventados;
3/tampouco é com base nelas que a oposição afirma ter vencido, pois esta oposição tem “larga trajetória de falsificações e golpismo”;
4/muito menos é com base nelas que Antonio afirma que Maduro não obteve a maioria dos votos;
5/e como Maduro pediu à justiça que esta reunisse as atas e demais comprovantes e dirimisse o resultado, a única conclusão é que o golpe tabajara entrou na fase da negação da negação…
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Quase no final de seu texto, Antonio critica Manuel Domingos, José Genoíno e Roberto Amaral.
Segundo ele, apesar dos três adotarem uma abordagem digna e muito relevante, “as considerações geopolíticas não deveriam ofuscar o exame dos problemas políticos que afetam as pessoas em carne e osso; nem evitar que elas sejam protagonistas conscientes de seu destino”.
Até onde eu consigo entender, neste mundo cão em que vivemos as ações orientadas por considerações geopolíticas afetam e muito as pessoas em carne e osso. E quem está tentando evitar que os venezuelanos sejam protagonistas de seu destino são os EUA e a oposição. Mas o que Antonio quer dizer, de maneira educada, é que em nome da soberania da Venezuela não vale passar o pano em quem rouba as eleições.
Neste ponto eu concordo com Antonio. Acontece que ele simplesmente não provou que Maduro não obteve a maioria dos votos. No seu texto não há prova, há hipóteses orientadas por uma importante convicção: “O problema é que as atitudes do governo Maduro o afastam cada vez mais de uma oposição real aos projetos do capitalismo”.
O que vem em seguida adota esta, digamos, pegada.
Para Antonio, os protestos que ocorreram depois da eleição não foram obra da extrema-direita e do crime organizado. Na grande maioria dos casos teriam sido protestos pacíficos. Para tentar “frear” estes atos pacíficos, “o governo recorreu a prisões em massa de manifestantes”. Detalhe: parte “da cruzada de Maduro volta-se (ao contrário do que se costuma imaginar no Brasil) contra a esquerda”.
Ao final de tudo, Antonio especula sobre alternativas e propõe “um acordo em que a sociedade civil e os movimentos sociais tenham papel ativo”. Segundo ele, não seria a “alternativa mais fácil no momento. Mas parece ser a única capaz de preservar, na sinuca de bico em que a Venezuela as (sic) meteu, saídas favoráveis dos pontos de vista geopolítico e político”.
Antonio não desenha entre quem e quem seria feito o tal “acordo”. Nem diz quem obteve a maioria dos votos. O motivo é óbvio: não há como ter uma saída favorável para a Venezuela, tendo Guaidó Segundo como presidente. Mas é a isso que conduzem as hipóteses de Antonio Martins, em mais uma análise que opera nos marcos da “narrativa” da direita.
(*) Valter Pomar é professor e membro do diretório do PT