Visitando nossa cozinha

Por Valter Pomar (*)

“Visite nossa cozinha”: é reconfortante estar num restaurante e ler essa mensagem afixada na parede.

Funciona como uma espécie de contraponto à clássica “se o povo soubesse como são feitas as leis e as salsichas”.

Falo isso, por conta das mensagens que tenho recebido – algumas por escrito, outras por telefone  – acerca da “declaração de voto” que divulguei na segunda-feira dia 10 de julho.

A dita cuja pode ser lida aqui:  https://pagina13.org.br/declaracao-de-voto-2/

Na maioria dos casos, as pessoas não acreditam ou não entendem que o Diretório Nacional do PT (ou, para ser mais preciso, 47 de seus integrantes) tenha recusado incluir, na sua resolução, uma emenda dizendo o seguinte: “Não se poderá falar em democracia plena no Brasil, enquanto persistir a tutela militar. O Diretório Nacional do PT decide convocar uma conferência nacional para debater a política de Defesa Nacional e o papel das forças armadas”.

A quem pergunta, tenho – sem contar os santos – explicado como se deu o milagre, passo a passo.

E como o número cresce, melhor fazer por escrito. Aí vai.

Primeiro passo: convocação de uma reunião do Diretório Nacional do PT, estabelecendo um prazo para a divulgação de projetos de resolução.

Passo dois: apresentação ao DN de oito projetos de resolução.

Passo três: os oito projetos de resolução foram submetidos a voto. O projeto vencedor teve 33 votos e se converteu em “texto-base”. Os outros sete projetos, somados, tiveram 32 votos.

Passo quatro: constituída uma comissão, com representantes dos autores de cada um dos oito projetos, para elaborar a partir do texto-base um texto definitivo, a ser submetido à votação no DN.

Passo cinco: a reunião do DN termina, a comissão segue trabalhando. Os integrantes da comissão apresentam emendas ao texto-base. Uma segunda versão do texto-base é elaborada. Novas emendas são apresentadas. Um dos signatários do texto-base afirma discordar de duas emendas, uma das quais fala em convocar uma conferência nacional para debater a política da Defesa Nacional e o papel das forças armadas.

Passo seis: o autor da emenda sobre as forças armadas propõe, como alternativa, que o Diretório oriente “a Fundação Perseu Abramo a realizar, de preferência junto com as fundações dos partidos de esquerda e progressistas, uma conferência nacional para debater Defesa Nacional e o papel das forças armadas“. Um dos signatários do texto-base discorda da alternativa e propõe levar o tema a voto no Diretório. Uma terceira versão do texto-base é elaborada e enviada para conhecimento dos integrantes do DN.

Passo 6: três emendas são apresentadas à terceira versão do texto-base. A emenda 1 inclui as palavras “pela democracia e pelo socialismo”. A emenda 2 fala em  “recuperar o papel estratégico da Petrobrás para o desenvolvimento nacional”. E a emenda 3 ataca a tutela militar e aponta um caminho para o Partido fazer um debate a respeito.

Passo 7: um dos signatários do texto base reafirma que sobre a terceira emenda não há acordo.

Passo 8: começa a votação (feita no grupo de zap do DN), da seguinte forma: aprovar ou não o texto final, ressalvadas as emenda & aprovar ou não as emendas 1, 2 e 3. A maioria dos que votam se limita a votar. Pouquíssimos, além de votar, fazem algum comentário acerca do debate. Por motivos óbvios, só posso dar publicidade aqui a meus comentários, que reproduzo parcialmente abaixo:

Perdemos a oportunidade de “discutir melhor” a questão militar no debate sobre o programa de reconstrução e transformação; perdemos a oportunidade de “discutir melhor” a questão militar no debate sobre o programa da federação; perdemos a oportunidade de “discutir melhor” a questão militar no debate sobre o programa da coligação. O mesmo ocorreu no governo de transição. Esta atitude contribuiu para sermos surpreendidos pelo 8 de janeiro. 

(…) “menos” repetição dos mesmos erros.

E veja, no caso, o único que peço é: vamos debater para valer o assunto. Sem falar da frase sobre a tutela militar. Precisa de tempo e oportunidade para concluir que vivemos sob tutela militar?

falar isso antes do dia 8 vai lá; mas depois do que ocorreu no dia 8 de janeiro, não dá.

(…) o argumento de combinar com mais gente foi usado no debate sobre o programa de reconstrução, no debate da federação, no debate da coligação. E o que aconteceu? Nada. Aí veio a transição e nem houve grupo para o tema. E aí veio o dia 8 de janeiro.

O tema é: tem um elefante na sala (a questão militar), todo mundo está debatendo (explícita ou implicitamente) o assunto. Mas oficialmente a gente fica com pruridos.

Na verdade, funciona assim: a direita debate o tema, os militares debatem o tema, os EUA debatem o tema, o resto da esquerda debate o tema, a CCJ debate o tema, só o Diretório Nacional não pode debater??

(….) a essa altura do campeonato, recusar uma emenda que critica a tutela militar é algo insólito.

Passo 9: término da votação, divulgação da “declaração de voto já citada”, publicação da resolução final. Começam as ligações e mensagens de quem não entendeu como pode ocorrer o ocorrido.

Último comentário: na comissão e no DN, ninguém argumentou que a tutela militar não existe ou não deva ser combatida. O problema parece estar no quando, como e onde debater o assunto. Enquanto isso não se resolve, se depender dos 47 teremos – como eu escrevi no grupo de zap do DN – luta pelo socialismo e Petrobrás, mas com tutela militar.

E segue o barco.

(*) Valter Pomar é professor e membro do diretório nacional do PT

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