“Viver pouco como um rei ou muito como um zé”: lições de Mano Brown e da criminologia crítica para o senador Contarato

Por Lucas Arieh (*)

Mais do que qualquer estudo criminológico, de sociologia do crime urbano, quem matou a charada da forma mais sintética e popular possível sobre a motivação por trás da ação criminal do arquetípico traficante provindo das periferias brasileiras foi um senhor chamado Pedro Paulo Soares Pereira Soares ou, simplesmente, “Mano Brown”.

Em “Vida Loka – Parte I”, Mano Brown narra os conflitos internos e externos de um jovem de periferia que, pressionado por uma série de metas sociais inalcançáveis pelo poder aquisitivo das maiorias, opta pela “Vida Loka”, buscando audaciosamente (pela vida no crime) alcançar sentido existencial diretamente relacionado à sociabilidade consumista e ostentatória (“Dinheiro é foda, na mão de favelado é mó guela”; “Imagina nóis de Audi ou de Citroen”) que lhe são negadas por meios lícitos, bloqueados que estão pelas classes dominantes (“Se é isso que ‘cês quer, vem pegar; Jogar num rio de merda e ver vários pular”), sempre contrárias às mudanças estruturais que poderiam assegurar bem-estar e igualdade de oportunidades para toda a sociedade.

A letra de Brown capta o tamanho da ousadia que naturalmente representa viver sob o risco permanente de morte:

Quanto, mais tempo eu vou resistir
Pior que eu já vi meu lado bom na U.T.i.
Meu anjo do perdão foi bom, mas ‘tá fraco
Culpa dos imundo, do espírito opaco
Eu queria ter, pra testar e ver um malote
Com glória, fama, embrulhado em pacote.

A razão dessa permanência, dessa “morte-presença”[1] a perambular como um fantasma na cabeça desse arquétipo retratado na música é brilhantemente descrita por Brown, que a coloca em tensão com os desejos de consumo – alcançados apenas pela vida loka no crime – descrevendo a pergunta definitiva sobre a disjuntiva que se apresenta para o morador de periferia:

Firmeza? Não é questão de luxo, não é questão de cor
É questão que fartura alegra o sofredor
Não é questão de preza, nêgo, a ideia é essa
Miséria traz tristeza e vice-versa
Inconscientemente vem na minha mente inteira
Na loja de tênis o olhar do parceiro feliz
De poder comprar o azul, o vermelho
O balcão, o espelho, o estoque, a modelo
Não importa, dinheiro é puta e abre as portas
Dos castelos de areia que quiser
Preto e dinheiro, são palavras rivais
É, então mostra pra esses cu como é que faz
O seu enterro foi dramático como um blues antigo
Mas de estilo, me perdoe, de bandido
Tempo pra pensar, quer parar, que ‘cê quer?
Viver pouco como um rei ou muito, como um Zé?

Trabalhos acadêmicos no campo da criminologia, como os de Merton, de Jock Young e de outros, dão respaldo teórico à precisa análise-letra de Brown, destacando a contradição entre metas sociais impostas pela sociabilização capitalista e os insuficientes meios lícitos de alcançá-las, e mostrando que qualquer política criminal deve ser pensada de forma totalizante, à luz das condicionantes infraestruturais e superestruturais colocadas na situação concreta.

No entanto, há entre nós – na esquerda, no petismo, no campo popular – aqueles e aquelas que depositam suas fichas no fetiche penal, acreditando na capacidade desse ramo do direito (aliás, em todos?) de resolver as contradições mais proeminentes, ainda que sob a hegemonia burguesa do aparelho estatal, uma condicionante decisiva de qual será a orientação seletiva dos processos de criminalização.

Um caso recente e emblemático daquilo que Maria Lúcia Karam nomeou de “esquerda punitiva”[2] ganhou as páginas do UOL, na pessoa do senador Fabiano Contarato (PT-ES). Segundo ele, que alega ver “romantismo da esquerda no combate à violência”, um de seus 12 projetos de lei para “combater a impunidade” seria o de “aumento tanto das penas de crime como tráfico de drogas quanto o tempo de internação para adolescentes que cumprem medidas socioeducativas”[3].

Tiramos duas lições de Brown e da criminologia crítica que podem servir de reflexão ao companheiro senador.

Lição número 1: a pena incide no efeito, não na causa

Como mostrado acima na letra de Mano Brown, é esperado que uma fração considerável da juventude periférica – carente de oportunidades de integração lícita ao mercado de trabalho que lhe confira um padrão de consumo próximo àquele socialmente imposto pelo modo de representação dominante – recorra à traficância como meio para atingir esses objetivos.

E, numa sociedade em que, cada vez mais se intensifica a demanda por parecer ser alguém bem-sucedido, endinheirado, com os hábitos de consumo dos que “venceram na vida”, essa pressão comparece com ainda mais força na nova juventude.

Atacar o problema da violência que marca o tráfico de drogas no Brasil e no mundo – uma decorrência direta das lutas competitivas existentes entre os concorrentes deste lucrativo mercado ilícito e entre estes e as forças policiais – por meio do aumento de pena soa, no mínimo, ingênuo.

Ora, é apenas criando oportunidades consistentes para a juventude (educação, saúde, estruturação familiar para o cuidado etc.), bem como trabalhando, no campo da educação política, para criar um modo de ver o mundo contra-hegemônico, que dessacralize o consumismo e valorize hábitos de vida modestos e dignos para todos e todas, que, consequentemente, se fomenta a saída da custosa armadilha da “Guerra às Drogas”.

 Lição número 2: enfrentar as causas da violência relacionada às drogas requer enfrentar o necessário fim da guerra às drogas

Fora a ingenuidade da proposta por um erro de análise da causa central da vida no tráfico, a proposta do Senador Contarato ainda incorre em equívocos quanto a seus efeitos.

Se bem o Senador reconhece a seletividade punitiva que incide na criminalização de pessoas negras e pobres por crimes relacionados ao mercado ilícito de drogas, por outro lado, ele parece “ouvir o galo cantar, sem saber de onde vem”.

Isso porque, ao invés de discutir a falida saída (à la Moro[4]) do modelo importado dos EUA de “Guerra às Drogas” – criado precisamente para criminalizar grupos sociais, e não para inibir condutas socialmente danosas –, deveríamos nos dedicar a ponderar seus efeitos perniciosos, que superam a olhos vistos qualquer eventual benefício dessa gestão criminal da questão social.

Algumas evidências mostram bem esse fracasso: (1) aumento de 23% do consumo de drogas, em 2021, em relação à década anterior, segundo reporte de órgão da ONU especializado na questão[5]; (2) custo de bem‑estar da Guerra às Drogas no Brasil estimado em R$ 50 bilhões/ano (0,77% do PIB), com perda de 4,2 meses na expectativa de vida média dos brasileiros (referência ano‑base 2017), conforme estudo do IPEA divulgado em 2023[6]; (3) criminalização excessivamente seletiva sobre corpos negros e periféricos (racismo institucional), cujo perfil condenatório é “jovem, de baixa escolaridade, não branco e que, quando houve flagrante de porte de drogas ilícitas, tinha quantidades relativamente pequenas”, impunizando grupos sociais privilegiados, também de acordo com estudos do IPEA de 2023[7][8].

Mais recentemente, em outubro de 2024, a pesquisadora Carolina Christoph Grillo publicou um report para a Global Initiative Against Transnational Organized Crime, denominado de “Depois da Guerra às Drogas: os impactos da regulação da cocaína e da cannabis no Rio de Janeiro”[9].

Nele, a pesquisadora corrobora a conclusão prevalente na criminologia crítica, segundo a qual a “Guerra às Drogas” funciona, na prática, como um instrumento catalizador de processos de criminalização de corpos periféricos que servem à “acumulação social da violência” (Misse apud Grillo) e, portanto, à própria reprodução dos mecanismos que garantem às “classes altas” sua posição de “superprivilegiamento das classes dominantes e o ‘controle da situação’ por suas elites”[10].

Ao analisar dados sobre como a duplicação da pena de tráfico e associação para o tráfico resultou na quase duplicação da população carcerária (2006, antes da Lei de Drogas de 2005: 214.8 presos por cem mil habitantes; 2022: 392.5 presos por 100mil habitantes), Grillo argumenta que, embora a regulamentação do mercado de drogas hoje ilícitas não seja suficiente para desmobilizar as estruturas criminais armadas (das milícias e dos grupos criminais “civis”), trata-se de uma medida incontornável para não só desencarcerar pessoas presas sob acusações de tráfico de drogas sem violência, diminuindo o exército de reserva à disposição das facções, assim como para sufocar os lucros das organizações criminosas.

A cadeia causal da economia do crime de tráfico é clara: mercado de drogas exige território, que exige defesa do território, que demanda armamentos e resulta em disputas cada vez mais sangrentas e em compras de apoios das forças policiais, com danos colaterais sobre a população civil. Sufocar a renda oriunda de mercadoria tão lucrativa quanto a das drogas ilícitas é ponto central e de partida para pensarmos na garantia efetiva do direito à segurança pública.

Ressalto que a regulamentação do mercado de drogas recreativas é fundamental para pensar um processo de revolução democrática – inserto na perspectiva de revolução socialista brasileira – que, efetivamente, caminhe para efetivar o direito fundamental à segurança pública. Desbaratar a principal fonte de financiamento de organizações armadas que comandam territórios manu militari é apenas um meio – necessário, porém não suficiente – para alcançar esse objetivo.

Certamente, a regulamentação desses mercados não é uma bala de prata para resolver a violência (estatal ou privada) contra as populações mais exploradas, como explica a pesquisadora. Isso porque, além de a dominância territorial hoje já se basear num plexo de serviços cobráveis via achaque, tal política não resultará no fim dos lucrativos mercados ilícitos e, sobretudo, porque aspectos como a letalidade policial servem à finalidade de garantir “controle social”, o que vai continuar sendo demandado de grupos sociais privilegiados.

Mas é certo que, menos ainda, a resposta se encontrará na falida aposta na “Guerra às Drogas” que, vale dizer, foi idealizada para criminalizar a esquerda, a população negra e os grupos de contracultura nos EUA[11], conforme admitiu assessor do ex-presidente do Império, Richard Nixon:

“Você quer saber do que se tratava realmente essa [guerra às drogas]? A campanha de Nixon em 1968, e a Casa Branca de Nixon depois disso, tinham dois inimigos: a esquerda anti-guerra e os negros. Você entende o que estou dizendo? Sabíamos que não poderíamos tornar ilegal ser contra a guerra ou negro, mas fazendo com que o público associasse os hippies à maconha e os negros à heroína, e depois criminalizando ambos pesadamente, poderíamos perturbar essas comunidades. Poderíamos prender seus líderes, invadir suas casas, interromper suas reuniões e difamá-los noite após noite no noticiário da noite. Sabíamos que estávamos mentindo sobre as drogas? Claro que sim.”

John Ehrlichman, Assistente do Presidente para Assuntos Internos do Presidente Richard Nixon

Diante disso, todo e qualquer militante comprometido com o direito social à segurança pública, para além de defender a revolução brasileira como garantidora da igualdade de oportunidades promovida por mudanças estruturais, deve pensar no combate à força do crime organizado pela via do estrangulamento financeiro, o que passa, necessariamente, pela regulamentação do mercado de drogas e pela repressão ao mercado de armas, que consiste numa demanda puxada pela necessidade de dominância territorial para instalar mercados.

Para concluir, vale advertir o companheiro senador, por quem tenho grande respeito: ao posicionar-se nessa linha, ele se colocou à direita, em termos de política criminal, da Folha de São Paulo que, em um de seus editoriais, foi taxativa ao reputar que “Aumento de pena é ineficaz contra roubos de celular”[12], ao criticar – corretamente e provando que relógio parado também acerta – projeto do Ministério da Justiça que propõe aumento punitivo para esses crimes, e não fortalecimento da inteligência policial, como forma de fragilizar o crime organizado.

A advertência deve vir acompanhada da reflexão: se estamos à direita do jornal que cooperou fortemente com a ditadura empresarial-militar, algo possivelmente há de errado em nossa análise e, pior, em nossa prática política.

Por fim, sou daqueles realistas de esquerda (tradição criminológica crítica) que compreende a necessidade de endurecermos o discurso de combate às violências que atacam nosso povo. No entanto, penso que só superaremos o cinismo demagógico do punitivismo populista penal se radicalizarmos nosso discurso e colocarmos no centro da questão as verdadeiras casamatas do crime e da violência: o poder econômico que se traduz em poder político.

Para sufocá-lo, precisamos ganhar adeptos, disputando politicamente, para uma política de regulamentação do mercado de drogas, obrigatoriamente atrelada à estratégia de transformações estruturais que garantam, tanto quanto possível, um horizonte de oportunidades legítimas para nossas juventudes.

(*) Lucas Arieh é advogado, mestre em direito penal e criminologia (USP) e dirigente estadual da tendência petista Articulação de Esquerda no RN


[1] Aqui, parafraseio o destacado trabalho criminológico do companheiro Renato Freitas, deputado petista na ALPR, que descreveu a presença constante nas periferias da temática prisional como “prisão-presença”.

[2] KARAM, Maria Lúcia. “A esquerda punitiva”, in Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade.

Rio de Janeiro, ICC/Relume Dumara, vol. 1, 1º sem. 1996, p. 91. Para entender a ideia geral, cito: “O equivocado discurso sobre a criminalidade, encerrando a entusiasmada crença no sistema penal e as reivindicações repressoras, na linha deste pragmatismo político-eleitoral, sem princípios e sem ideias, favorecedor da ampliação do poder punitivo do Estado, hoje faz de amplos setores da esquerda uma reacionária massa de manobra da ‘direita penal’ e do sistema de dominação vigente, parecendo dar suporte aos que enganadoramente sustentam que a contraposição entre direita e esquerda teria perdido sua razão de ser.”

[3] Senador do PT vê romantismo da esquerda e cobra discurso duro de Lula

[4] As crendices de Moro

[5] Relatório Mundial sobre Drogas 2023 do UNODC alerta para a convergência de crises e contínua expansão dos mercados de drogas ilícitas

[6] Custo de bem-estar da guerra às drogas corresponde a R$50 bilhões por ano, revela estudo do Ipea – Ipea

[7] Estudo comprova: bairros mais ricos e de maioria branca são praticamente imunes a entradas da polícia em domicílio em busca de drogas – Ipea

[8] MJSP e Ipea lançam pesquisa sobre o perfil de pessoas processadas em ações criminais por tráfico de drogas – Ipea

[9] globalinitiative.net/wp-content/uploads/2024/10/After-the-war-on-drugs-The-impacts-of-cocaine-and-cannabis-regulation-in-Rio-de-Janeiro-Carolina-Christoph-Grillo-GI-TOC-October-2024.pdf

[10] FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. São Paulo: Global, 2009, p. 102

[11] Instituto Vera

[12] https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2025/04/aumento-de-pena-e-ineficaz-contra-roubos-de-celular.shtml

Respostas de 2

  1. Li com atenção o seu artigo e quero começar dizendo o óbvio: seu texto é necessário, corajoso e bem fundamentado! A forma como você costura Mano Brown com criminologia crítica é potente – não apenas pela intertextualidade, mas porque você dá voz ao chão da rua sem perder a densidade do argumento acadêmico. Isso é raro! Você escreve com indignação legítima, mas também com método. Isso toca, provoca e empurra a gente para refletir. Gostei muito da estrutura em “lições”, que dá ritmo à leitura e organiza o raciocínio. E mais ainda da forma como você articula os dados – ONU, IPEA, Global Initiative – com as ideias centrais. Isso dá lastro à crítica e prova que estamos falando de realidade concreta, não de uma abstração ideológica. Também achei potente o modo como você trata da seletividade penal. A maneira como você mostra que a guerra às drogas é, de fato, uma guerra contra pessoas negras e pobres é certeira. E ao trazer a figura do companheiro senador Contarato para o centro da crítica, você não foge da autocrítica dentro da própria esquerda – isso é maturidade política. Parabéns!

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