A austeridade é o problema, e não a solução para o Brasil

por Lindberg Farias

Fernando Haddad publicou, em 12 de outubro de 2019, um artigo na Folha de São Paulo avaliando, entre outros pontos, a gestão fiscal no governo Dilma. O tema das relações entre despesa pública e atividade econômica é estratégico para a definição de rumos do país e de propostas formuladas pelo campo progressista na área fiscal. Neste contexto, convém destacar o papel de Fernando Haddad em incluir na agenda pública o debate sobre matérias cruciais para o desenvolvimento nacional.

A intenção de Haddad no artigo parece ser construir uma narrativa de que a política econômica de FHC a Dilma foi estruturada pelo tripé macroeconômico – câmbio flutuante, superávit primário (a rigor, resultado primário, que pode ser superavitário ou deficitário) e meta de inflação, variando apenas a maneira como cada governante lidou com o tripé.

A especificidade atribuída a Dilma é, “diante da perspectiva de desaceleração econômica, o enfraquecimento da base fiscal”. É aí que vale precisar alguns aspectos da política fiscal do período Dilma e sua relação com a retração do PIB no período 2015-2016.

O primeiro fato para o qual Haddad chama atenção é o desacerto da agenda de estímulo ao investimento privado. De fato, entre 2007 e 2014, os gastos tributários passaram de 2,4% para 4,5% do PIB, especialmente em razão da desoneração do PIS/PASEP, COFINS e contribuições previdenciárias. A aposta nas desonerações, entre outras políticas de apoio à indústria, partiu do diagnóstico equivocado de que o investimento privado reagiria com a queda dos custos e aumento da margem de lucros das empresas, o que não ocorreu diante da desaceleração de demanda.

O esfriamento da economia se deu no contexto de mudança da política econômica com aumento da taxa de juros, medidas macroprudenciais de contenção do crédito e ajuste fiscal. Portanto, não há como se falar em enfraquecimento da base fiscal no período 2011-2014. Ainda que as desonerações tenham afetado a arrecadação, o ponto é que, a partir da crise, a receita passa a crescer abaixo da despesa. No período 2015-2016, este movimento se acentua: a despesa cai em termos reais, mas a queda da receita é muito mais intensa.

A contração fiscal praticada em 2015, com contingenciamento que superou R$ 80 bilhões, foi decisiva para a queda do PIB de 3,5%, sobretudo por meio da redução dos investimentos públicos, que passaram de 0,7% do PIB para 0,45% do PIB. A literatura econômica destaca as complementaridades entre investimento público e privado. Portanto, os cortes orçamentários afetaram a taxa de investimento da economia como um todo, implicando redução de 3 p.p. de PIB entre 2013 e 2015. Isto é, se a economia já desacelerava no período 2011-2014, a situação se converte em crise em 2015, com redução da demanda e ampliação do desemprego. Neste contexto, a guinada austericida levada adiante por Joaquim Levy, simultaneamente a outros choques, como o aumento dos preços administrados, reforçou o quadro recessivo, aspecto crucial para entender a crise, mas que não foi tratado por Haddad.

Há de se esclarecer as relações entre a crise econômica e a austeridade para que possamos propor saídas efetivas para o país voltar a gerar emprego e renda. Primeiro, a piora do resultado primário tem forte impacto da queda da arrecadação, efeito, especialmente, da crise. A busca por resultados primários elevados num momento de queda da receita induziu a cortes de gastos que afetaram a economia.

Além disso, não é a queda do primário o fator que explica majoritariamente o aumento da dívida bruta do governo geral, mas os juros nominais. Países com dívida mais elevada que a brasileira despendem em juros valores menores que o Brasil. Em 2015, o Brasil gastou 8,5% do PIB em juros. A Espanha, com quase 100% de dívida bruta, gastou 2% do PIB com encargos financeiros da dívida. A Índia, com endividamento similar ao brasileiro, gastou 4,4% do PIB com juros. Vale lembrar que, para o Brasil, a ampliação das operações compromissadas e os swaps cambiais, com a desvalorização da moeda em 2015, mostram que aspectos que não são de ordem estritamente fiscal – como os relacionados à política monetária e cambial – influenciam fortemente a dinâmica da dívida. É preciso desmistificar a relação entre gasto público, dívida pública e crise econômica.

Enfim, o ponto de partida de qualquer diálogo da esquerda com outras forças políticas é desmontar o mito de que a crise econômica tem origem em algum tipo afrouxamento fiscal. Pelo contrário, a contenção de gastos, que reduziu investimentos públicos, teve papel central na retração do PIB e elevação do desemprego.

Os efeitos da Operação Lava-Jato sobre a economia, conforme levantado por Haddad, também não podem ser esquecidos. Neste contexto, os investimentos das estatais federais sofreram enorme redução, passando de 1,53% para 0,69% do PIB entre 2014 e 2017. A redução deve-se, em boa medida, à Petrobras, fortemente afetada pela Lava-Jato, que desmontou parcela da indústria petrolífera, mas também de sua cadeia de fornecedores, como a indústria naval e a construção civil. Neste último caso, foram perdidos mais de 900 mil empregos formais durante a crise.

Combinados, os fatores acima elencados – austeridade e Operação Lava-Jato – tiveram forte impacto sobre a taxa de investimento da economia. O mito da gastança serviu apenas como justificativa para o aprofundamento das políticas de ajuste fiscal, expresso pelo congelamento dos gastos públicos por até vinte anos, com a Emenda Constitucional nº 95, de 2016, aprovada após o golpe parlamentar contra a Presidenta Dilma.

Desde então, as regras fiscais vigentes – teto de gastos, resultado primário e regra de ouro – amarraram o país num círculo vicioso de redução das despesas, queda da renda e piora da arrecadação, demandando mais cortes de orçamento no momento de crise, em que as despesas públicas – especialmente políticas sociais e investimentos – são ainda mais necessárias. A austeridade é ineficaz até do ponto de vista fiscal: a dívida bruta do governo geral cresceu cresceu 11 p.p. de PIB entre maio de 2016 e agosto de 2019.

 

Tudo isso num país cuja economia está cinco pontos abaixo do seu crescimento potencial, com 12,6 milhões de desempregados e 28 milhões de subutilizados. No primeiro trimestre de 2019, o Índice de Gini da renda do trabalho foi o mais alto da série histórica, fruto do desemprego e da precarização do mercado de trabalho.

Mesmo diante deste quadro, as regras fiscais impedem qualquer impulso que estimule o consumo e o investimento. Para alterar tais regras, precisamos mostrar que, ao contrário do que afirma o mantra conservador da tese da gastança, a austeridade nos legou mais desemprego e desigualdade. Se não partirmos, sem tergiversar, de como a política fiscal pode estimular o crescimento econômico com distribuição de renda, a esquerda fica sem rumo. O povo precisa voltar a caber no orçamento.

Publicado em https://jornalggn.com.br

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