A contrarreforma psiquiátrica e a indústria da loucura

Por Laurem Aguiar (*)

O governo de Jair Bolsonaro decidiu, em meio a maior crise sanitária de nossa época, dar continuidade ao projeto de destruição da Reforma Psiquiátrica brasileira. Exatamente durante uma crise cujo impacto na saúde mental da população é ainda imensurável. Mas, afinal, a que(m) serve o fim das portarias que instituem a Rede de Atenção Psicossocial?

Os manicômios, que surgiram no Brasil na esteira da abolição da escravatura e do desenvolvimento do capitalismo, tinham como papel principal controlar a loucura e os errantes que “andavam a solta” pelas cidades e que ameaçavam, em alguma medida, a nova ordem que se estabelecia – e aqui é preciso salientar que essa “ameaça” sempre teve raça, classe e gênero.

Essas instituições orientavam-se pelo modelo que chamamos tradicional. O modelo tradicional caracteriza-se por ser centralizado na figura do médico psiquiatra (uniprofissional), por ter como objeto de intervenção a doença e não o sujeito, por ter como principal (e praticamente único) o tratamento medicamentoso e interventivo e por ter como principal dispositivo a internação psiquiátrica. Esse tipo de tratamento servia, ao cabo, como espaço de penitência e morte daquelas e daqueles que não se “ajustavam” à ordem. Um espaço que era um palco para todos os tipos de violação dos direitos humanos.

E foi no período da ditadura militar que o modelo tradicional e o manicômio atingiram sua expressão mais cruel, chegando a ser comparados à campos de concentração nazistas. Esse período, conhecido como “indústria da loucura” produziu tanto sofrimento para os enfermos quanto lucro para alguns poucos. Seja com o direcionamento do financiamento público para o setor privado (no pagamento de leitos e procedimentos), seja na venda de corpos para instituições de ensino, seja alimentado a indústria farmacêutica etc.

No processo de redemocratização, os trabalhadores de saúde mental decidiram dizer não a essa lógica cruel. E, em conjunto com os usuários e familiares, criaram o Movimento Nacional de Luta Antimanicomial que se espalhou por todo o Brasil, pautando o estabelecimento de um cuidado em liberdade, multidisciplinar e com bases territoriais – ao passo que pressionavam pela criação de dispositivos que garantissem esse processo de desinstitucionalização do cuidado. Era hora de dizer basta à indústria da loucura e construir uma sociedade livre de manicômios.

Na luta pelo restabelecimento da democracia, com a organização de inúmeros movimentos antimanicomiais e com a construção de quatro Conferências Nacionais de Saúde Mental, foi possível implementar um modelo de atenção psicossocial. Ou seja, um modelo que olha para o sujeito em sua complexidade, que valoriza seu território, sua história, suas potencialidades.

Foi com muito debate e com muita luta, no seio da sociedade, que nasceram os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT’s), o Consultório na Rua, as iniciativas de geração de trabalho e renda, etc. – além da articulação com a atenção básica e com a alta complexidade que daria forma ao estabelecimento de um Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).

As frequentes tentativas de desconstruir esta trajetória, inclusive levantando falsas polêmicas e mentindo sobre a efetividade da Rede de Atenção Psicossocial, são elementos que apenas colocam em evidência a persistência daqueles que visam lucrar em cima do sofrimento humano. Os defensores da ditadura, os propagadores do ódio e das mentiras, aqueles que só pensam no seu enriquecimento seguem aí, atuando e conspirando. E, justamente por isso, reforçamos o que sempre dissemos: a luta pelo cuidado em liberdade não pode estar distanciada da luta por democracia e da luta pelo fim do capitalismo. Afinal, “o manicômio é expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade [capitalista]”.

*Terapeuta Ocupacional (UFSM), especialista em Saúde Mental Coletiva (UFRGS), mestra e doutoranda em Serviço Social (PUCRS). Membra do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Trabalho, Saúde e Intersetorialidade – NETSI e do Coletivo de Terapeutas Ocupacional Berenice Rosa Francisco. Militante do Partido dos Trabalhadores.

Para saber mais:

Documentário: Em nome da razão

https://www.youtube.com/watch?v=Pgos7_-PCpo

Livro: Holocausto Brasileiro

https://app.uff.br/slab/uploads/Holocausto_brasileiro_vida,_genocídio_e_60_mil_mortes_no_maior_hospício_do_Brasil.pdf

Dissertação: Por uma sociedade sem manicômios: (im)possibilidades da reforma psiquiátrica no capitalismo brasileiro

http://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/9099

Para se organizar:

https://www.facebook.com/frenteampliadasm

https://www.instagram.com/frentesaudemental/

https://www.facebook.com/Rede-Nacional-Internúcleos-da-Luta-Antimanicomial-Renila-614729478566622

https://www.facebook.com/mnlaemluta

https://ptnacamara.org.br/portal/2020/12/08/reuniao-define-acoes-de-combate-ao-revogaco-de-portarias-que-ameacam-programas-de-saude-mental/

(*) Laurem Aguiar é militante petista em Porto Alegre e doutoranda em Serviço Social (PUCRS)


(**) Textos assinados não refletem, necessariamente, a opinião da tendência Articulação de Esquerda ou do Página 13.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *