Por Douglas Martins (*)
Texto publicado na edição 14 da revista Esquerda Petista
Tenho condição peculiar de santista de nascimento, time e testemunho. Comecei, como todos, sentindo tremendo orgulho de ser de Santos e do Santos. Também fui primário do Azevedo Júnior, a escola pública separada do estádio por uma rua convertida em palco de queimadas e peladas na infância de meu tempo. Estávamos todos, bem ali, no caminho do Pelé.
Logo me toquei da desproporção. Prender a história da divindade na manjedoura não dá. É certo que perplexidades originárias se deram na Vila. Mas Pelé fez do mundo o seu estádio. Dizem que Garrincha não distinguia Joãos, seus marcadores. Pelé sofria síndrome semelhante. Não distinguia trinca, brecha ou fenda. Sempre saía do outro lado. Zagueiros, não raro, davam busca onde ele já não se encontrava mais.
Fui um dos meninos que correram atrás da Mercedes chapa 1000. Para entrar no Urbano Caldeira, o carrão cortava pela lateral do estádio. A Mercedes azul virava a esquina e punha fim à partida. Diminuindo a marcha, incorporava o séquito de moleques e, assim, cruzava o portão principal. Tinha força gravitacional.
Era o único jogador que botava carro lá dentro, verdadeira distinção para o lugar até hoje sem estacionamento. Com o portão principal aberto em dia de treino, era entrar e testemunhar. Ele desembarcava, cumprimentava, furava o cerco e sumia para ressurgir no gramado de chuteira, calção e camisa no ombro. E nós corríamos aos bancos ripados das numeradas para ver tudo lá de cima.
Ia começar.
Diz a tradição que treino é treino e jogo é jogo. Menos para ele. Com ele em campo, treino é jogo, é jogo e jogo. A cada ensaio, vinha em sobrepasso, de costas para o gol adversário, chamando com a mão a bola que iria encontrá-lo ao fim da parábola. Amiga do peito, tocava primeiro ali, para deslizar até os pés, que em Pelé eram muitos. Bola no chão, girava levando pânico a qualquer defesa. Vi Pelé desse ângulo, “global-provinciano”.
O gênio preto, sublimando a brasilidade permanentemente humilhada em sua própria sociedade, inter-pretava o jogo. Pelé pôs o Edson em transe, semiconsciente, falando de crianças famintas na ditadura, dizendo ser impossível deixar a cor no vestiário, e enfrentando o incômodo de triunfar numa sociedade racista, dizendo love, love, love no mundo hate, hate, hate estadunidense.
Edson viveu o tempo da denegação, do racismo cordial, do aparente “não racismo embranquecido” que sufoca, desde sempre, o antirracismo preto insurgente. Viveu tentando bom-mocismo trincado com denegação de paternidade. Edson foi paradoxo e filho do tempo da denegação triunfante. Como Pelé arrebatou Edson?
Exu, o Orixá dos caminhos, sabe e domina as rotas da resistência. Não à toa, vai à encruzilhada ouvir. Dele se diz ter matado um pássaro ontem com a pedra que só atirou hoje. O racismo do tempo de Edson é enfrentado mais intensamente agora, com pedras trazidas até aqui. É hoje que mais se enxerga a tragédia racista na qual se funda e se afunda o Brasil. É hoje que se inter-preta mais e melhor. As aves de rapina, ainda vivas ontem, sucumbem com pedras tornadas possíveis somente hoje.
Pelé abriu caminhos. Surgiu na encruzilhada. Ergueu Edson, exibindo o seu corpo preto sacado do tempo da hipocrisia eurocêntrica predominante, turvado pela tensão de ser preto genial na branquitude estúpida. Se fez rompendo cercos, encantando, em transe, tendo em sua passagem, sabendo ou não, vibrado pedras que afrontaram mentalidades de ontem. Inter-pretando bem, Pelé não morre. Pelé é Exu.
Obrigado, Edson!
Laroye, Exu!
(*) Douglas Martins é jornalista e advogado.