Em entrevista ao Página 13, Iriny Lopes, deputada estadual pelo Espírito Santo, fala da necessidade de mudança no interior dos partidos para o enfrentamento do tema de gênero; da falta que faz a solidariedade, mesmo entre as mulheres, para a participação feminina na política; da função da escola e dos educadores na revolução do pensamento e nossos desafios como governo e sociedade na emancipação das mulheres.
Página 13 – Como você vê a situação atual das mulheres na política?
Iriny Lopes – É vergonhoso que tudo que se refere a mudanças no Brasil, especialmente as relacionadas a gênero, é passível de manipulação. Tivemos uma mudança legislativa eleitoral para ampliar o número de mulheres na política e o que eles fizeram foi encontrar novos caminhos para fazer as listas laranja. Assim, é impossível que a mulher fique numa disputa real. Além da dificuldade financeira, da responsabilidade praticamente isolada das mulheres na criação de seus filhos…
E não é só a política e a legislação, tem o atraso da sociedade. Eu estou na política há muitos anos. É muito difícil você trazer a sua família, o seu pai, a sua mãe, seu irmão para te apoiar, para ficar com seus filhos e você ter como fazer campanha, ajudar no que for possível. Falta solidariedade muito grande entre homens, mulheres, partidos e mulheres com mulheres.
A mudança na direção partidária, obrigando uma igualdade entre homens e mulheres, faz uma enorme diferença na hora da montagem das chapas, mas ainda não conseguimos fazer diferença na distribuição dos benefícios para o enfrentamento da campanha. Em todos os lugares é assim, inclusive no PT, que precisa melhorar muito.
Os quatro anos de desgoverno do inelegível e a ascensão do fascismo ainda trouxeram para as mulheres um problema adicional, que é o a aumento expressivo de violência política. Os políticos de extrema-direita, especialmente, desconhecem o que é comportamento ético e têm direcionado o ódio e a perseguição às poucas mulheres no Legislativo, seja municipal, estadual ou federal.
Mesmo com comprovação em vídeo, porque as sessões são filmadas, de ataques de toda forma às vereadoras, deputadas e mesmo senadoras, esses parlamentares não sofrem qualquer punição de conselhos de ética, por quebra de decoro, por exemplo. Já as mulheres são perseguidas. Um exemplo disso foi a instauração de processos no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, no ano passado, contra seis deputadas de esquerda, porque elas se manifestaram durante a votação do marco temporal, e uma na CPI do MST, por afirmar que o relator Ricardo Salles fraudou mapas e que tinha relação com o garimpo. Todas as parlamentares de esquerda. No caso dos homens da extrema-direita, que praticam transfobia, que cerceiam a palavra das mulheres, entre outros absurdos, quando há processo instaurado são prontamente arquivados.
Acho que, para um debate geral, há um movimento forte em nível nacional pela mudança no número de cadeiras destinadas às mulheres. Já o debate sobre o número de mulheres nas chapas está exaurido, não só porque se esgotou mesmo — por causa do mau uso e das manipulações —, mas porque as direções dos partidos continuam sendo majoritariamente masculinas. Quando se vai compor um governo, vai-se perguntar aos partidos quem são os nomes que eles estão oferecendo. Não há partidos que ofereçam nomes de mulheres, exceto PT; PDT, em alguns casos; PSOL e PCdoB. A origem desse problema, de um debate mais amplo, franco, mais ostensivo nessa questão das mulheres, está nos partidos. A mudança nos partidos é indispensável.
Temos visto nos últimos anos um aumento da violência contra as mulheres, de estupros e feminicídios. O que falta para enfrentar esse crescimento de violações e mortes? Faltam leis, monitoramento da aplicação de legislações?
Nós não vimos por parte de governos, de instituições, da academia, campanhas com musculatura, com sustentação para mudar o pensamento das pessoas, a opinião, a postura, a cultura do machismo. O silêncio e a omissão são os maiores adversários da violência física e psicológica praticada contra as mulheres.
O desmonte das políticas para as mulheres no governo do inelegível foi quase total, e reconstituir as redes de enfrentamento à violência, orçamento e todos os programas que tratam da prevenção e do combate propriamente dito demanda tempo e muito esforço do governo.
Para além das políticas públicas, penso que nós precisávamos ter mais solidariedade. Não adianta a luta ser feita apenas por nós mulheres e alguns homens. Precisava ter dentro das escolas uma vontade de revolucionar o pensamento, enfrentar diretor, enfrentar secretaria, governador. Tudo se faz com enfrentamento, para ter uma postura diferenciada diante das crianças. Nós queremos mudar as gerações que estão aí, mas é difícil. É mais prudente e eficaz você fazer uma nova construção, ter no ensino a discussão de gênero.
Eu sinto o setor da educação, inclusive professores de esquerda, extremamente distanciados desse tema. Eles se preocupam com o modelo de educação, com as condições de trabalho e tudo isso é justo, mas a escola talvez seja o maior instrumento de mudança de pensamento em relação às diversidades, e a diversidade de gênero em primeiro lugar. E quando falo de gênero, quero falar também e especialmente das crianças trans, que sofrem terrivelmente, absurdamente dentro dessas escolas. O número de suicídios entre a juventude trans é grande demais, seja porque nem sempre a família está junto, ou, quando está, está despreparada para ajudar e lidar com toda essa pressão externa.
Sinto que há uma mudança nas juventudes. É impressionante ainda a quantidade, a intensidade da presença do machismo entre a juventude, mas há uma resposta por parte das mulheres, as jovens que já aprenderam a não se calar. E isso faz diferença. Porém, é um tanto inexplicável que num segmento em tese libertário, como é a juventude, a existência tão forte do machismo, que exclui dos cargos de comando das entidades da juventude, com a presença de relacionamentos abusivos em níveis altíssimos. Volto a reafirmar: a educação cumpre um papel fundamental na mudança de mentalidade de crianças, adolescentes e jovens.
No ano passado, o presidente Lula sancionou a lei da igualdade salarial entre homens e mulheres. Você percebe algum avanço nessa área? Acredita que a legislação possa efetivamente alterar o quadro de desigualdade de gênero?
No mundo do trabalho nós conseguimos avançar um pouco mais com as legislações vigentes. Dado o fato de as mulheres terem mais tempo de estudo que os homens, essa desigualdade vai diminuindo. A lei da igualdade salarial entre homens e mulheres, que o Lula sancionou no ano passado é uma legislação extremamente importante. Mas no mundo do trabalho a gente já tinha detectado uma certa mudança positiva, até porque o movimento sindical é mais organizado. Foi muito difícil o começo, demorou, mas depois que as companheiras, dentro dos movimentos sindicais, botaram a cara e pisaram no acelerador, a coisa começou a mudar. Isso se reflete no ambiente das empresas e, especialmente, no serviço público, onde a gente vê uma presença mais forte de mulheres em cargos — e ainda assim é muito baixo —, mas em funções de poder de decisão dentro da política, de uma forma geral.
Dados do Fórum Nacional de Segurança Pública e do Ipea falam de um aumento muito expressivo de estupros, de uma mulher violentada a cada oito minutos, sendo que 74,5% das vítimas são consideradas vulneráveis por serem menores de 14 anos ou possuírem enfermidade, deficiência mental ou outra causa que impeça o consentimento e pelo menos metade delas são negras. Como você avalia esse aumento de crimes sexuais?
A cultura do ódio e da misoginia que presenciamos nos últimos anos é certamente um aspecto considerável para esse aumento. Estamos quase no tempo das cavernas. A campanha Não é Não, que gerou a aprovação, em 2023, do protocolo para proteger mulheres de assédio em shows, bares e boates, é um grande avanço. Mas eu pergunto: em pleno século 21, precisaria mesmo de campanha, legislação para que um homem respeitasse o corpo das mulheres, que quando ela dissesse não o cara teria que entender e respeitar? O corpo é meu, o sentimento é meu. Qualquer coisa que aconteça comigo, especialmente o estupro, é algo assim, nas minhas considerações, a maior de todas as violências físicas e psicológicas que uma mulher pode sofrer. O seu corpo é a sua casa. Um estupro é sua casa arrombada, estraçalhada, difícil consertar. A marca vai ficar para sempre. E essa marca sai do indivíduo e vai para o coletivo. Então, isso é extremamente ácido, doentio. Nós, mulheres de esquerda, as que não sejam de esquerda, mas civilizadas, temos de pautar esse debate. É muito grave que crianças, meninas estejam sendo violentadas e a sociedade não reaja, que não coloque isso como um tema urgente. A maioria desses estupros [68%] estão acontecendo dentro das casas. Da mesma forma que enfrentamos a violência doméstica, fazendo com que a sociedade entendesse que em briga de marido e mulher nós vamos, sim, meter a colher e chamar a polícia, temos que fazer todo esse processo em relação aos estupros, especialmente os que acontecem dentro das casas. Crianças e adolescentes têm suas vidas destruídas por parentes próximos e conhecidos da família. Isso tem de acabar!
O aborto ainda continua sendo um tema tabu no Brasil. A que você atribui essa morosidade em adotar uma legislação que considere a decisão das mulheres sobre seus corpos?
Sobre a questão do aborto, uma premissa é de que nenhuma mulher gostaria de fazer. É um sofrimento muito grande tanto para decidir quanto para realizar. Porém, com todas as dificuldades, esse assunto precisa ser pautado. E ele não pode ser pautado exclusivamente pela ótica da moralidade e dos critérios das igrejas. Assim como o Lula teve coragem, lá atrás, de montar uma mesa para debater o tema – a situação hoje é bem mais difícil – o tema do aborto não pode sumir. É um tema difícil que, para virar lei, como foi em Portugal, na Argentina, é um processo de debate intenso, de construção que não é simples.