Por Alana Gonçalves (*)
O Abrigo Julinho foi aberto oficialmente no dia 06 de maio, em Porto Alegre. De pronto, seria um abrigo temporário como qualquer outro que estava sendo criado para abrigar a população de Porto Alegre cujas casas teriam sido afetadas pela enchente. O desfecho deste abrigo, no entanto, tomou um rumo bem diferente do esperado por aquelas pessoas responsáveis por sua concepção.
Como o colégio Julinho fica localizado numa área central da cidade, logo a informação de que a escola estava funcionando como abrigo chegou aos ouvidos de uma parcela da população que não era esperada: a população em situação de rua. Ora, se tratando de um abrigo temporário para acolher pessoas que perderam suas casas com as enchentes, por que acolher pessoas que vivem nas ruas? O que teria o Estado a ver com isso? Por que essas pessoas precisam ser abrigadas, tendo em vista que não têm casas?
Entre tantas histórias compartilhadas ao longo dos 25 dias de trabalho voluntário, reproduzo uma:
“A gente tava na João Alfredo, quando vi começou a levantar aqueles tampão de ferro dos bueiros. Era tanta água que em menos de 2h a rua tava toda alagada. Não sei quantas horas eu fiquei agarrado num contêiner [de lixo] esperando o resgate chegar. Eu não conseguia sair dali, tava travado.”
A Rua João Alfredo, antiga Rua da Margem, uma das principais do Bairro Cidade Baixa, é marcada como point da juventude de Porto Alegre, ainda que enfrente uma crise marcada pela repressão policial que, inclusive, parece ter tudo a ver com o tema tratado aqui. Se tratando de um bairro boêmio, também convive entre a juventude que busca cultura e lazer e muita gente que não tem casa para morar, mas que procura alguma solidariedade entre os jovens para fazer a refeição da noite – e que, não raramente, é a única do dia.
O rapaz que compartilhou a história relatada aqui é uma dessas milhares de pessoas que vivem em situação de rua em Porto Alegre. Ele foi só um das mais de 300 pessoas que passaram pelo Abrigo Julinho procurando um acolhimento que há muitos anos vem sendo negligenciado pela prefeitura da capital e pelo poder público de modo geral. Os números, ainda que incertos (explicarei adiante o porquê), apontam que em torno de cinco mil pessoas vivem em situação de rua na capital, e que a soma dos abrigos municipais, albergues, auxílio-moradia e aluguel social contabiliza um total de 1.500 vagas.
Com as ruas alagadas na região central de Porto Alegre, toda a população que vive naquelas ruas também precisou sair dali. Além disso, quem vive nas ruas depende também de algum grau de “normalidade” da dinâmica do dia a dia para se alimentar, socializar, coletar doações de roupas e, inclusive, receber acolhimento em algum serviço público de assistência social ou de saúde. No caso de um desastre da proporção que ocorreu na capital, toda a cidade voltou-se para atender às demandas daquelas pessoas que tiveram as suas casas atingidas.
Os abrigos temporários que foram abertos, em geral, não aceitavam pessoas em situação de rua com a justificativa de precisar manter “a ordem” no espaço coletivo. Os abrigos que aceitaram, num primeiro momento, optaram por segregar as pessoas em situação de rua do restante das pessoas desabrigadas. O Abrigo Julinho, no entanto, manteve as portas abertas para todas as pessoas que precisassem de acolhimento naquele momento, independente de ter ou não moradia. Importante destacar que a maior parte da população de rua de Porto Alegre é composta por homens e a metade é negra, o que se reproduziu no Abrigo Julinho onde aproximadamente 90% dos abrigados eram homens.
Muitas pessoas que passaram pelo Julinho eram beneficiárias de algum programa de moradia ou usuárias de serviço do município, fosse aluguel social, usuário de Centro POP ou albergue. Como muitos dos serviços do município também foram atingidos pela enchente, essas pessoas ficaram desabrigadas mais uma vez. Sendo o Julinho um colégio estadual, após 25 dias o abrigo temporário precisava ser fechado para que as aulas fossem retomadas. Esse processo, no entanto, gerou muita angústia entre as pessoas que estavam abrigadas no Julinho, porque não sabiam para onde iriam. À essa altura, a prefeitura, através da FASC, já havia encaminhado a mudança dos abrigados do Julinho para o albergue Dias da Cruz, já conhecido de muitas pessoas em situação de rua que estavam acolhidas no colégio. Quando souberam que o destino seria esse albergue, muitos preferiram voltar a viver nas ruas.
Foi a partir desse contato direto com tantas histórias diferentes que levaram essas pessoas a irem viver nas ruas da capital que surgiram algumas questões: por que essas pessoas preferem viver nas ruas a serem acolhidas nos albergues? Por que existem menos vagas de acolhimento do que a demanda? Por que não existe um número exato de quantas pessoas vivem em situação de rua em Porto Alegre? Algumas respostas foram encontradas rapidamente através de uma pesquisa no Google.
Nos últimos 10 anos, a Secretaria de Desenvolvimento Social de Porto Alegre recebeu um orçamento muito aquém do necessário para cobrir as demandas da cidade. Em grande medida, é justamente essa falta de orçamento que dificulta aos órgãos responsáveis, como a FASC, de fazer o levantamento de dados necessários para prever a demanda real de orçamento para as políticas sociais. O percentual só aumenta, é óbvio, em anos de eleição, seja municipal ou federal. Também a falta de orçamento indica a qualidade do serviço prestado, muitas vezes transferindo para instituições religiosas a responsabilidade por garantir uma cama quente para dormir – mas que, nesses lugares, quase sempre demandam do abrigado uma contrapartida no sentido da conversão religiosa. Ou seja, para muitos que precisam lidar com a realidade em que vivem fazendo uso de álcool e outras drogas, tendo em vista o desmonte dos serviços de atenção à saúde mental da cidade, é melhor ficar na rua.
Por outro lado, vemos cada vez mais expandir o poder da especulação imobiliária em Porto Alegre. O monopólio das construtoras sobre as decisões do plano diretor da cidade depende, ao que parece, justamente da necessidade de que se faça a manutenção da produção desta população indesejável. Ora, se o bairro boêmio da cidade fica abandonado durante a pandemia, muitas pessoas sem moradia passam a viver nas ruas e, com isso, a criminalidade também aumenta na região. Que justificativa melhor teria para que a polícia possa agir contra a juventude e a população que vive nas ruas da Cidade Baixa? Não seria melhor conceder o bairro, a um custo irrisório tendo em vista as características já citadas, para que alguma das grandes construtoras da cidade levante um grande condomínio e revitalize áreas públicas?
O lumpemproletariado, as trapeiras e os trapeiros, catadoras e catadores, pessoas cuja saúde mental e física foi dilacerada há muito tempo e sequer podem fazer parte do exército de reserva, vivem nas ruas de Porto Alegre porque são um elemento necessário para a estrutura econômica que os mantém com a aparência oportuna: os indesejáveis.
“Tu segue viajando no viaduto. Tu sempre viaja nele quando passa por ali. É um bom viaduto, tu pensa. Não porque cumpre o seu papel há várias década, não porque resiste firme e forte ao aumento do tráfego, não porque é ousadamente curvo. É um bom viaduto porque tu avalia como um bom lar caso a tua vida venha a degringolar. Tu pensa nas vantagem daquele viaduto: por exemplo, a maior parte das pessoa que tu conhece não vem pro centro por ali, e sim pela João Pessoa, e isso é importante porque, se tu virar morador de rua, tu não vai querer ser visto pelas pessoa que gosta de ti, que te ama; tu prefere perder contato com elas e deixar elas pensando que tu tá bem, em algum lugar digno.” (José Falero, em “Mas em que mundo tu vive?”)
(*) Alana Gonçalves, estudante de Serviço Social na UFRGS e militante da AE-POA