A questão militar em debate na direção nacional do PT – Entrevista com Valter Pomar

O Diretório Nacional (DN) do Partido dos Trabalhadores (PT) esteve reunido nesta segunda-feira (14). Na pauta, entre outros pontos, a discussão da questão militar. Tema urgente e fundamental no enfrentamento ao governo Bolsonaro, ao golpismo e para as forças políticas que desejam construir mudanças democráticas e populares em nosso país.

O próprio Plano Nacional de Reconstrução e de Transformação do Brasil, lançado pelo PT em setembro do ano passado, reconhecia que teria “de incorporar propostas mais elaboradas para temas novos ou que foram recolocados para o país, como por exemplo o papel constitucional das Forças Armadas no estado democrático”.

O companheiro Valter Pomar, membro do DN, apresentou à reunião uma proposta de resolução sobre o tema. Conversamos com Valter sobre os pontos de vistas existentes na direção do PT e sobre a importância do Partido em construir uma formulação sobre o tema. Confira!

Página 13 – Valter, o DN de segunda-feira 14 de junho debateu o tema Forças Armadas. Qual foi a conclusão?

Valter – Antes de responder, é preciso contextualizar. Quando aconteceram os debates sobre o programa de reconstrução e transformação, o tema Forças Armadas não foi devidamente abordado e ficou combinado que uma comissão se reuniria para formular a respeito. Vários meses se passaram e até agora não tivemos notícia de que esta comissão tenha produzido algo ou mesmo que tenha se reunido. Entretanto, nesses mesmos meses ficou mais do que evidente que o tema militar é inescapável. Para quem tinha dúvidas (ou ilusões) acerca da relação entre a cúpula das forças armadas e o governo, a troca de ministros e a não punição de Pazuello falam por si. Portanto, é crucial que a direção do Partido debata o tema, tome uma posição mais definida e formule a respeito. Neste sentido é muito positivo que o DN tenha pautado a discussão, que foi aberta por três exposições sobre o tema, feitas pelo Celso Amorim, pelo José Genoíno e pela Dilma Rousseff, nesta ordem.

Página 13 – Celso Amorim foi ministro da Defesa no governo Dilma.  Que visão ele geral ele apresentou sobre o tema?

Valter– Ele é um grande quadro político, alguém por quem tenho o maior respeito político e simpatia pessoal, mas sobre o tema forças armadas Amorim tem excesso de ilusões e falta de realismo.

Página 13 – Você pode explicar melhor isso?

Valter -Sim, posso. Por exemplo, ele faz uma distinção entre as forças armadas e a corporação militar que, na minha opinião, perde de vista a singularidade dessa instituição no Brasil, assim como em outros países: o de serem uma casta com interesses próprios que – como um grupo mafioso ou uma milícia – cobra da classe dominante e de toda a sociedade um tributo, que é pago com uma série de privilégios: hospitais privativos, aposentadorias especiais etc. Outro exemplo: Celso não considera que a ideologia tipo “guerra fria” tenha grande presença nas atuais forças armadas. Para ele, o apoio dos militares ao golpe estaria ligado ao ressentimento por conta da Comissão da Verdade. Visão que na minha opinião omite a coincidência de visão estratégica – sem falar de vínculos de outro tipo – entre as forças armadas brasileiras e os EUA.

Página 13 – De que forma ele buscou sustentar esse ponto de vista?

Valter – Segundo Amorim, ele não percebia, em nossos governos, nenhuma resistência dos militares no fortalecimento da política de integração da América do Sul ou na diversificação de relações comerciais e diplomáticas, como, por exemplo, para aquisição de equipamentos militares. Também cita os grandes projetos desenvolvidos no setor e até mesmo a colaboração de militares na Comissão de Verdade.

Página 13 – Mas se fosse mesmo assim, por que então eles apoiaram o golpe?

Valter – Para Amorim, seria um misto de ressentimento e oportunismo. Um ressentimento devido ao fato deles terem sido afastados das grandes decisões, embora eles tivessem continuado a ter posições importantes em nossos governos. Então, apoiando um golpe poderiam voltar a ter posições centrais no governo. Como já disse, acho esta explicação parcial. Nela some tanto o imperialismo quanto o caráter de classe do Estado e o papel histórico das forças armadas; fica tudo parecendo um oportunismo de ocasião.

Página 13 – Mas como Amorim explica a relação íntima dos militares com o governo Bolsonaro?

Valter – O que ele diz ver é uma tentativa muito clara do Bolsonaro de colocar as Forças Armadas a seu reboque. E ressalta que há na cúpula militar aqueles que não aceitam. Mencionou por exemplo a atitude do general Santos Cruz, que fez parte do governo, mas quando, segundo Amorim, encontrou uma dificuldade ética ou política acabou se afastando. Essa referência ao Santos Cruz é interessante: do mesmo jeito que hoje há gente que se ilude com este senhor, também havia no passado recente quem se iludisse com o Villas Boas.

Página 13 – As abordagens de Dilma e Genoino também caminharam nesse sentido?

Valter – Não, de jeito algum. Dilma, por exemplo, deixou claro que esta narrativa – para usar a palavra da moda – que apresenta as Forças Armadas como apartadas do Bolsonaro é uma visão funcional aos militares, para a sua permanência e para o controle deles por sobre o aparelho de Estado. Ela foi taxativa ao dizer que quem controla o aparelho de Estado hoje é o chamado Partido Militar, que ocupa os postos estratégicos do governo, nas estatais e detém milhares de cargos na administração pública federal. Dilma lembrou ainda que em novembro de 2014, ou seja, após a sua eleição, houve autorização para que Bolsonaro fizesse um discurso dentro da Academia Militar de Agulhas Negras, o que só foi possível porque houve autorização da linha de comando. Quanto ao Genoino, diz ser um erro falar que as Forças Armadas estariam subjugadas ou contaminadas por Bolsonaro, ou tampouco de que elas estivessem sendo um eventual objeto de manipulação por parte do bolsonarismo. Segundo ele, há um projeto político, ideológico, geopolítico, que une o governo Bolsonaro e as Forças Armadas.

Página 13 – E essa visão de que as Forças Armadas não são tão “ideologizadas” assim?

Valter – Amorim, como disse antes, relatou que conviveu muito com eles, que frequentou muitas escolas de formação do Estado Maior, sobretudo a própria Escola Superior de Guerra, e não sentia com tanta força um processo de ideologização. Já Dilma e Genoino ressaltaram que as Forças Armadas estão impregnadas por uma visão autoritária e conservadora, pelo combate ao chamado “marxismo cultural”, que atualiza o anticomunismo para combater movimentos sociais, os setores populares e a esquerda em geral.  E que continua presente a doutrina do combate ao “inimigo interno”.

Página 13 – Você citou anteriormente a Comissão da Verdade. Que mais você pode nos dizer acerca desse debate?

Valter – O tema apareceu nas três exposições. A abordagem de Celso Amorim foi curiosa: de um lado ele afirmou que o “ressentimento” com a Comissão da Verdade foi um dos fatores centrais no apoio ao golpe, mas por outro lado disse que os militares colaboraram com a Comissão e não opuseram maiores obstáculos a ela. Mencionou que o general Joaquim Silva e Luna, que era chefe do Estado Maior do Exército – agora presidente da Petrobrás – foi extremamente útil para as conclusões da Comissão, que houve elogios de outros comandantes militares no Senado. Já a Dilma lembrou que a Comissão da Verdade foi tardia e que a única coisa que se fez ali foi esclarecer as circunstâncias e identificar os responsáveis – entre os agentes do Estado – por mortes, torturas e desaparecimentos de corpos. Ela destacou que a Comissão não tinha a autoridade para julgar e punir os militares acusados de tortura e outros crimes durante a ditadura militar, e eles sabiam disso. Já Genoino sublinhou que houve uma oposição sistemática e radical dos militares contra a Comissão da Verdade, porque – devido aos princípios da autonomia e da tutela militar – as forças armadas não aceitam que elas sejam apreciadas e investigadas por um “poder” que não seja o deles. É abominável que as forças armadas se sintam “ressentidas” porque uma Comissão buscou investigar e identificar os crimes cometidos por agentes do Estado em uma ditadura.  Se houvesse realmente um compromisso democrático por parte dos militares, se houvesse um compromisso real com o povo brasileiro, estariam entre os primeiros a buscar a apuração dos crimes.

Página 13 – Mas segundo você, o apoio dos militares ao golpe e ao governo Bolsonaro envolve outros fatores….

Valter – Sim, diferentemente do que pensa o companheiro Celso Amorim, na minha opinião envolve questões estratégicas. As Forças Armadas foram, na história brasileira, um braço armado das classes dominantes. E desde o final da Segunda Guerra, se converteram num dos veículos da influência imperialista estadounidense. O fato de os militares serem a espinha dorsal de um governo que se subordina ao que de pior existe nos EUA, um governo que aplica um programa ultraliberal, que destrói não somente os direitos sociais, mas também as bases para um efetivo desenvolvimento confirmam o caráter de classe, conservador e reacionário da instituição. Ademais, as forças armadas são diretamente responsáveis pelo genocídio. Como destacou o companheiro Genoino em sua exposição, a gestão de Pazuello no ministério da Saúde teve o apoio da alta cúpula do Exército; aliás, como general da ativa ele só assumiu o cargo porque teve o devido apoio para tal. O Brasil necessita de Forças Armadas à serviço da defesa nacional, totalmente subordinadas ao poder civil e integralmente respeitosas da democracia e dos direitos humanos. Mas isso exige que nós de esquerda nos dispamos de certas crenças e ilusões que ainda alimentamos sobre as Forças Armadas realmente existentes.

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