Por Adhemar S. Mineiro (*)
Texto publicado originalmente no site Terapia Política
Em sua velha fábula “O Lobo e o Cordeiro”, La Fontaine, depois de contar a historinha, aponta, sem que fosse necessário, a moral da história: “A razão do mais forte é sempre a melhor”. Todos devem conhecer a história do lobo que, encontrando o cordeiro à beira de um riacho, inventa todo e qualquer argumento, sem que tenham qualquer fundamentação, para justificar comer o cordeiro. Qualquer analogia com as discussões recentes entre o Copom (Comitê de Política Monetária do Banco Central) e seu presidente, e os críticos de diversos matizes, não é mera coincidência. A pergunta é: como o Banco Central acumulou essa força?
Vamos tentar esboçar algumas ideias sobre esse tema. De fato, desde sua criação em dezembro de 1964, o Banco Central do Brasil, embora tivesse funções específicas, funcionava como um apêndice do Ministério da Fazenda, ajudando na gestão das políticas monetária e cambial. Ganhou, entretanto, protagonismo com o fracasso da primeira fase do chamado Plano Real.
O Plano Real, plano de estabilização de preços deslanchado pelo governo Itamar Franco em 1994, plataforma para a eleição de Fernando Henrique Cardoso naquele mesmo ano, e carro-chefe da propaganda do seu primeiro mandato, naufragou, em sua primeira fase, ao final de 1998, momento da reeleição de Fernando Henrique. Como os que acompanham a política econômica devem se lembrar, a primeira fase do Plano Real era baseada na chamada “âncora cambial”, fixando na medida do possível a relação entre a nova moeda criada, o real, e o dólar estadunidense.
Ao final de 1998, confrontado com uma forte especulação contra o real e a fuga de capitais do país, resultante dos mecanismos de liberalização financeira adotados, o real não pôde mais se sustentar (manter o seu valor em relação ao dólar). Nos primeiros meses do novo governo de Fernando Henrique, houve uma sucessiva troca de presidentes do Banco Central, enquanto a desvalorização do real se consumava (muitos falam inclusive de um certo “estelionato eleitoral”, na medida em que o candidato à reeleição tinha anunciado a manutenção da política cambial) até que, em meio a negociações e renegociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e as sucessivas trocas no Banco Central, se chega a um acordo para o estabelecimento de uma nova política, que configuraria a segunda fase do Plano Real: o chamado “tripé macroeconômico”, com o estabelecimento do câmbio flutuante (substituindo a âncora cambial anterior), uma politica de superávits fiscais e a introdução das chamadas “metas de inflação”.
Essa nova política, apesar da introdução de novidades, tampouco se sustentou, pois a continuidade dos mecanismos de liberalização financeira seguiu permitindo crises cambiais e especulação. Isto ocorreu porque a anterior indexação da economia brasileira aos índices de inflação, parcialmente rompida com a introdução do Plano Real, é substituída por uma indexação de fato dos preços principais ao dólar estadunidense, fazendo com que fortes variações do dólar resultassem em inflação interna. Assim, aconteceu, no final do segundo governo de Fernando Henrique (que conseguiu ir duas vezes à lona), com um novo ataque especulativo, fuga de capitais e uma nova negociação com o FMI para conseguir passar o governo sem rupturas. Entretanto, a fortíssima desvalorização do real no segundo semestre de 2002 projetava uma inflação anual de cerca de 30%, caso os índices do último trimestre fossem anualizados.
Esse é o bastão da chamada “estabilização” que o governo anterior passa ao primeiro governo Lula. Fica claro aí que o plano de estabilização com tripé macroeconômico só poderia dar certo em duas condições: restabelecimento de controles sobre os fluxos financeiros do país com o mundo, ou um nível elevado de reservas que permitisse que, em caso de fuga de capitais, o Banco Central pudesse intervir pesadamente para evitar a desvalorização e a retomada da inflação em uma economia dolarizada. A opção do governo Lula é fazer um nível portentoso de reservas (que, organizado naquele período a partir de expressivos saldos na balança comercial, é mantido até hoje), mantendo o tripé macroeconômico.
Com o estabelecimento da política de metas de inflação, que significava uma correlação direta entre a subida das taxas de inflação e da taxa de juros, o poder do Banco Central cresceu substancialmente. Com o primeiro governo Lula veio também a chamada “autonomia de fato” do Banco Central, onde apesar de negociações internas (o que ficou claro, por exemplo, na crise financeira mundial de 2007-2008, quando a rápida resposta brasileira à crise contou com políticas combinadas dos ministérios da Fazenda e do Planejamento, do Banco Central e das instituições financeiras públicas, como BNDES, Banco do Brasil, Caixa Econômica e outras), o Banco Central operava com bastante autonomia, durante a gestão de Henrique Meirelles, que cobriu os dois governos de Lula, entre 2003 e 2010.
Com a criação da Lei de Autonomia do Banco Central, sancionada em fevereiro de 2021, estabelecendo mandato para seu presidente, o poder do Banco Central, que já não era pequeno a partir da política de metas de inflação, fica ainda maior, chegando à situação atual. O Banco Central enceta a capacidade de gestão de duas das três políticas econômicas mais clássicas, a cambial e a monetária. Além disso, pelo peso da dívida pública no Brasil, a manipulação das taxas de juros é elemento importante a determinar um dos maiores gastos públicos no orçamento nacional: os pagamentos referentes à dívida pública. Assim, além de autonomia para gerir as políticas monetária e cambial, o Banco Central impacta fortemente a política fiscal, que tem sua gestão pelo Ministério da Fazenda ainda limitada por leis como a de Responsabilidade Fiscal, ou o chamado “Teto de Gastos”, ou o vindouro “Arcabouço Fiscal”. O poder do Banco Central é gigantesco na formulação da política econômica, e o da Fazenda, limitado.
Essa situação é a expressão institucional do poder do mercado financeiro no país, que foi sendo desenhada ao longo do tempo, durante vários governos. E, no período recente, a intransigência do atual presidente do Banco Central em relação a baixar as taxas de juros (daí a analogia com “O Lobo e o Cordeiro”, já que nenhum argumento sensato consegue superar o “poder de fato” do Banco Central) vem deixando claro isso, fazendo com que se abram as condições políticas para a rediscussão do que foi criado até aqui. Por isso mesmo, alguns representantes dos interesses financeiros têm alertado para a necessidade de baixar os juros nesse momento, como forma de retirar a discussão de mudanças mais profundas na institucionalidade atual da agenda. A ver como vai se comportar nos seus próximos movimentos o Banco Central. Até agora, o presidente da instituição parece confortável com o papel de “lobo”, infelizmente, mantendo levantado um freio de mão para as atuais perspectivas de crescimento da economia brasileira.
(*) Adhemar S. Mineiro é economista, doutorando do PPGCTIA/UFRRJ, membro da Coordenação da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia-RJ e assessor da Rede Brasileira pela Integração dos Povos.