Ainda a questão do socialismo

Por Wladimir Pomar (*)

Como vimos em outros comentários, a China se torna, cada vez mais, um ponto de referência mundial, embora muitas vezes seus aspectos positivos sejam contraditados por supostos aspectos negativos, até mesmo na luta contra o Covid19. Intelectuais que se denominam “marxistas”, a acusam de ser uma sociedade fechada, sob uma ditadura, fornecendo informações maquiadas, tendo causado a morte do oftalmologista de Wuhan que alertou a existência de um problema virótico novo, e por aí afora…

Em geral, o fato da China ser uma das nações mais eficientes no enfrentamento do surto epidêmico mundial é desdenhado e pouco divulgado. Gente que reclama publicamente dela “não fornecer informações” simplesmente deixa de divulgar que lá o índice de mortalidade do Covid19 é baixíssimo (2 por 1 milhão), e que ela é a nação que mais rapidamente recolocou sua economia em funcionamento. Neste caso, inclusive, na produção de insumos indispensáveis para que os Estados Unidos e vários outros países do mundo se contraponham à pandemia.

Por outro lado, esses costumeiros ataques à China também intensificaram o interesse por sua realidade e sua história. Afinal, não são poucas as pessoas que ignoram o fato desse país haver realizado, em 40 anos, um desenvolvimento industrial, técnico e científico que a Grã-Bretanha e os Estados Unidos levaram cerca de 200 anos para alcançar. Ou que, num passado mais longínquo, os chineses inventaram a bússola, o leme, e a vela triangular (esta, permitindo navegar contra o vento). E que realizaram, desde o século XIV, uma forte atividade comercial com as regiões ocidentais da África e do Oriente Médio, através de rotas marítimas e terrestres, também contribuindo para a acumulação primitiva do capital na própria Europa.

É verdade que, logo depois, a China teve naufragado seu comércio internacional, ao ter incendiada sua frota naval, tornando inoperantes suas rotas marítimas e bloqueadas suas rotas terrestres. Tudo por imposição dos senhores de guerra feudais, manchus e hans, incomodados com a emergência de uma classe comercial burguesa. Paralelamente, a China sofreu guerras de domínio impostas pelas emergentes nações capitalistas colonizadoras, que a subordinaram e a impediram de ingressar no desenvolvimento capitalista como nação independente.

Somente em 1949, com a vitória da revolução democrática e popular, a China livrou-se da dominação imperialista, realizou a reforma agrária, e tentou ingressar no desenvolvimento industrial através de uma aliança dos operários, camponeses e intelectuais, com os burgueses nacionais. Caminho que fracassou em virtude das ações especulativas da própria burguesia nacional chinesa, levando o país a ingressar num caminho de estatização e planejamento centralizado, idêntico ao da União Soviética.

Tal caminho, porém, tinha o defeito de dar pouca atenção à produção de bens de consumo corrente e de não estimular a competição entre as empresas estatais, de modo a evitar a burocratização, elevar a produtividade, ampliar a produção, e reduzir os preços. Se tal caminho já enfrentava graves problemas na União Soviética, na China tornou-se ainda mais complexo e grave ao se confrontar com o tamanho da população e com as condições econômicas e sociais ainda mais atrasadas do país. Ou seja, a produção insuficiente de bens de consumo corrente tendia a intensificar as contradições internas na China com muito mais rapidez do que na URSS.

No entanto, na suposição de que tal problema poderia ser resolvido pela luta ideológica e política de massa, o PC chinês ainda fez um esforço para resolvê-lo através da Grande Revolução Cultural. Mas fracassou, foi obrigado a voltar atrás, e a descobrir que Marx tinha razão ao afirmar que o socialismo de transição da sociedade capitalista para a sociedade comunista só seria possível quando o próprio capitalismo tivesse esgotado suas possibilidades históricas. Isto é, houvesse elevado sua produtividade a tal ponto que não mais precisaria de trabalhadores assalariados para o processo produtivo. O que criaria a contradição insustentável e humanitária entre a alta capacidade produtiva e a presença de uma imensa massa de trabalhadores incapazes de consumir a produção de quem não lhes permitia trabalho nem salário.

O PC da China deu-se conta dessa contradição, e do fato histórico de que muitas sociedades humanas haviam enfrentado, em sua transição para sociedades de tipo superior, processos intermediários complexos. Nestes, as características da nova e da antiga sociedade conviveram, às vezes, por tempos relativamente longos, em cooperação e em conflito, até o novo tipo de sociedade se impor através do desenvolvimento de suas características básicas. As histórias da transição do escravismo para o feudalismo, no Império Romano em decadência, assim como da sociedade feudal, da Inglaterra e da França, para a sociedade capitalista, são cheias de exemplos da convivência complexa de diferentes forças produtivas e relações de produção.

Pode-se dizer que foi um fenômeno histórico idêntico que fez a China, desde o final dos anos 1970, ingressar no atualmente chamado socialismo de mercado, combinando e confrontando propriedade estatal e propriedade privada, orientação estatal e disputa de mercado, trabalho assalariado e trabalho cooperativo. Para facilitar e, também, para complicar, a China decidiu aproveitar as reformas e a reestruturação do capitalismo desenvolvido, caracterizadas por investimentos industriais em países com mão-de-obra mais barata. Assim, após realizar nova reforma na agricultura, privilegiando as unidades familiares, a China intensificou a recepção de investimentos industriais externos, desde que a associação com empresas chinesas incluísse a transferência de novas e/ou altas tecnologias.

Ao mesmo tempo, a China modificou seu antigo sistema de trabalho 3 por 1 (três trabalhadores em cada posto de trabalho, como forma de reduzir o desemprego, o que impunha uma baixa produtividade), e incentivou e financiou trabalhadores e técnicos dispostos a levarem adiante projetos industriais privados, financiados por bancos estatais. Com isso constituiu uma nova burguesia nacional para intensificar a disputa, no mercado, com as empresas estrangeiras e com as estatais.

Ou seja, da mesma forma que a transição do Império Romano para o feudalismo incluiu a convivência, por certo tempo, de relações de produção escravistas e feudais, seja em cooperação, seja em conflito, o socialismo de mercado, combinando orientação estatal e disputa de mercado, tende a ser uma das soluções para o problema da transição de países e povos economicamente atrasados. Isto é, nos quais o capitalismo não chegou a se desenvolver plenamente, mas que pretendem construir uma sociedade mais avançada e igualitária.

Foi esse socialismo de mercado, iniciado pelas reformas de 1978, que transformou a China rural e agrícola numa China predominantemente urbana e industrial, orientada pelos conhecimentos científicos e tecnológicos. As 31 províncias chinesas estão colocadas entre as 32 economias mundiais de maior crescimento. Os dois maiores bancos chineses, ambos estatais, estão entre os 10 maiores mundiais. E, entre as 500 maiores empresas globais, estão colocadas 61 chinesas. A China também já possui 6 dos 10 maiores portos mundiais, assim como a segunda maior rede ferroviária do mundo.

Do ponto de vista social, é reconhecido que a China retirou da pobreza mais de 800 milhões de seus habitantes (quase 4 Brasis), sua taxa de pobreza caindo de 65% para 10%. Seu seguro-desemprego, sua renda mínima, e seu sistema educacional, apontam para caminhos concretos de superação da pobreza e da ignorância. Portanto, ao mesmo tempo em que se transforma num país altamente industrializado, a China cria as condições que a tornem um país socialmente livre da pobreza, cultural e cientificamente avançado, e crescentemente igualitário.

Comparada aos países capitalistas desenvolvidos, a China só se encontra atrás dos Estados Unidos. Mas, com a diferença de que potência industrial norte-americana já atingiu o grau de produtividade que lhe permite substituir, em grande escala e de forma crescente, o trabalho vivo pelo trabalho morto. Ou, dizendo de outro modo, substituir a força de trabalho humana pela força de trabalho de máquinas e aparelhos. A China, por seu lado, ainda não alcançou o estágio em que o mercado pode ser substituído pela administração coletiva da produção e da distribuição dos bens. Talvez isso possa começar a ocorrer a partir de 2050, dependendo do seu ritmo de desenvolvimento econômico e social.

De qualquer modo, as experiências chinesa e vietnamita mostram que sociedades atrasadas do ponto de vista capitalista podem se tornar palcos de tentativas de superação do capitalismo, desde que não neguem as leis do desenvolvimento histórico. A concorrência e as contradições entre a propriedade estatal e a propriedade privada fazem parte delas, gerando uma luta de classes relativamente surda, na qual a corrupção parece haver se tornado a principal arma da burguesia.

Por outro lado, é difícil dizer se o socialismo de mercado será a formação econômica e social de transição de todos os países capitalistas pouco desenvolvidos. Embora as experiências, até agora exitosas, da China e do Vietnã, demonstrem que tal tipo de socialismo é um poderoso vetor de crescimento econômico e social, cujos paradigmas podem ser utilizados por qualquer país para seu desenvolvimento, não é impossível que surjam novos caminhos de transição socialista.

Ou seja, levando em conta que a história é muito pródiga em surpresas, também não custa prestar atenção às políticas que os países capitalistas desenvolvidos se verão obrigados a trilhar para tentar superar os problemas sociais impostos pela crescente produtividade, em contraste com o crescente descarte da força de trabalho.

De imediato, embora o governo Biden não tenha qualquer veleidade socialista, vale a pena acompanhar com atenção sua tentativa de superar a crise de desenvolvimento do capitalismo norte-americano através da proposta keynesiana de investimentos orientados pelo Estado. As disputas internas que tal tentativa promoverá talvez deem mais força aos ressurgentes políticos socialistas nos Estados Unidos.

(*) Wladimir Pomar é jornalista, escritor  e militante petista


(**) Textos assinados não refletem, necessariamente, a opinião da tendência Articulação de Esquerda ou do Página 13.

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