Alguns comentários sobre o PED

Por Valter Pomar (*)

No dia 1 de novembro de 2019, a Tribuna de Debates do PT nacional publicou um artigo do companheiro Ricardo Zamora, intitulado “Em defesa do Processo de Eleições Diretas”.

O artigo de Zamora pode ser lido no seguinte endereço: https://pt.org.br/ricardo-zamora-em-defesa-do-processo-de-eleicoes-diretas-ped/

Um dos objetivos do artigo de Zamora é “apresentar argumentos a favor da manutenção do PED”.

Evidentemente, Zamora reconhece que o PED realmente existente inclui irregularidades e fraudes. E diz ser “inadmissível que tais práticas continuem acontecendo”.

Uma pergunta é: por quais motivos os fraudadores de 2019, os de 2017 e outros tantos não foram até hoje punidos?

Não seria porque o “processo” se retroalimenta, porque os beneficiários da fraude agem para minimizar o problema e para evitar punições?

Por isso, até para que haja identificação e punição dos fraudadores, é preciso (ao contrário do que diz Zamora) “cogitar” uma mudança nas regras. Pois é bem pouco provável que os beneficiários se disponham a identificar e punir os beneficentes. Aliás, os beneficiários nem admitem que tenha havido fraude em larga escala.

Isto posto, proponho fazer o seguinte exercício mental: vamos imaginar um “PED 100% a prova de fraudes e irregularidades”.

Pergunto: este zero fraude seria o melhor método para eleger as direções partidárias e para escolher os delegados e as delegadas que vão definir o programa, a estratégia, a tática e o funcionamento do Partido?

[Vale lembrar que, admitida a hipótese de um PED zero fraude, admite-se também que se possam fazer congressos 100% sem fraudes e irregularidades.]

Seja como for, no exercício mental que estou propondo, as fraudes não são uma variável. E a pergunta que faço é: neste mundo sem fraudes nem irregularidades, qual seria o método mais adequado para eleger as direções do PT? Eleição direta ou eleição congressual?

Pois bem: minha tese é que o sistema participativo-congressual é em geral superior ao sistema representativo-eleitoral, pelo mesmo motivo que a democracia participativa é, em geral, superior à democracia representativa.

Adianto que, em minha opinião, o sistema congressual é superior “em tese”, mas também é particularmente superior na atual conjuntura.

Para simplificar, vou explorar só um aspecto do problema, embora haja outros: o tema das listas.

A eleição direta pressupõe que haja listas, ou seja, chapas nas quais as pessoas votam.

Pois bem: o sistema do PED trata o filiado petista como um eleitor, que escolherá alguma dentre as listas previamente preparadas por terceiros.

Logo, os fazedores de listas são os que definem quem pode ser votado e quem não pode ser nem votado. Na prática, o poder real dos fazedores de lista é muito superior ao poder de cada eleitor individualmente falando. O filiado tem o direito de escolher um dos pratos disponíveis em um cardápio escolhido por outros.

Já num sistema congressual-participativo, a condição fazedor de lista é por definição acessível a todos e todas. E as pessoas, para se elegerem delegados/as à instância superior, precisam convencer os seus iguais, que também podem sair delegados. O cardápio não é pré-definido e não há aquela desigualdade estrutural já apontada entre os participantes do processo.

Diferente disto, num sistema eleitoral-representativo, o máximo que a imensa maioria das pessoas pode fazer é não comparecer, votar em branco, nulo ou em alguma das chapas que já estão prontas.

Trocando em miúdos, no sistema eleitoral-representativo, o papel reservado a cerca de 2.400.000 filiados é o de votar nas chapas que foram articuladas por algumas centenas de filiados.

Pelo motivo acima (lembrando que, para facilitar, estou me restringindo ao aspecto “listas” do problema), considero que um sistema congressual-participativo é, em geral, superior a um sistema eleitoral-representativo.

Além disso, considero que o método congressual-participativo é especialmente necessário na conjuntura em que vivemos. Conjuntura em que me parece óbvio que não basta termos eleitores, é necessário estimular e educar o maior número de pessoas a assumir responsabilidades militantes. O PED não faz isso, o máximo que o PED desafia as pessoas é a vir votar.

Evidentemente, o problema não se resume ao PED, não se resume a democracia interna ao Partido. O problema também envolve qual tipo de democracia queremos na sociedade, agora e no socialismo. Queremos uma democracia representativa, em que uns votam e outros governam? Ou queremos uma democracia com altas doses de participação popular, não apenas para escolher os governantes, mas também para decidir sobre seu cotidiano?

Aliás, não é por acaso que o PED entrou na vida do PT, ao mesmo tempo em que foram perdendo importância os movimentos sociais e os mecanismos de participação popular.

Nem é por acaso que um partido que elege suas direções com métodos eleitorais-representativos, não tenha conseguido mobilizar com a energia necessária para derrotar o golpe.

O PED foi uma entre varias capitulações de um amplo setor de nosso Partido, aos limites da chamada democracia burguesa.

Quando falamos que o PED introduziu no Partido métodos da democracia burguesa, não estamos nos referindo às irregularidades e fraudes. Até porque há processos eleitorais burgueses com menos irregularidades e com menos fraudes do que no PED realmente existente. Mas mesmo que tiremos todas as fraudes e tiremos todas as irregularidades, ainda assim o PED seria um “método eleitoral burguês”.

Isto pelo seguinte motivo: a democracia burguesa trata todos como “iguais perante a lei”, todos como tendo direito a um voto etc. Mas a igualdade real não existe, pois alguns têm dinheiro e outro não têm, alguns têm acesso aos meios de comunicação e outros não têm etc.

Pois bem: analogamente e para simplificar, no PED alguns têm direito a montar listas, outros não têm.

Simples assim: se você não é ligado a algum grupo organizado (uma tendência, um mandato), então se tornam reduzidíssimas as suas chances de ser delegado/a ou dirigente. Neste sentido, o PED contribui para oligarquizar o Partido. Além de reforçar outros mecanismos que contribuem nesse sentido; mas como já disse, para simplificar estou me limitando ao tema “listas”.

Um partido que, no momento mais importante da vida partidária (o de escolher a linha política e de eleger as direções), reserva a imensa maioria de seus filiados/as o papel de eleitores, este partido terá muito dificuldade em convencer estes mesmos filiados/as a ter uma atitude militante.

Segundo Zamora, “em períodos não revolucionários, em que não há um ascenso do movimento de massas, a vida partidária é, em larga medida, alimentada pelas estruturas profissionais da política, pela máquina partidária, pela máquina das correntes, dos mandatos, das estruturas sindicais. Neste sentido, limitar o universo dos chamados a decidir aos militantes orgânicos implica limitar severamente a democracia partidária”.

Se entendi o que Zamora quis dizer, ele considera que o método eleitoral-representativo, no caso o PED, seria o mais adequado para momentos em que a maioria das pessoas não está envolvida cotidianamente na atividade política. Neste tipo de momento, diz ele, quem se envolve cotidianamente são os profissionais. Logo, acabar com o PED seria ampliar a influência dos profissionais.

Na minha opinião, há neste raciocínio dois equívocos.

O primeiro é factual: o sistema do PED é baseado no voto direto em âmbito nacional, estadual e municipal. Quem monta as chapas que vão a voto são basicamente os profissionais. Portanto, na vida real, o PED aumenta a influência dos profissionais, dá a eles o “direito” de decidir quem pode ou não ser votado.

Já no sistema participativo-congressual, as pessoas presentes aos congressos de base podem se reunir e decidir ali, de corpo presente, quem sairá ou não delegado. A chance da base desafiar a “ditadura dos profissionais” da política é maior no sistema congressual-participativo, do que no sistema eleitoral-representativo.

O segundo equívoco do raciocínio de Zamora é, digamos, conceitual. Não vivemos um período não-revolucionário. Vivemos um período reacionário. Num período revolucionário, as massas tudo atropelam. Num período reacionário, as massas e as organizações são atropeladas. Num momento desse tipo, é muito mais importante fortalecer as organizações. O PED não contribui para isso, pois o máximo que se pede aos filiados/as é que venham e votem.

Aliás, recomendamos comparar o número de participantes no PED e o número de assinaturas no abaixo-assinado da campanha Lula Livre, colhidas no dia do PED.

Claro que há um imenso problema, que precisa ser enfrentado por aqueles que defendem a volta do sistema congressual. Acabar com o PED só vai significar um salto de qualidade, se o Partido oferecer espaços orgânicos de militância para centenas e centenas de milhares de pessoas, para os “ativistas políticos e sociais, trabalhadores sindicalizados, dirigentes e militantes de base, ativistas culturais, ativistas de movimentos sociais os mais diversos, pessoas progressistas e/ou que se identificam como de esquerda”.

Nesse quesito, eu não me conformo com a afirmação de Zamora, segundo a qual a “amplíssima maioria não possui vínculos orgânicos ou, se os possui, são fluidos e eventuais”, além de existirem “milhares de ex-militantes orgânicos, companheiros que já tiveram uma participação militante mais efetiva, seguem acompanhando os debates, mas não se dispõem a participar das assembleias de militantes, mesmo que não permanentes”.

Ao dizer que não me “conformo”, significa que eu não concordo que esta situação seja inevitável ou imutável; mais ainda, acho que se quisermos mudar a situação política do país, temos necessariamente que mudar esta situação de baixos teores de militância. Temos que aumentar o grau de militância das pessoas. E, nesse sentido, o PED nos coloca numa péssima “zona de desconforto”. Pois, cá entre nós, temos mais de 2 milhões e meio de filiados, mas temos menos de 400 mil que comparecem para votar.

Como Zamora, eu também quero ampliar o “universo daqueles que podem tomar decisões dentro do PT”. E é também por isto que eu defendo o fim do PED. O PED, ao contrário da lenda, restringe o poder real de tomar decisões a quem define as listas. O PED, como na democracia burguesa tradicional, dá como máximo direito aos “cidadãos petistas” o de votar uma vez a cada 2 anos.

Diferente do que sugere Zamora, eu acho plenamente possível ampliar o universo daquelas pessoas que “se dispõem (e tem condições práticas de fazê-lo) a participar de encontros e assembleias”. Sem prejuízo de também utilizar a democracia eleitoral-representativa, sem prejuízo de utilizar as redes sociais e a política de comunicação, eu considero essencial reconstruir, diversificar e potencializar os laços comunitários da classe trabalhadora.

E confesso que não consigo entender por qual motivo algumas pessoas pensam que isso seria por definição contraditório com os tempos atuais, com a modernidade. Basta ver as igrejas pentecostais, as forças armadas e de segurança, bem como o crime organizado, para perceber o quanto a extrema direita é eficaz ao utilizar mecanismos digamos clássicos para organizar as pessoas. A extrema direita sabe incorporar as ferramentas modernas, mas não deixa de lado a construção de “laços comunitários”.

Enfim, o debate sobre o PED não é o debate sobre as irregularidades e fraudes. O debate sobre as irregularidades e fraudes é uma discussão nos marcos da democracia burguesa. Já o debate sobre o PED é o debate sobre que tipo de democracia defendemos e sobre que nível de militância precisamos ter, especialmente se quisermos sobreviver e vencer a guerra que movem contra nós.

(*) Valter Pomar é professor de relações internacionais da UFABC (Universidade Federal do ABC) e candidato à presidência nacional do PT

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