Ao Gabrielli: o problema não é a “ortodoxia”, mas o imperialismo

Por Valter Pomar (*)

Há alguns dias, um companheiro que muito respeito fez um elogio indireto ao Biden. Eu escrevi para ele, que me respondeu que talvez tenha se “deixado levar pelo entusiasmo da hora”.

Não por coincidência, o companheiro Gabrielli fez o mesmo, em suas  “Respostas a um companheiro ortodoxo das antigas” . Lembrando: eu escrevi um texto questionando a afirmação que Gabrielli fez, segundo a qual Biden seria um “reformista radical”. Gabrielli reconheceu que eu tenho “razão no que se refere ao radical. Foi um pouco exagero de minha parte, que aqui reconheço”.

Arrisco que deva pensar algo parecido a pessoa que escreveu que Biden estaria “revolucionando o capitalismo”. Começo por aí, porque acredito que essa predisposição otimista em relação a Biden é muito relevadora do “anima” de uma parte de nossos dirigentes, talvez porque saibam muito bem o tamanho das dificuldades que estamos enfrentando e de como seria bom se as coisas pudessem ser um pouco mais fáceis, por exemplo caso o imperialismo fosse  um pouquinho diferente do que é.

Mas acontece que o imperialismo é o que é; e não perceber isso é muito mais grave do que a ortodoxia “das antigas” de que sou “acusado” pelo meu bem-humorado companheiro.

Vale dizer que Gabrielli está de acordo com boa parte do que eu escrevi, inclusive com a afirmação segundo a qual “o plano Biden, se der certo, vai fortalecer os EUA”.

Entretanto, Gabrielli parece achar que eu “desejo” que o plano Biden não dê certo.  Não sei se passei esta impressão, mas não é isto que eu penso. Nem acho que Trump e Biden sejam iguais (embora as diferenças sejam menores do que muita gente pensa). Ademais, acho ocioso ter que lembrar que nenhum dos dois é anti-capitalista.

O que eu acho é que as medidas adotadas por Biden – até agora, pelo menos – não são capazes de fazer, em relação ao capitalismo neoliberal, o mesmo que o New Deal + Segunda Guerra fizeram em relação ao capitalismo liberal.

Digo “até agora”, porque não considero impossível que isso venha a ocorrer. Mas, caso venha a ocorrer, isto exigirá algo mais do que um plano econômico “pacífico”, pois só mudanças da escala de uma guerra serão capazes de dar solução à massa de capitais financeiros acumulados.

Além disso, enfatizo que com o plano Biden – seja na versão atual (que como disse não considero seja feito para, nem seja capaz de superar a financeirização), seja na versão dos entusiasmados (que acham que Biden já estaria a caminho de superar o neoliberalismo) – os EUA não vai facilitar nossa vida, muito antes pelo contrário. Pois se der certo, eles ficarão ainda mais fortes.

Dito de outro jeito: claro que pode nos ajudar, no debate de ideias com os neoliberais tupiniquins, este “momento keynesiano” de Biden. Mas fora do debate de ideias, na vida econômica real, o governo Biden e o imperialismo dos Estados Unidos não vão facilitar para nós “nem um tiquinho”. Se der certo o que Biden pretende fazer, o efeito disto será aumentar a pressão sobre nós e sobre a América Latina.

A esse respeito, Gabrielli fez uma inteligente digressão sobre o uso da expressão “para inglês ver”. Como piada boa não precisa de explicação, fica claro que não mandei bem. Mas vejamos os fatos. Os ingleses queriam enfraquecer a escravidão, os gringos de Biden querem fortalecer a primário exportação. Portanto, se havia algum motivo para torcer “a favor” dos ingleses, qual seria o motivo para torcer a favor de Biden? Os motivos poderiam existir, em maior ou menor medida, se nos colocarmos do ponto de vista dos trabalhadores dos EUA. Mas do ponto de vista dos trabalhadores brasileiros, tanto do ponto de vista imediato quanto do ponto de vista histórico, o único que Gabrielli consegue citar é… o debate de ideias com os neoliberais tupiniquins. Mas nisto estamos de acordo, nosso desacordo – acho eu – diz respeito aos efeitos materiais que terão os EUA versão Biden por sobre o Brasil.

Gabrielli diz que talvez o reformismo de Biden seja “uma proposta de longo prazo de transformação produtiva do capitalismo americano”. Como eu já disse antes, não acho que isto seja impossível de acontecer. O que eu disse é: 1/não há elementos para dizer isso e 2/se vier a acontecer, não será por obra e graça de um “plano”, muito menos pacífico.

Neste sentido, faço minhas as palavras de Gabrielli: “não se pode substituir a “análise concreta, de uma situação concreta” pelo desejo. Que há mudanças há, mas como Gabrielli mesmo diz: “quão profundas, ninguém sabe!”

Mesmo dizendo que ninguém sabe, ainda assim Gabrielli diz que este novo “Consenso de Washington 2” impulsionado por Biden mudaria “o tratamento sobre a dívida, o financiamento dos gastos públicos, a importância dos temas da desigualdade, assim como introduz objetivos de reduzir a segregação racial e de gênero, além dos desafios das mudanças climáticas”.

Ou seja: mesmo sabendo que a “profundidade” não está dada, ele em certe medida toma as coisas pelo valor de face.

Em parte isso ocorre porque Gabrielli diz que “não pretendia avaliar a posição do Brasil em relação ao Plano Biden, mas analisar a situação concreta do plano, na ótica dos americanos”. Buenas, eu confesso que tenho dificuldade de assumir esta ótica. Mas da ótica de um país submetido ao imperialismo, eu não acredito que o êxito de Biden seja bom para nós.

Gabrielli me pergunta diretamente “se os efeitos das mudanças táticas da política econômica no centro do capitalismo americano rompendo com os dogmas do Consenso de Washington, ainda que moderadamente, ajudam ou não nossa luta brasileira contra os ortodoxos da terra, especialmente do governo Bolsonaro, que insistem nas velhas e ultrapassadas ideias de austeridade a todo custo, mesmo em plena pandemia? Fica a pergunta, que tem o mesmo sentido quando aplicada à luta contra o tráfico de escravizados no século XIX.”

Já respondi acima e repito: ajuda no debate, mas não ajuda no restante. Pois um governo imperialista forte nos EUA será prejudicial para um governo de esquerda brasileiro. A não ser, é claro, que achemos que o imperialismo é uma invenção dos “ortodoxos das antigas”.

Gabrielli pergunta: “quais são as estruturas que Biden quer reformar? Valter parece estar certo de que não são “o capital monopolista financeiro, o complexo militar industrial, o imperialismo”. Esses não são seus objetivos de reforma, mas sim as indústrias portadoras de futuro: a questão energética, inovações tecnológicas e a infraestrutura social. Pode-se pensar o capitalismo futuro sem uma transição energética que afete os interesses das grandes empresas de petróleo, de carvão, do sistema elétrico, da indústria automotiva, da lógica do capital imobiliário urbano, dos construtores, dos sistemas de transporte, entre outros? Isso implica em reforma ou não? Pode-se pensar em um capitalismo futuro sem uma profunda mudança nos sistemas de tecnologia e inovação, na linha do estado empreendedor de Mazucatto, em que o estado expande sua influência nas inovações disruptivas, mesmo que ao lado de capitais privados que desenvolvem as ideias-semente? Isso implica em reforma ou não? Pode-se pensar em capitalismo futuro sem alguma expansão significativa da ação do estado no provimento, ou direto ou via crédito e seguros, de serviços sociais especialmente voltados para os milhões de pessoas que serão deslocados para a pobreza com os efeitos das novas tecnologias e expansão da precarização do trabalho dessa etapa financeirizada do capitalismo? Isso implica em reforma ou não? São essas reformas que o Plano Biden pretende, é claro com “um longo trecho a percorrer entre o que o plano pretende e a realidade”, como reconhecido por mim e por Valter Pomar”.

Fiz questão de reproduzir o trecho inteiro, pois nele se concentra uma parte importante da divergência. Gabrielli enfatiza que Biden pretende construir o capitalismo futuro investindo nas “indústrias portadoras de futuro: a questão energética, inovações tecnológicas e a infraestrutura social”. Meu ponto é triplo: 1/primeiro, não são as indústrias “portadoras de futuro” que vão alterar a natureza capitalista e imperialista do capitalismo; 2/tampouco é a mera existência destas indústrias que vai resolver, de per si, o conflito com a China; 3/e o investimento nessas indústrias não implica necessariamente em superar a financeirização e o neoliberalismo no sentido amplo da palavra.

Gabrielli parece (se estiver errado, ele me corrija) pensar diferente. É faz uma digressão sobre o que devem fazer os “democratas mais progressistas”. Novamente, confesso que não tenho condições de opinar sobre o que eles devem fazer e acho que devíamos nos concentrar em debater o que nós devemos fazer aqui no Brasil, inclusive frente ao imperialismo, inclusive se o plano Biden “der certo”, seja lá o que isso significar.

Por fim, quero falar daquilo que Gabrielli afirma ser “talvez à nossa maior divergência: o papel das guerras na recuperação do capitalismo”. De saída, esclareço que estou de acordo que o Plano Marshall também tinha como objetivo “estimular a economia dos EUA”, mas é bom lembrar que a esta altura isto incluía estimular o complexo militar industrial (quando falo do papel das guerras, isso inclui a economia da guerra). E esclareço também que não penso (e acho que não escrevi em lugar nenhum) que a 2ª Guerra tenha sido o “primeiro estímulo” da recuperação americana depois da Grande Crise de 1929. O que eu escrevi foi: “foi através da guerra – e não do New Deal – que os EUA saíram da condição de pais em crise, para a condição de potência mundial”. Como diz o próprio Gabrielli, “as livres forças do mercado não eram suficientes para continuar impulsionando a economia americana, necessitando da ação direta do estado”. E a guerra foi exatamente isto! Citando novamente o Gabrielli: “De 1937 a 1939, quando começa a 2ª Guerra há um recrudescimento da depressão e o desemprego volta a crescer, desabando depois do início da Guerra, mesmo antes da entrada direta dos EUA nas batalhas, mas depois de se reestruturar para uma “economia de guerra”.” Portanto, o que Gabrielli diz confirma a minha opinião sobre o papel da guerra (economia de guerra inclusive) na superação da crise e na hegemonia futura dos EUA.

Gabrielli termina seu texto me “acusando” de wishiful thinking. Pode ser, sempre pode ser. Mas mais otimista é Gabrielli, que falou do papel da guerra no passado e não fala nada acerca das possibilidades da “guerra” hoje. Eu, como “ortodoxo das antigas”, mas principalmente como historiador, não tenho dúvida alguma sobre “o papel das guerras na recuperação do capitalismo”.

Termino citando um cara insuspeito, Friedman: “Os Estados Unidos estiveram em guerra por cerca de 10% de sua existência. Essa estatística só inclui guerras importantes – a Guerra de 1812, a Guerra Mexicano Americana, a Guerra Civil, as duas Guerras Mundiais, a Guerra da Coréia, do Vietnã… Durante o século XX, os EUA estiveram em guerra 15% do tempo. Na segunda metade do século XX, foi 22% o do tempo. E desde o começo do século XXI, em 2001, os EUA estiveram permanentemente em guerra. A guerra é central para a experiência norte-americana, e sua freqüência é cada vez maior. Está incrustada na sua cultura e profundamente enraizada na geopolítica do país.”

Algo bem mais perigoso e mais das antigas do que a ortodoxia de esquerda.

(*) Valter Pomar é professor e membro do Diretório Nacional do PT


(**) Textos assinados não refletem, necessariamente, a opinião da tendência Articulação de Esquerda ou do Página 13.

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