Em 12 de agosto deste ano, o adolescente Pedro Henrique nos deixou, vítima do ódio contra negros, pobres e gays; ele foi alvo de bullying no Colégio Bandeirantes, que forma filhos da elite econômica da mais rica cidade do continente. A ocorrência escancara a mal disfarçada cultura da morte (física e simbólica) que atinge de forma fatal, todo dia, negras e negros neste país.
Pedro Henrique adorava tocar violoncelos como este, do Instituto Hatus, onde participou de coral e orquestra.
Por Paulo Sérgio de Proença (*)
O mês de setembro é dedicado à conscientização e à prevenção contra o suicídio. O Setembro amarelo, como é conhecido, concentra esforços na tentativa de salvar vidas e oferece oportunidade para questionarmos se, em cada ocorrência, a sociedade é agente suicida. Agonizamos.
Em 4 de maio de 2020, Flávio Migliáccio, aos 85 anos, suicidou-se e deixou uma carta em que afirmou “A humanidade não deu certo”. No fim da mensagem, o ator deixa este alerta “Cuidem das crianças de hoje”.
As nossas crianças e os nossos adolescentes estão se matando, o que em tese é, no mínimo, reforço ao que Migliaccio disse; é, ainda, sintoma de doenças que levaram à UTI a nossa humanidade.
Um estudo da Sociedade Brasileira de Pediatria apurou que, entre 2012 e 2021, “cerca de mil crianças e adolescentes […] entre 10 e 19 anos de idade, cometem suicídio no Brasil a cada ano”. Migliaccio estava certo?
Essa fase corresponde à escolarização obrigatória e ao início da vida universitária.
Contradições moram na escola
A escola é o ninho da esperança. A ela convergem todos os sonhos de uma vida melhor, sobretudo para quem não nasceu em berço de ouro nem dispõe de meios miraculosos para ganhar dinheiro (supondo que é isso que todos querem). As gerações de nossos mais velhos perceberam a importância da educação para uma vida melhor e se esfalfaram para dar a seus filhos condições mínimas para acesso à vida escolar, sobretudo universitária. E estavam certos. Assim, a escola inspira anseios utópicos, como sugeriu Paulo Freire. Todavia, ser útero de sonhos não impede que a Escola incorpore outras características nem tanto motivadoras.
O outro lado da moeda diz que a escola não é – talvez nunca tenha sido – um ambiente de harmonia angelical; nela, nem sempre realidade e utopia se beijam. Ao contrário, atrai as contradições da sociedade. No ambiente escolar não circulam apenas conhecimentos escolarizados – alguns inúteis – mas, sobretudo, violência, muita violência, não apenas física, mas sobretudo simbólica.
Essa dimensão associada à escola foi percebida sob intuição literária por vários autores. Vão aqui dois, de nossa Literatura: Machado de Assis e Raul Pompeia.
Machado de Assis, há aproximadamente século e meio, ainda nos tempos de escravidão, escreveu “Conto de escola”, em que o narrador confessa ter aprendido no ambiente escolar a corrupção e a delação; outro conto por ele escrito, “O caso da vara”, abre com Damião em fuga do Seminário (instituição escolar); o futuro padre foi apresentado ao reitor por seu padrinho, com este diálogo: “‘Trago-lhe o grande homem que há de ser’, disse ele ao reitor. ‘Venha […] venha o grande homem, contanto que seja também humilde e bom. A verdadeira grandeza é chã […]. Tal foi a entrada’”. Damião abandonaria tudo pouco depois, fugindo. Tal foi a saída. Ele, “o grande homem” participaria como pivô de uma cena de violência (sugerida no título do conto), no clímax da narrativa, contra Lucrécia, uma menina escravizada, assim descrita: “uma negrinha, magricela, um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda. Contava onze anos […] tossia, mas para dentro, surdamente”. O corpo dessa criança carregava as marcas da violência que sofreu pelo crime de ter vindo ao mundo revestida de pele negra, no tempo da escravidão. Como Pedro Henrique, em nossos dias.
Raul Pompeia, contemporâneo desses contos mencionados, no romance O Ateneu registra atos de violência da instituição escolar. Ironicamente, esta é a abertura da narrativa: “‘Vais encontrar o mundo, disse meu pai à porta do Ateneu. Coragem para a luta’. Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das ilusões de criança”. A realidade escolar desfaz as desilusões infantis, como se pode ler ao longo da narrativa.
A missão redentora da escola não se ajusta à realidade. Ocorre que ela acolhe crianças e jovens que chegam com apetrechos morais enxertados pela família, pela religião, por exemplo, instituições que são adjuvantes na formatação de novas mentalidades ao interesse das classes privilegiadas, ricas e ocupantes dos postos de comando da política e da economia.
Violência física e simbólica nas escolas
O Ministério da Educação publicou em novembro de 2023 o relatório “Ataque às escolas no Brasil: análise do fenômeno e recomendações para a ação governamental”. O Brasil teve, entre 2002 e 2023, 36 ataques a escolas, com 164 vítimas (49 fatais). Esses ataques são “crimes por imitação” de ocorrências registradas em outros países, aqui reproduzidos no Realengo (2011), em Suzano (2019) e no bairro de Sapopemba (São Paulo, 2023). Cabe a pergunta: qual a motivação para essa violência escolar?
Comentando os dados do estudo, o professor Daniel Cara, da Faculdade de Educação da USP, conclui: “[…] a escola é um ambiente violento que promove a violência. Ela não é um ambiente seguro, protegido. E, ao mesmo tempo, existe a violência na escola, em que a modalidade mais conhecida é o bullying, que, numa tradução simples, é a perseguição sistemática, ele acaba alimentando a mobilização de ataques”.
Essa avaliação aponta para o que tem mais assustado profissionais de educação e pais, pois o bullying na escola, segundo esse estudo, “já é […] passo para uma sequência de violência e para a criança ou adolescente começar a pensar no suicídio como uma saída” e, ainda, se combina com discursos e práticas de ódio, principalmente em “interações virtuais cujas estratégias incluem humor, estética e linguagem violentas, especialmente misóginas, machistas e racistas, em plataformas de Internet utilizadas pelos grupos extremistas com fins de organizar comunidades de ódio e mobilizar ataques, resultando em impunidade por conta do anonimato”.
Ao Pedro Henrique, in memoriam
Pedro Henrique Oliveira dos Santos teve breve vida, cuja história é acúmulo de preconceitos: preto era de pele (racismo), pobre também (classismo: preconceito social), gay além do mais (homofobia). Coincidentemente, essas são bandeiras prioritárias da propaganda política de extrema direita, que opera na prática a necropolítica, a julgar pelo que diz o pastor André Valadão que, recentemrnyr autorizou violência contra a comunidade LGBT.
A esse respeito, a revista Cartacapial reproduz trecho do sermão desse pastor[?] proferido em 2 de julho de 2023: “Agora é a hora de tomar as cordas de volta e dizer: Pode parar, reseta! Mas Deus fala que não pode mais […] Ele diz, ‘já meti esse arco-íris aí. Se eu pudesse, matava tudo e começava de novo. Mas prometi que não posso’, agora tá com vocês”. Que Deus é esse? Como se vê, a violência também se aninha em púlpitos e, por extensão, na mente e no comportamento de fieis, para todo lugar se expandindo, principalmente para os templos do saber.
“Preto, pobre, gay e periférico” identifica, mas não explica quem foi Pedro Henrique, 14 anos, morto em 12 de agosto de 2024, pelo crime de vir ao mundo revestido de pele negra, por ser pobre e por ser gay – e, com tudo isso, por ser inteligente e emular filhinhos de papai cercados das maiores mordomias. Ele era bolsista do Colégio Bandeirantes, destino de filhos da elite econômica paulistana, que cobra a maior mensalidade média da cidade.
Nessa escola, segundo o portal Diário Centro do Mundo, em 2018 dois estudantes tiraram a vida no intervalo de duas semanas.
Não era fácil a convivência de Pedro Henrique lá. Para se ter uma ideia do seu calvário, basta ler uma mensagem que ele enviou para sua mãe, dias antes de morrer, reproduzida pelo portal Terra: “Fizeram chacota de mim por eu ser gay […] Vontade de nunca mais pisar de novo. Me humilharam (na frente) da sala inteira. Eu não aguento mais. Eu fiquei trancado no banheiro por 50 minutos, chorando. Ficaram me humilhando”.
Pedro Henrique, além dos pais, tinha uma irmã (13 anos) e um irmão (21 anos); a família morava na Vila dos Remédios, na cidade de Osasco, vizinha de São Paulo. Segundo o Terra, ele era caseiro e gostava de ler (dentre outros autores, Machado de Assis) conforme depoimento do irmão. Apreciava música, que estudou em escola de uma ONG próxima da sua casa, em cujo coral cantava; estava aprendendo violoncelo, mas precisou deixar os estudos musicais quando ingressou no Colégio Bandeirantes, por incompatibilidade de horário, também comprometido com o tempo de transporte, que lhe tomava uma hora de ônibus, só de ida.
Seu potencial intelectual seria aplicado às Artes ou à Ciências? Quem sabe? O certo é que a violência ceifou o talento desse brilhante adolescente negro.
Para ser bolsista no Colégio Bandeirantes, Pedro participou de rigoroso processo seletivo composto por seis etapas de provas e de entrevistas, com centenas de concorrentes. Foi selecionado, mas a porta que deveria abrir-lhe o caminho da realização diante de promissor potencial, provocou a abreviação de sua existência. Ele se tornou mais uma vítima da máquina de morte que alveja negras e negros, todos os dias, neste país.
Qual foi a reação da direção do Colégio Bandeirantes? A instituição recusou-se a tratar o ocorrido como problema seu, lavando as mãos, eximindo-se de qualquer responsabilidade, alegando que tudo aconteceu fora de seus muros. Segundo a Revista Forum, “ao invés de tratar sobre o bullying que vitimou o estudante, o colégio colocou a culpa na inclusão de alunos bolsistas e afirmou que vai rever o acordo com a ONG Ismart (Instituto Social para Motivar, Apoiar e Reconhecer Talentos), responsável pela seleção de bolsistas”.
Pedro Henrique teve a coragem de se equiparar aos filhos brancos da elite econômica, demonstrando em nada a eles ser inferior, apesar das condições adversas de vida. O que com ele aconteceu é indício de má vontade de segmentos privilegiados em conviver com o Outro-diferente; nesse contexto prevalecem interesses de classe para os quais negros, pobres, gays (além de outros grupos oprimidos) devem ser exilados às regiões do não-ser social: posições de prestígio mínimo ou inexistente; impedimentos à escolarização (como é o caso); exercício de profissões manuais, desvalorizadas, para as quais a retribuição é escandalosa. Correspondem a essa lógica, em termos espaciais, as periferias, as prisões, os cemitérios (como também é o caso), em movimentos de eugenia criminosa.
Como Lucrécia (11 anos!) do conto machadiano, Pedro Henrique (14 anos!) tendo sofrido as consequências da intolerância e do ódio, foi morto pelo racismo, pela homofobia e pelo ódio a pobres. Ele representa milhões de irmãos de cor e foi sacrificado no altar dos ídolos inspiradores do pior que podem produzir os seres humanos.
Ao Pedro Henrique Oliveira dos Santos, in memoriam.
(*) Paulo Sérgio de Proença é professor da Unilab, Bahia.
Fontes consultadas:
https://www.gov.br/mec/pt-br/acesso-a-informacao/participacaosocial/