Ao trocar comando do Exército, Lula enquadra chefes militares

Por Pedro Estevam da Rocha Pomar (*)

O sábado 21 de janeiro de 2023 passará à História do nosso país como um dia muito especial. Não só pelo comovente encontro do presidente Lula e de seus ministros com os Yanomami e pelas urgentes providências anunciadas, que restauram os direitos e a dignidade desse povo indígena. Mas, principalmente, pela troca realizada no comando do Exército.

A demissão do então comandante, general Júlio César de Arruda, e sua substituição pelo general Tomás Ribeiro Paiva, era uma medida necessária e crucial à punição dos golpistas de 8 de janeiro e de seus cúmplices. Ela quebra a perversa tradição, revigorada pela Ditadura Militar (1964-1985), de submissão do poder civil à vontade e à tutela das Forças Armadas (FFAA).

No dia 8, Arruda foi o responsável pela decisão de colocar blindados e soldados do Exército em formação de combate no acesso ao QG do Exército em Brasília, com a finalidade de impedir que a Polícia Militar cumprisse a ordem judicial de desalojar o acampamento dos terroristas bolsonaristas instalado em frente ao “Forte Apache”, como é conhecido aquela unidade militar.

O jornal norte-americano Washington Post divulgou, no dia 14 de janeiro,  reportagem que relata um diálogo entre o general Arruda e o ministro da Justiça, Flávio Dino . “Vocês não vão prender gente aqui”, disse o comandante do Exército ao ministro da Justiça, Flávio Dino, “segundo duas autoridades presentes”. Nos dias seguintes, curiosamente, a maior parte da mídia brasileira, incluindo a TV a cabo Globonews e o jornal Folha de S. Paulo, ignorou a matéria do Washington Post.

Novos detalhes das conversas mantidas por Arruda com o interventor do governo federal na segurança pública do Distrito Federal, Ricardo Capelli, e com o ministro Dino foram divulgados pelo jornalista Guilherme Amado no portal Metrópoles, no dia 22 de janeiro. O comandante do Exército teria “enfiado o dedo na cara” de Capelli e feito ameaças ao então comandante da PM do DF.

Não bastasse tudo isso, Arruda ainda resistiu à ordem de Lula de que o tenente-coronel Mauro Cid, o “coronel Cid”, fosse destituído do posto de comandante do 1º Batalhão de Ações e Comandos, sediado em Goiânia. O jovem oficial era o principal ajudante de ordens de Jair Bolsonaro e está envolvido em ações escusas do hoje ex-presidente que são investigadas em inquéritos do Supremo Tribunal Federal.

Ao exonerar o general rebelde, Lula “botou ordem na casa”. Antes tarde do que nunca! Ao fazê-lo, deu um passo crucial em direção a algo inédito no período posterior à Ditadura Militar: a afirmação do “poder civil” frente à tutela militar. Que vem a ser, em última instância, o exercício pleno da soberania popular frente às chantagens do braço armado da classe dominante.

Até então, tanto nas primeiras semanas da gestão atual quanto nos oito anos das gestões anteriores (2003-2010), Lula havia optado por “contemporizar”. A expressão é dele mesmo e foi usada na entrevista que concedeu à jornalista Natuza Nery, da Globonews, para explicar a conduta escolhida, neste momento, no tocante às FFAA.

Quando examinamos os 13 anos de governos petistas anteriores, de Lula e de Dilma (2003-2016), podemos facilmente constatar que a linha adotada na relação com os militares foi exatamente essa de conciliar e de “contemporizar”, com péssimos resultados militares no Brasil e, ainda, graves episódios pontuais de insubordinação. Em todos eles, o governo ou se omitiu, em nome da conciliação, ou adotou medidas meramente decorativas, “para inglês ver”. Vale a pena elencar os principais acontecimentos:

2003. À revelia do Ministério da Defesa, o Centro de Comunicação Social do Exército divulga nota oficial a propósito de supostas fotografias de Vladimir Herzog, assassinado em dependências do II Exército em 1975, na qual a memória desse jornalista e de outras vítimas da Ditadura Militar é vilipendiada. A nota fora aprovada pelo comandante do Exército, general Francisco Albuquerque. O ministro da Defesa, diplomata José Viegas, recomenda a Lula a demissão do general. Lula prefere demitir Viegas.

2007. Alto Comando da Aeronáutica pune com prisões, expulsões e transferências para locais remotos mais de uma centena de sargentos controladores de tráfego aéreo civil que haviam decidido encerrar a greve da categoria após promessa do ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, de que não haveria punições.

2009. Motim dos comandantes militares contra o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). A rebelião foi liderada pelo ministro civil Nelson Jobim, da Defesa. O governo recua, “desidrata” o PNDH-3, retirando os itens “polêmicos”, e ninguém é punido. Um dos trechos retirados determinava a “produção de material didático-pedagógico para ser utilizado pelos sistemas de educação básica e superior sobre o regime de 1964-1985 e sobre a resistência popular à repressão”. Outra alteração: a Comissão Nacional da Verdade e Justiça perdeu o segmento “e Justiça”.

2011.
Por pressão dos comandantes militares, o governo Dilma não permite que a professora Vera Paiva (USP), filha do ex-deputado assassinado e desaparecido político Rubens Beirodt Paiva, pronuncie discurso na cerimônia de instalação da Comissão Nacional da Verdade (CNV).

2013. Assessores civis que acompanhavam o ministro Celso Amorim, da Defesa, são barrados por um general na entrada do Centro de Informações do Exército (CIE), em incidente relatado pelo jornalista Luiz Cláudio Cunha. Amorim acata o veto do general, que não é punido.

2014. General Enzo Peri, comandante do Exército, ordena expressamente aos seus comandados que ignorem os pedidos de informações e de documentos encaminhados pela CNV. Ele não é punido e continua à frente do Exército. Os comandantes da Marinha e da Aeronáutica agem de forma semelhante. As FFAA sabotam abertamente a CNV, sem que o governo reaja.

2015. O ministro da Defesa, Jacques Wagner, permite honras militares e manda um general como seu representante no funeral do general Leônidas Pires Gonçalves, ex-chefe do Comando de Operações de Defesa Interna (CODI) do I Exército (RJ) e ex-ministro do Exército, identificado como torturador no Relatório Final da CNV. O general Hamilton Mourão acusa de “corrupção” a presidenta Dilma e recebe uma punição simbólica: deixa o Comando Militar do Sul, mas continua integrando o Alto Comando do Exército.

Ao longo desses governos, cabe notar que ministros da Defesa como Jobim, Wagner, Aldo Rebelo e até Celso Amorim (que havia sido excelente chanceler) comportaram-se como representantes dos militares no governo e não como chefes civis das FFAA. Papel que José Múcio também pretende exercer no atual governo. A conduta desastrosa de Múcio facilitou os atentados de 8 de janeiro e sua demissão continua sendo necessária,  como bem demonstrado por Marcos Jakoby.

O novo comandante do Exército, general Tomás Ribeiro Paiva, é visto como legalista, mas dificilmente teria obtido sua quarta estrela e chegado ao topo da carreira (“general-de-exército”) se não gozasse da confiança dos seus superiores, todos ligados de alguma forma ao projeto que levou Bolsonaro ao Palácio do Planalto em 2018. Por essa razão é preciso ter cautela ao avaliar o seu perfil.

Por outro lado, espera-se que em futuro próximo o governo promova oficiais-generais mais jovens, de modo a renovar e substituir mais rapidamente a atual cúpula das FFAA, muito comprometida com o bolsonarismo.

A troca no comando do Exército foi indispensável, mas deve ser vista como a primeira de inúmeras medidas a serem tomadas tanto para enfrentar o golpismo e a extrema-direita, como para dar início ao processo de democratização das FFAA e desmilitarização das Polícias Militares. O que inclui a supressão do artigo 142 da Constituição Federal, que abre margem a intervenções militares (“Garantia da Lei e da Ordem”), e de diversas outras legislações.

(*) Jornalista, diretor do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Paulo e militante do PT. O autor agradece a Ana Petruccelli, Aylton Affonso, César Cordaro, Marcos Hermanson e Marcos Jakoby por seus comentários e contribuições ao texto.

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