Por Mateus Santos (*)
Este texto não começa nos EUA, mas na França. Após a I Guerra Mundial, segundo René Rémond, uma concepção que se tornou um tanto comum entre alguns estudiosos daquele período se deu no desenvolvimento da relação entre as eleições e o chamado “espírito público”. O movimento das urnas apontaria para o movimento das ideias e das tendências políticas, podendo ser considerado enquanto um indicador possível sobre a temperatura política de uma determinada conjuntura.
Atravessando o Atlântico Norte, essa perspectiva, com validade parcial, traz aos Estados Unidos de 2021 um grande dilema. A eleição de Joe Biden diz respeito a algum tipo de alteração no ‘espírito público’ estadunidense? Não há dúvidas de que a saída de Trump da Casa Branca institucionalmente pode representar uma nova fase na política estadunidense. No entanto, no plano da luta social e política, da qual as cédulas e os resultados eleitorais não estão dissociados, a situação parece muito mais complexa.
Desafios de um Estados (Des)Unidos
As cenas de Trump rumo à Flórida pareciam partes finais de uma narrativa. No entanto, eis uma frase proferida pelo mesmo: “voltaremos de alguma forma”. Não surpreende a sinalização do interesse do ex-presidente em traçar seu retorno, ainda mais em meio às fissuras existentes no próprio partido Republicano. O que pode mais chamar atenção é exatamente o vazio representado pelo restante da frase. A crença de que é possível pensar num retorno sem explicitar uma via para a conquista desse objetivo, como aquela traçada ao longo de 2016, alimenta ainda mais as incertezas sobre o cenário interno estadunidense.
É comum ouvir que a maior tarefa de Biden será paradoxalmente unir os EUA. Um questionamento sobre isso me parece necessário: a que tipo de união esse tipo de análise se refere? Estaríamos falando de um país unido em meio às políticas de segregação racial ao longo dos séculos XIX e em boa parte do XX? Haveria união diante das arbitrariedades empreendidas contra determinados grupos migrantes em diversos momentos da História, a exemplo dos japoneses, dos latinos e dos muçulmanos?
Ainda que a premissa sobre a desunião não esteja incorreta, sua perspectiva não diz respeito necessariamente aos mais variados setores que compõem a sociedade estadunidense. Afinal, como aponta Leandro Karnal, não existem um ou dois Estados Unidos, mas dezenas. Nesse sentido, o tal desafio da união proposto à Biden seria reestabelecer uma espécie de Estado de Compromisso. A tarefa maior não é a de unir todas as pontas da sociedade estadunidense, mas garantir a confiança dos setores econômicos diante do agravamento da crise em decorrência da COVID-19 e da reação frente à situação internacional, pavimentando um terreno favorável à governança, além de fincar raízes para o desafio de recuperação do país.
Diante dos caminhos desenhados pela atual conjuntura, Biden possui talvez um trunfo e uma tarefa árdua. Um aspecto que lhe pode ser favorável são as disputas no interior do próprio Partido Republicano que, longe de estar numa era pós-Trump, vive um dilema entre sua maior vinculação ao trumpismo e a construção de alternativas. Apesar de ter uma maioria legislativa, as fissuras entre o partido de Trump poderão contrabalançar tanto as divergências dentre os
Democratas, quanto também ser uma das válvulas institucionais, mesmo que limitada, no embate direto contra o ex-presidente.
Por outro lado, o desafio social é imenso. Não é apenas a necessidade de um grande pacto coletivo para a resolução do problema mais imediato: a pandemia. O problema maior consiste em ter que, ao mesmo tempo, conter as ambições políticas dos mais diferentes setores que compõem o trumpismo, especialmente os mais reacionários, e também manter sob seu controle as aspirações do campo mais progressista da sociedade, expressas nos atos antirracistas do ano passado. Este último setor, em especial, é fundamental na manutenção da legitimidade social deste mandato. Porém, resta saber qual a capacidade de concessão do atual governo frente às suas demandas, na medida em que se torna evidente os limites programáticos de Biden e do establishment Democrata.
Ao Brasil, o que resta?
Já esboçamos uma crítica sobre o assunto, a partir de uma análise histórica, em outra edição desse mesmo jornal. Naquela ocasião, comentamos nossa divergência frente às opiniões que aproximavam o possível relacionamento entre Biden e Bolsonaro com a situação vivida na segunda metade dos anos 70, em meio aos governos Geisel e Jimmy Carter. Isso não significa sugerir uma inexistência de contradições ou mesmo pontuais desavenças entre os dois governantes da atualidade. Uma das primeiras medidas do governo Biden, no âmbito da política externa, foi o retorno dos EUA ao Acordo de Paris, além de um novo relacionamento com a OMS. Tais iniciativas denotam uma postura distinta em relação ao governo Trump quanto ao papel do multilateralismo, aspecto esse negligenciado pelo governo Bolsonaro.
No entanto, a mudança de governo e as expectativas sobre ela geradas no Brasil pedem algum tipo de cautela. Inegavelmente a derrota de Trump representa um revés importante para os grupos de extrema-direita no Brasil e ao próprio governo Bolsonaro. Porém, outros momentos na História, de transição entre governos Democratas e Republicanos, podem nos ajudar, senão a entender completamente o que ocorrerá nas relações Brasil – EUA, ao menos incentivar a formação de mais dúvidas do que certezas.
Um caso importante foi a mudança de governo entre Truman e Eisenhower, a partir das eleições de 1952. Após a Segunda Guerra Mundial, a Política Externa Brasileira foi caracterizada por um grande esforço de alinhamento com os EUA, no horizonte de constituição de um aliado privilegiado. Tal política culminou com a tendência de acompanhamento dos EUA nas questões de interesse multilateral, além do apoio a constituição TIAR e da OEA.
Esperava o Brasil conseguir apoio material estadunidense, especialmente num quadro de desequilíbrio econômico. O máximo atingido pelo governo Dutra foram as Comissões Brasil – Estados Unidos, também conhecida como Abbink-Bulhões, e uma nova Comissão, já no fim do mandato do presidente. Diante da prioridade na reconstrução da Europa e do Japão, a América Latina ocupara espaço secundário na política estadunidense, invertendo a lógica das relações econômicas com o continente, dando ênfase à penetração de capitais privados.
No governo Vargas, o quadro não mudou radicalmente. Ainda durante o mandato de Truman, os dois países deram seguimento aos trabalhos da Comissão Mista, além de ter assinado o polêmico Acordo Militar em 1952. As eleições daquele ano não trouxeram novos ares para as relações entre os dois países. Muito pelo contrário. A saída do Democrata Truman e a entrada do Republicano Eisenhower aprofundaram as dificuldades nas relações entre os dois países. Uma alteração do quadro só ocorreria após a Revolução Cubana e sua caminhada rumo ao socialismo.
A experiência em questão não serve para atribuir à História um componente cíclico. Antes de tudo, as conjunturas são distintas, assim como os principais sujeitos dessa narrativa. No entanto, como nos ensinou o historiador Gerson Moura, a compreensão da Política Externa se situa no complexo entre a análise da conjuntura e da estrutura e seus condicionamentos. Assim, do ponto de vista da situação brasileira no plano internacional, as mudanças no interior do centro hegemônico devem ser vistas com cautela por parte de um país capitalista dependente e no quadro de uma política exterior desastrosa. Trump saiu da Casa Branca para dar lugar à Biden, porém os EUA continuam sendo os EUA e o Brasil ainda é o Brasil dependente e subserviente nas mãos de Bolsonaro em meio ao jogo de forças no interior do sistema internacional.
(*) Mateus Santos é historiador e militante do PT Bahia