A pandemia e o Brasil

Por Ricardo Fernandes de Menezes (*)

Cemitério público de Manaus. Foto: Altemar Alcantara.Semcom

Em 31 de dezembro de 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) foi informada de um surto de pneumonia de causa desconhecida detectado na cidade de Wuhan, capital da Província de Hubei na China, a sétima maior cidade do país. Os primeiros indivíduos infectados, alguns dos quais apresentaram sintomas já em 8 de dezembro, foram descobertos entre trabalhadores do Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Huanan. De 31 de dezembro de 2019 a 3 de janeiro de 2020, um total de 44 pacientes com pneumonia de etiologia desconhecida foram notificados à OMS pelas autoridades nacionais chinesas, seguindo o agente causal sem identificação.

O vírus causador do surto foi isolado em 7 de janeiro e rapidamente determinou-se, em 10 de janeiro, seu sequenciamento genético que evidenciou tratar-se de vírus da classe dos coronavírus, ou seja, o 2019-nCoV, depois denominado Sars-CoV-2. A China compartilhou o sequenciamento genético do 2019-nCoV, em 12 de janeiro, para que os países pudessem desenvolver testes diagnósticos específicos. Em 20 de janeiro de 2020, a Comissão Nacional de Saúde da China (NHC) confirmou que o novo coronavírus pode ser transmitido entre humanos.

Viajantes infectados foram responsáveis pela introdução do vírus para além de Wuhan, tanto no interior do país quanto fora da China.

Na tentativa de mitigar a transmissão dentro da China, estratégias de controle de surtos sem precedentes foram implementadas inicialmente em três cidades, verificando-se em Wuhan a suspensão de todas as viagens aéreas e os transportes públicos, dentro e para fora da cidade, colocando-se em 23 de janeiro de 2020 sob quarentena, que duraria até 8 de abril de 2020 (76 dias), os seus 11 milhões de habitantes. Como Wuhan é um importante centro de transporte aéreo situado na região central do país, várias medidas foram tomadas em escala global para mitigar a disseminação internacional.

Ao longo do mês de janeiro, enquanto autoridades sanitárias tomavam medidas buscando proteger a população com o conhecimento então disponível, pesquisadores agiam para esmiuçar o conhecimento científico acerca das características e do comportamento no ambiente do vírus recém identificado, a fim de embasar intervenções eficazes na realidade sanitária. No dia 30 de janeiro de 2020, ao declarar que o advento do novo coronavírus e suas consequências constituía-se em uma emergência de saúde pública de importância internacional, a OMS informou que, até aquele momento, haviam sido confirmados 7.818 casos pelo mundo, sendo 7.736 na China, existindo ainda 12.167 casos notificados pelos chineses em investigação, 1.370 pacientes em estado grave e 170 era o total de óbitos devido a infecção. Fora da China, havia 82 casos confirmados da doença em 18 países, sem qualquer óbito registrado. Esse grupo de países e territórios com casos confirmados da doença, já no dia seguinte à declaração de emergência, passou a ser assim composto segundo continentes:

a) Ásia: China, Tailândia, Japão, Coreia do Sul, Vietnã, Camboja, Índia, Filipinas, Singapura, Malásia, Sri Lanka, Nepal, Emirados Árabes, Hong Kong, Macau e Taiwan;

b) Europa: França, Alemanha, Reino Unido, Itália, Finlândia e Suécia;

c) Europa e Ásia: Rússia;

d) América: Estados Unidos da América (EUA) e Canadá;

e) Oceania: Austrália.

Em face de suas dimensões tratava-se de um acontecimento que, o seu desenrolar viria a demonstrar, nos remetia ao fenômeno sanitariamente trágico que se constituiu a Gripe Espanhola no biênio 1918-1919, agravado pela profunda interconecção entre populações de todos os quadrantes do mundo contemporâneo.

Exposta a eclosão da epidemia de covid-19 na China e sua rápida progressão geográfica no mês de janeiro de 2020, bem como providências adotadas pela Organização Mundial de Saúde e internalizadas pelos Estados nacionais, é relevante destacar aspectos inusitados desse acontecimento sanitário global.

O agente etiológico – vírus da classe do coronavírus (Sars-CoV-2) –, desconhecido até então, caracteriza-se por alta transmissibilidade, afeta mais determinados grupos populacionais e apresenta uma complexa interferência fisiopatológica no organismo humano, cursando também em casos documentados com comprometimento sistêmico e quadro clínico respiratório grave, como aqueles determinados pelo coronavírus (Sars-CoV) que causa a Síndrome Respiratória Aguda Grave identificada na China em 2002 e pelo coronavírus (Mers-CoV) que causa a Síndrome Respiratória do Oriente Médico identificada na Arábia Saudita em 2012. Até dezembro de 2020 não haviam recursos farmacológicos específicos – medicamentos – para conter a infecção pelo Sars-CoV-2, porém produtos imunizantes – vacinas – contra a covid-19 começavam a obter autorização de órgãos sanitários regulatórios nacionais de diversos países para serem aplicados em massa na população, existindo hoje quinze produtos imunizantes que se encontram no término ou já finalizaram a pesquisa clínica.

A manifestação ou não de sintomatologia da doença nas pessoas infectadas, particularmente no início da epidemia de covid-19, dificultou as ações de controle da transmissão e do espalhamento do vírus Sars-CoV-2. Nesse sentido, pesquisa realizada por cientistas da China, Reino Unido e Estados Unidos da América, de 10 de janeiro a 23 de janeiro e de 24 de janeiro a 8 de fevereiro de 2020 em 375 cidades chinesas, publicada na revista Science no mês de março do mesmo ano, demonstrou que a restrição de circulação é fundamental porque, em meio a pandemia, há um grande número de pessoas infectadas que apresentam sintomas leves e inespecíficos ou são assintomáticas, as quais, ao se deslocarem dentro de um país, respondem majoritariamente pela transmissão do vírus Sars-CoV-2.

Na pesquisa referida acima, cujo título é Substantial undocumented infection facilitates the rapid dissemination of novel coronavirus (Sars-CoV-2), verificou-se:

a) estimativa de que 86% de todas as infecções não foram documentadas antes das restrições de viagens determinadas em 23 de janeiro de 2020 em Wuhan. A taxa de transmissão de infecções não documentadas por pessoa foi de 55% da taxa de transmissão de infecções documentadas e, ainda, devido ao seu maior número, as infecções não documentadas foram a fonte de 79% dos casos de covid-19 documentados. Essas descobertas explicam a rápida disseminação geográfica do Sars-CoV-2 e indicam que a contenção desse vírus é desafiadora.

Esse achado – 86% de infecções não foram documentadas – foi corroborado independentemente pela taxa de infecção observada entre cidadãos estrangeiros evacuados de Wuhan no início de 2020;

b) descobriu-se que, sem transmissão pelos casos não documentados, as infecções relatadas entre 10 e 23 de janeiro de 2020 seriam reduzidas em 78,8% em toda a China e em 66,1% em Wuhan;

c) foi modelado também a transmissão do covid-19 na China após 23 de janeiro, quando medidas de maior controle foram efetuadas pelo governo chinês. Essas medidas de controle incluíram restrições de viagens impostas entre as principais cidades e Wuhan, autoquarentena e precauções de contato, bem como testes mais rápidos disponíveis para confirmação de infecção. Tais medidas, juntamente com mudanças no comportamento no sentido de busca de cuidados médicos devido à maior conscientização sobre o vírus e à maior compreensão sobre a importância da proteção pessoal (por exemplo, uso de máscaras faciais, distanciamento social e autoisolamento da pessoa doente), provavelmente alteraram as características epidemiológicas do surto após 23 de janeiro de 2020.

Estudos realizados no início da epidemia de covid-19 na China constataram que pessoas com mais de 59 anos têm cinco vezes mais chances de morrer do que aquelas entre 30 e 59 anos. E aqueles com menos de 30 anos têm menos probabilidade de morrer do que esse grupo mediano. Além disso, verificaram que o número de mortes depende principalmente da gravidade dos sintomas desenvolvidos por uma pessoa infectada.

No mesmo período, estudos realizados em diversos países demonstraram que, apesar dos riscos serem maiores entre os idosos, a covid-19 pode ser agressiva e fatal para todas as faixas etárias, constatando-se também que pessoas com comorbidades, especialmente doenças cardíacas, diabetes mellitus, hipertensão arterial, doenças pulmonares, asma e câncer, tem mais chance de adoecer e morrer. Ressalte-se: o fato de ter uma ou mais dessas condições crônicas aumenta o risco de uma pessoa apresentar sintomas graves independente do que poderia se prever para a sua faixa etária.

O espalhamento do Sars-CoV-2 na Ásia, Europa, América, Oceania e África

 O espalhamento do Sars-CoV-2 prosseguiu, confirmando-se casos de covid-19 em todos os países e territórios da Ásia, Europa, América, Oceania e África. A partir do primeiro trimestre de 2020 em função de características do vírus anteriormente abordadas, do percentual elevadíssimo de pessoas infectadas pelo Sars-CoV-2 que apresentam sintomas leves e inespecíficos ou são assintomáticas, da ausência de recursos farmacológicos específicos – medicamentos e, na ocasião, também de vacinas –, consolidou-se mundialmente a combinação – parcial ou total – de categorias de intervenção do Estado na realidade sanitária, recomendadas pela OMS, a saber:

a) conscientização da população sobre práticas de prevenção e precauções de contato, ao lado da busca de atendimento clínico na presença de sintomas;

b) isolamento imediato de pessoas com quadro clínico suspeito de covid-19, realização de teste diagnóstico e rastreamento de contatos ou comunicantes de pacientes confirmados para providenciar o seu isolamento e submetê-los a testagem diagnóstica;

c) notificação ao poder público de casos suspeitos e confirmados de covid-19;

d) restrição de circulação – incluem-se sob essa denominação as medidas destinadas a redução da interação social designadas distanciamento social, isolamento social, quarentena e lockdown – concretizada pela imposição pela autoridade pública de progressivo incremento do nível de restrição de circulação de pessoas, de automóveis e de transporte público rodoviário e aéreo, bem como pelo fechamento de estabelecimentos cujas atividades são consideradas não essenciais à conciliação do imperativo de conter a propagação da doença com a preservação do que é de fato indispensável à sobrevivência, à saúde ou segurança da população.

Essa categoria denomina-se intervenções não farmacológicas (INF);

e) organização da rede de serviços de saúde, incluso os de internação geral e de cuidados intensivos.

Neste contexto a restrição de circulação assume papel nuclear no enfrentamento da pandemia de covid-19, a fim de reduzir o contágio, inibir a transmissão e desacelerar o espalhamento do Sars-CoV-2, tendo países que a adotaram, ao lado da adoção de arrojadas medidas de vigilância epidemiológica, obtido êxito no controle da pandemia, porém à sua concretização, desde o início da crise sanitária mundial, se opuseram – e continuam se opondo – raríssimos dirigentes nacionais, como o presidente do Brasil e seu governo.

Essa medida, que países com as mais diversas conformações econômicas, sociais, políticas e culturais lançaram mão – e continuam lançando –, revela o empenho de governantes e de autoridades sanitárias nacionais na busca da diminuição e postergamento do pico de ocorrência de casos, da redução da demanda instantânea por cuidados de saúde, prevenindo-se assim o colapso dos sistemas de saúde, e da mitigação das consequências da doença sobre a saúde das populações, incluindo a minimização do número de casos confirmados e de óbitos por covid-19.

Em síntese, podemos afirmar que deriva da articulação de três dimensões a adequação do enfrentamento da pandemia de covid-19 pelos Estados nacionais: a presta e unívoca resposta dos comandos dos Estados nacionais à emergência sanitária internacional; a combinação das categorias de intervenção do Estado na realidade sanitária, necessariamente tendo como pilar a potência das ações e controles epidemiológicos, a adoção ao seu tempo de medidas de restrição de circulação coordenadas nacionalmente, a conscientização da população sobre práticas de prevenção e precauções de contato e o efetivo envolvimento do conjunto de unidades componentes da rede de serviços de saúde do país no processo; e, por fim, um permanente leque de políticas sociais destinadas a garantir que os indivíduos e as pequenas empresas, em função de desigualdades tanto de acesso aos serviços de saúde quanto socioeconômicas, possam participar do esforço sanitário nacional.

Durante um ano de pandemia de covid-19, independente das especificidades socioeconômicas, políticas e culturais dos países, registram-se diversas experiências ousadas e criativas no seu enfrentamento, como, a título de exemplos, as da China, Vietnã, Coreia do Sul, Nova Zelândia, Uruguai e Cuba, entre outras.

A pandemia de covid-19 no Brasil

No Brasil, ao longo do mês de janeiro de 2020 foram relatados casos suspeitos ao Ministério da Saúde (MS), todos descartados depois de investigações realizadas em articulação com autoridades sanitárias estaduais e municipais.

O Ministério da Saúde, por meio da Portaria MS nº 188, de 3 de fevereiro de 2020, declarou emergência em saúde pública de importância nacional (ESPIN) em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus e a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, dispôs sobre medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente da covid-19. Secundando a OMS, que declarou estado de pandemia para a doença covid-19 em 11 de março, o Senado Federal aprovou o Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, que reconheceu a ocorrência do estado de calamidade pública no Brasil em face da emergência de saúde pública de importância internacional relacionada à covid-19.

O primeiro caso confirmado da doença covid-19 no país ocorreu na cidade de São Paulo, sendo notificado à autoridade sanitária em 26 de fevereiro de 2020, tratando-se de um homem de 61 anos, empresário, com histórico de viagem à Itália, na região da Lombardia, diagnosticado em um hospital privado e cujo quadro clínico evoluiu para a cura. Posteriormente, em 12 de março, registrou-se a primeira vítima fatal da covid-19 no Brasil – mulher de 57 anos, diarista, residente em conjunto habitacional no bairro Cidade Tiradentes, cuja mãe e duas irmãs também viriam a falecer em decorrência da covid-19 –, que havia sido internada no Hospital Municipal do Tatuapé localizado em São Paulo. A informação sobre esse óbito somente foi divulgada no final de junho de 2020 após o Ministério da Saúde atualizar dados do Sistema de Vigilância Epidemiológica da Gripe (SIVEP-Gripe), que é o sistema oficial brasileiro de registro de hospitalizações e óbitos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG).

Estudo abrangente realizado pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (CEPEDISA/FSP/USP) e pela entidade Conectas Direitos Humanos, fruto de parceria que se estendeu durante o ano de 2020 até janeiro de 2021, publicado no Boletim n. 10 – Direitos na Pandemia – Mapeamento e Análise das Normas Jurídicas de Resposta à Covid-19 no Brasil, em 20 de janeiro de 2021, contém a análise de 3.049 normas relativas à covid-19 no âmbito da União, acervo normativo que resulta do embate entre a estratégia de propagação do vírus conduzida de forma sistemática pelo governo federal e as tentativas de resistência dos demais Poderes, dos entes federativos, de instituições independentes e da sociedade, afirmam os editores do boletim.

No âmbito federal, mais do que a ausência de enfoque de direitos, a pesquisa revela a existência de uma estratégia institucional de propagação do vírus, promovida pelo governo brasileiro sob a liderança da Presidência da República. Na linha do tempo – 1º de março de 2020 a 16 de janeiro de 2021 – três eixos são expostos:

a) atos normativos da União, incluindo a edição de normas por autoridades e órgãos federais e vetos presidenciais;

b) atos de obstrução às respostas dos governos estaduais e municipais à pandemia; e

c) propaganda contra a saúde pública, definida como discurso político que mobiliza argumentos econômicos, ideológicos e morais, além de notícias falsas e informações técnicas sem comprovação científica, com o propósito de desacreditar as autoridades sanitárias, enfraquecer a adesão popular às recomendações de saúde baseadas em evidências científicas, e promover o ativismo político contra as medidas de saúde pública necessárias para conter o avanço da covid-19 (Boletim n. 10 – Direitos na Pandemia).

Em síntese afirmam os pesquisadores:

Esperamos que esta linha do tempo ofereça uma visão de conjunto do processo que vivemos de forma fragmentada e muitas vezes confusa. Os resultados afastam a persistente interpretação de que haveria incompetência e negligência da parte do governo federal na gestão da pandemia. Bem ao contrário, a sistematização dos dados, ainda que incompletos em razão da falta de espaço para tantos eventos, revela o empenho e eficiência da atuação da União em prol da ampla disseminação do vírus no território nacional, declaradamente com o objetivo de retornar a atividade econômica o mais rápido possível e a qualquer custo.

Oportuno enfatizar que, nos meses de janeiro a março de 2020, assistiu-se o avanço do enfrentamento da pandemia de covid-19 em inúmeros países e regiões do mundo, o que já apontava para a urgência da agilização de providências internas no Brasil, que fossem precoces e suficientes. Nesse trimestre o governo federal teve tempo para preparar o país.

Em primeiro lugar, a ausência de uma coordenação nacional unívoca e disposta ao combate da covid-19 foi fator determinante do envolvimento aquém do possível da estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS) – unidades de vigilância epidemiológica e sanitária, atenção básica, ambulatorial especializada e hospitalar –, que é dotada de capilaridade no território nacional, a qual pode garantir maior integração sanitária – entre serviços de dimensão coletiva e os de dimensão individual – e melhor articulação dos serviços assistenciais na operacionalização das categorias de intervenção do Estado na realidade sanitária acima apontadas.

Em que pese o subfinanciamento histórico, aprofundado pela Emenda Constitucional nº 95/2016, no SUS a ciência, o conhecimento sanitário secular e os múltiplos recursos tecnológicos à disposição no mundo contemporâneo, num primeiro momento, deveriam – e ainda devem – orientar a imediata adoção de medidas de abrangência nacional que visem diminuir o contágio e a transmissão do vírus Sars-CoV-2, medidas essas constitutivas de dada tradição sanitária – fenômeno dotado de historicidade – que, no Brasil, foi sendo forjada ao longo do tempo.

Em segundo lugar, a ausência de uma coordenação nacional unívoca e disposta ao combate da covid-19 fez perder-se, no trimestre janeiro-março de 2020, a oportunidade de tomar iniciativas, ao seu tempo, tanto no mercado produtor interno quanto no externo, para planejar e prover o país de maiores quantidades de equipamentos de proteção individual (EPI) para os trabalhadores do SUS, testes diagnósticos e respiradores pulmonares suficientes para a Rede do SUS, pois os centros mundiais produtores desses produtos ainda não estavam sobrecarregados, bem como estimular a reconversão interna de plantas industriais para a produção destes itens.

Conforme mencionado a restrição de circulação é ferramenta nuclear no combate ao espalhamento do Sars-CoV-2, tendo se revelado vital naqueles países que conseguiram conter o aumento do número de casos novos e manter baixas taxas de mortalidade ou que tenham superado quadros sanitários dramáticos e estabilizado a incidência de novos casos e suas taxas de mortalidade por covid-19.

No Brasil, dada a ausência de uma coordenação nacional unívoca e disposta ao combate da covid-19, no início da primeira onda da doença no país, a restrição de circulação foi adotada de modo isolado por Estados da Federação e Distrito Federal, iniciando-se no dia 13 de março até que no dia 24 de março de 2020 todas as 27 unidades federativas haviam decretado isolamento social importante, porém insuficiente. Em função da franca oposição do governo federal à adoção da medida, não ocorreu prévia definição de critérios nacionais que dosasse a necessidade de aumento da restrição à medida que fosse ocorrendo aumento do número de casos e de óbitos.  Nesse mês o presidente da República manifestou-se várias vezes minimizando a gravidade da pandemia de covid-19.

O isolamento social adotado por governadores e prefeitos foi precoce considerando que o primeiro caso da doença no país foi notificado no dia 26 de fevereiro de 2020. Contudo, o alheamento do governo federal fez com que se perdesse essa vantagem operacional no processo de enfrentamento da covid-19. Isso porque não havia – e continua não havendo – coordenação nacional que suprisse, ao seu tempo, estados, Distrito Federal e municípios com insumos e equipamentos necessários, bem como colaborasse mais proximamente com a organização das redes do SUS. Nos meses subsequentes, em face da detecção de quadros sanitários trágicos em São Luis, Fortaleza, João Pessoa, Recife e Belém, capitais do Maranhão, Ceará, Paraíba, Pernambuco e Pará, e em outras cidades do Maranhão e do Pará, governadores e prefeitos adotaram restrição de circulação total (lockdown), a fim de conter o crescimento do número de casos novos, reduzir os óbitos por covid-19 e manter funcionando adequadamente o sistema de saúde.

No Brasil a pandemia passou por um pico nos meses de julho a setembro e posteriormente apresentou queda no número de casos novos por semana. A situação se complicou nas últimas semanas, desde começo de novembro, com o início de uma segunda onda de crescimento de casos de covid-19. Observado em outros países, trata-se de um cenário que se explica por sistemática queda dos níveis de isolamento social, ausência de campanhas de esclarecimento público, uma ilusória sensação de segurança em relação à doença espraiada no seio da população e, no nosso caso, a ausência de uma coordenação nacional unívoca e disposta ao combate da covid-19. É particularmente preocupante o que se passa atualmente no Brasil.

Ao encerrar este artigo, no país verificam-se 9.058.637 de casos confirmados – segundo estudos aqui realizados expressa algo em torno de 6 a 7 vezes menos do que o número real de casos existentes –, constituindo-se no terceiro maior número de casos global, ao lado do registro do segundo maior número de óbitos do planeta, 221.547, o que representa 10,1% do total de óbitos informados.

O governo federal continua mantendo postura negacionista em relação a gravidade da pandemia, a vacina ainda não ocorre de forma coordenada e organizada no país, persiste a renúncia quanto às suas atribuições e aos seus deveres de coordenar nacionalmente o Sistema Único de Saúde e – não há como negar –, a partir de novembro de 2020 a situação se deteriorou fortemente com a segunda onda de crescimento de casos e de óbitos, com a detecção de variante do vírus extremamente transmissível em nosso meio, com colapsos de sistemas de saúde locais, como os trágicos acontecimentos – pacientes morreram sufocados por falta de oxigênio em hospitais –, que se verificaram em Manaus e outras cidades do Estado de Amazonas, bem o demonstraram.

Tais ocorrências não são uma fatalidade, unicamente atribuível à disseminação do vírus Sars-CoV-2 entre nós, ao contrário. Deriva das escolhas políticas feitas pelo atual governo federal e pelos que se aliam a ele, enfim, pela classe dominante que o sustenta.

Enquanto noutros países já começou a vacinação e seus dirigentes vem aprofundando as medidas de restrição de circulação visando diminuir a transmissão de novas variantes do vírus Sars-CoV-2 caracterizadas por maior transmissibilidade, aqui no Brasil o governo federal é um vetor de proposital desorganização hipotecando, inclusive, o maior trunfo brasileiro diante da emergência sanitária: a prática de um federalismo cooperativo e solidário.

Ou seja, o governo federal patrocina o enfrentamento da covid-19 abdicando da coordenação nacional do processo e induzindo cada ente federado a adotar a política que julga ser mais adequada. Rigorosamente, esse é o pior dos cenários em um país com extensa área territorial e regionalmente heterogêneo nos planos econômico, social, demográfico e da infraestrutura sanitária.

Por fim, 15 vacinas contra covid-19 já foram apresentadas à Organização Mundial de Saúde e prevê-se que em breve mais duas vacinas sejam apresentadas ao fim da pesquisa clínica.

Nos dias de hoje, necessariamente, o enfrentamento da covid-19 no Brasil passa pela vacinação de 160 milhões de pessoas que podem ser vacinados, excetuando-se pessoas menores de 18 anos e gestantes, uma vez a que as vacinas contra covid-19 à disposição não incluíram esses grupos populacionais nos seus procedimentos de efetuação das pesquisas clínicas.

Também, nos dias de hoje, a população brasileira poderá enxergar luzes no final do túnel, caso sejam vacinadas 160 milhões de pessoas e o governo federal coordene nacionalmente sofisticadas medidas de restrição de circulação, por um período de tempo, e efetue campanhas massivas e competentes de esclarecimento da população.

Este governo federal é capaz de responsabilizar pela organização do começo do nosso novo futuro?

(*) Ricardo Fernandes de Menezes é médico sanitarista. Estado de São Paulo. rfdmenezes@uol.com.br

Fontes:
  1. Boletim n. 10 – Direitos na Pandemia – Mapeamento e Análise das Normas Jurídicas de Resposta à Covid-19 no Brasil. São Paulo, 20 de janeiro de 2021. Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e entidade Conectas Direitos Humanos.
  2. Soares A, Menezes, RF. Coronavírus no Brasil: a marcha da insensatez. [Internet 10 ago 2020]. Disponível em https://www.diplomatique.org.br/coronavirus-no-brasil-a-marcha-da-insensatez/. Acesso em: 10 jan 2020.

(**) Textos assinados não refletem, necessariamente, a opinião da tendência Articulação de Esquerda ou do Página 13.

 

 

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