Por Marcos André Jakoby [1]
Este artigo, com pequenas adaptações, foi publicado em 2011, por ocasião de um simpósio acadêmico, quando rememorava-se os 50 anos da Campanha da Legalidade. No último dia 25, completaram-se mais 10 anos daqueles 13 dias que sacudiram o Rio Grande do Sul. Creio que o texto ainda apresente elementos válidos para interpretar aqueles acontecimentos históricos, principalmente do ponto de vista da classe trabalhadora e sob a perspectiva da História Social do Trabalho.
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Este texto pretende realizar uma análise do movimento Resistência Democrática, que se desenvolveu em Porto Alegre -RS em 1961, em prol da posse de João Goulart como presidente da República, por ocasião da renúncia de Jânio Quadros. A intenção é demonstrar a relevância e o papel desempenhado pelos trabalhadores através de sua organização e mobilização para o desfecho daquela crise política, cuja memória acerca é mais comumente associada à Campanha da Legalidade e ao então governador Leonel Brizola, como elementos ativos na resolução do impasse, enquanto à mobilização sindical e popular é reservado uma posição subordinada.
Busca-se sublinhar que estes setores não precisaram do sinal e da iniciativa das lideranças oficiais para se engajarem na resistência. Por fim, procura-se evidenciar que a interpretação histórica aqui analisada, acerca do processo social e político que contribuiu para levar João Goulart à presidência da República, está vinculado ao paradigma clássico de explicação do populismo brasileiro.
1. Introdução – A necessidade de uma abordagem complementar e crítica
Em 2011 completaram-se 50 anos de uma experiência de enorme significado para grandes parcelas da sociedade brasileira. Experiência cuja participação dos trabalhadores foi fundamental para que a jornada em questão se tornasse parcialmente vitoriosa. Ademais, trata-se de uma experiência que revela o quanto historicamente são ocasionais os compromissos das classes dominantes do Brasil com a democracia.
Estamos nos referindo ao processo social e político que garantiu a posse de João Goulart em 1961 como presidente da República, por ocasião da renúncia de Jânio Quadros. Naquele momento, “Jango” se encontrava em uma missão na China e houve um movimento de lideranças políticas e ministros das Forças Armadas para que o vice-presidente não assumisse a presidência. A mobilização pela posse de João Goulart ficaria mais conhecida como Campanha da Legalidade e contava com vários atores sociais e políticos, que tiveram atuação em diversos terrenos.
Quando se aborda o tema, tende-se a atribuir um grande peso às atitudes e gestos do então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. Em si, isto não é problema. Acontece que paralelamente há um movimento de análise que secundariza a importância da mobilização popular e sindical, que incidiram naquela empreitada, inclusive nas posições de Brizola. A intenção deste artigo é demonstrar o quanto foi crucial a participação e a mobilização dos trabalhadores e de outros setores populares para o desfecho daquela crise política.
2. A iniciativa dos trabalhadores na Campanha da Legalidade
Para ilustrar – e evidenciar – o que queremos afirmar, recorremos ao relato de alguns dos momentos daquela jornada histórica. No dia 26 de agosto de 1961 estava prevista a instalação do governo federal por uma semana em Porto Alegre. A transferência do governo federal por alguns dias era entendido pelo então presidente como um gesto de aproximação com os estados. Desta maneira, na capital gaúcha preparavam-se várias atividades em que se presumia a presença do presidente da República. Porém, no dia 25 de agosto durante as solenidades que aconteciam na manhã daquela data, em homenagem ao Dia do Soldado, o governador do Estado é informado sobre o afastamento de Jânio Quadros. Brizola, num primeiro momento cogitou a possibilidade de se tratar de um golpe. Depois passaria as próximas horas do dia buscando informações sobre os acontecimentos e tomando conhecimento do posicionamento de várias autoridades, sobretudo as dos militares.
Todavia, a direção regional do Partido Comunista reuniu-se no meio da tarde para discutir a situação e igualmente planejar sua ação. Assim, “concluída a reunião, a direção do Partido decidiu organizar uma manifestação e chamar uma greve geral para o dia seguinte (SANTOS, 2002:173)”. Já no final desta tarde, sob a direção do Comando Sindical de Porto Alegre, realizou-se “uma manifestação com mais de 5 mil trabalhadores e estudantes no Largo da Prefeitura de Porto Alegre. Depois de selar o compromisso de, doravante, se constituir uma ‘unidade operária e estudantil’, os manifestantes rumaram para o Palácio Piratini” (SANTOS, 2002:173), onde a manifestação exigia a posse do vice-presidente. Foi diante desta manifestação que Brizola declarou sua disposição em resistir em defesa da legalidade constitucional. Sobre a tomada dessa posição, Santos afirma que
Ao saber que o III Exército estava dividido, ao perceber o apoio generalizado dos parlamentares gaúchos e, por último, ao constatar a rápida manifestação das lideranças sindicais e populares em defesa da Constituição, Leonel Brizola viu não apenas uma possibilidade para deflagrar um movimento em favor da legalidade constitucional, mas uma verdadeira oportunidade para tornar-se uma liderança de projeção nacional e extrair dividendos para o Rio Grande do Sul. (SANTOS, 2002:174)
Dirigentes sindicais da época argumentam o papel importante assumido pelas mobilizações populares no desencadeamento do movimento de defesa da posse de Jango. Segundo Ony Nogueira, dirigente do Sindicato dos Consertadores de Carga e Descarga, militante do PTB e que atuou como repórter sindical, a pressão e a mobilização dos trabalhadores foram fundamentais para que o governador do Estado tomasse tal posição, isto é, a disposição do movimento sindical em resistir ao golpe antecedeu a decisão de Brizola:
De uma certa forma, Leonel Brizola foi forçado a tomar aquela decisão, ou ficaria para trás, ficaria no vagão de trás. Quando se fala em exigências é para que se dê condições ao governo para que ele faça. Sem exigências, qualquer providencia que o governo tome vira uma iniciativa própria e exclusiva dele, que nem sempre vai representar a vontade do povo. Quando se vive momentos como esses, em que se diz: – Governador, nós, trabalhadores, estamos exigindo providências tais, aí a coisa é diferente.[2]
O historiador Jorge Ferreira também faz referência ao episódio, porém em seguida sugere que a movimentação que envolveu amplos setores da sociedade gaúcha, em defesa da posse de Jango, tenha se iniciado com uma convocação de Brizola:
Ao final da tarde do mesmo dia, as primeiras manifestações de rua surgiram em Porto Alegre. Milhares de pessoas protestaram na Praça da Matriz contra o golpe, outras, a favor de Jânio e a maioria defendeu a posse de Goulart. Com o apoio de alguns coronéis e generais alocados em postos-chaves no estado do Rio Grande do Sul e o protesto popular, o governador deu início ao movimento conhecido como Campanha da Legalidade.[…] Os clamores de Brizola para que a população reagisse e defendesse a posse de Goulart encontraram imediata adesão e entusiasmo (FERREIRA, 1997:06).
No dia 26 de agosto, o Comando Sindical de Porto Alegre e o Conselho Sindical dos Trabalhadores Gaúchos reúnem-se com o propósito de construir sua estratégia de ação. A proposta dos comunistas de realizar uma greve geral tinha uma relativa força no movimento sindical, de tal modo que essa possibilidade fica patente em uma das manchetes do jornal Última Hora de 26 de agosto, a qual intitulava-se “Trabalhadores ameaçam deflagrar greve geral!”.
Porém, a proposta comunista é derrotada. Ony Nogueira, petebista, alega que “a maioria estava pronta para guerrear, se tivesse uma greve nós não teríamos como guerrear”. Desta maneira, resolve-se organizar um Comando Sindical Unificado, cujo presidente foi José César de Mesquita, à época presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Porto Alegre e vereador na capital pelo PTB.
Outra deliberação da plenária sindical foi colocar em prática uma proposta que já circulava no dia anterior, entre alguns sindicalistas: a formação de Comitês de Resistência Democrática. Estes comitês teriam como objetivo o “recrutamento de voluntários a serem utilizados em quaisquer eventualidades. […] O comitê, além disso, realiza passeatas; organiza comícios e palestras; confecciona cartazes alusivos ao movimento, e conta com um serviço de coleta de fundo para a resistência” [3]. O alistamento nos Comitê de Resistência Democrática mobilizava milhares de pessoas; e, enquanto o Palácio Piratini era cercado com arames farpados e soldados da Brigada Militar, além de outras iniciativas de caráter militar, do outro lado
da trincheira, já funcionava, a pleno vapor, a organização do primeiro Comitê da Resistência Democrática. De imediato, formaram-se filas de homens e mulheres para alistarem-se como voluntários da força reserva da Brigada Militar. João Amazonas, que achava-se em ‘exílio partidário’ no Rio Grande do Sul, juntamente com outros líderes e dirigentes sindicais do Partido Comunista, tornaram-se os mais dinâmicos organizadores do Comitê de Resistência. Nos primeiros dias de funcionamento do Comitê da Resistência Democrática já havia mais de 30 mil pessoas alistadas. Para distribuir as tarefas em preparação a um possível combate, o Comitê da Resistência Democrática formou comissões para tratar da arrecadação de alimentos e dinheiro, divulgação, saúde, armamentos, etc (SANTOS, 2020:178).
A mobilização em defesa da legalidade democrática atingiu diversos setores da sociedade e do estado. Nesse sentido, no mesmo dia, na Câmara de Vereadores, em sessão extraordinária, José César de Mesquita e Marino dos Santos, este, vereador comunista eleito pela legenda do PR, eram as principais vozes naquele parlamento que afirmavam a disposição e a necessidade dos trabalhadores se organizarem na defesa da posse de Jango.
Buscavam, igualmente, tornar o mais público possível e repercutir ao máximo a decisão das organizações populares e sindicais em resistir, e acentuavam a necessidade dos trabalhadores envolverem-se. Marino dos Santos fez uma intervenção onde salientava o significado dessa defesa e conclamava aos trabalhadores para que paralisarem suas atividades:
Daqui desta tribuna ao fazer o meu pronunciamento eu conclamo a todos os trabalhadores que se organizem, que vão para as suas fábricas explicar a seus colegas que o que está se golpeando é o direito de viver decentemente no Brasil; que o que está se golpeando é o direito de os brasileiros sonharem com um futuro melhor; que o que está se golpeando é o direito de uma Nação livre e soberana que tenha cabeça erguida no concerto das nações. Basta que se organize o proletariado, que feche e que cruze os braços não dando a esses fascistas que desde a batina até o quepi, desde o pão que comem até o teto que os abriga, é criado pelo trabalho do povo brasileiro, é criado pelo trabalho e pelo suor dos agricultores, a quem eles negam o direito de auto-determinação. Pois que parem de trabalhar, que não dêm um grão de trigo, uma hora de trabalho, num regime que não seja de liberdade e de direitos do cidadão gozar das garantias da Constituição.[4]
Mesquita, do PTB, igualmente, assinalava a disposição dos trabalhadores para a resistência: “os trabalhadores já tomaram posição, colocando-se ao lado do Sr. Governador em toda situação de emergência e continuar em vigília até mesmo que seja em sessão permanente dia e noite, até que a situação se tenha definido”[5]. No dia anterior, a Câmara de Vereadores já havia aprovado uma nota, cuja redação foi dada por uma comissão integrada, entre outros, por Marino dos Santos, na qual se afirmava que “com a responsabilidade que tem e deseja honrar, mais do que nunca, declara-se pela manutenção, a qualquer preço, da Constituição e das franquias democráticas que dela emanam” [6].
No domingo, dia 27 de agosto, Leonel Brizola requisitava a Rádio Guaíba e instaurava a Cadeia da Legalidade de onde comandaria o movimento em defesa da posso de Jango, utilizando a cadeia formada por várias rádios para fazer seus pronunciamentos. Essa medida foi tão promissora que no golpe de 1964 umas das primeiras iniciativas do governador Ildo Meneguetti foi requisitar as rádios para que não houvesse hipótese de serem usadas na resistência.
Ao mesmo tempo, em que Brizola instalava a Cadeia da Legalidade, já desfilavam em frete ao Palácio Piratini os batalhões operários. “Os tranviários foram os primeiros: em colunas e com o seu fardamento parecido com os de soldados, marchavam e faziam exercício de ordem unida, estimulando, nos que assistiam, a coragem para resistir” [7]. Porém, não foram somente os trabalhadores que se organizaram. Estudantes, intelectuais e artistas também se envolveram nas atividades em prol da posse de João Goulart. Aliás, essa posição era comum a amplos setores da sociedade gaúcha, tornando-se uma posição hegemônica como, muito bem, salienta Santos:
Nas principais cidades, os comunistas foram os mais dinâmicos e ativos na frente da organização dos comitês da resistência democrática. Porém, a organização dos comitês da resistência democrática não foi prerrogativa exclusiva dos comunistas. Praticamente todos os grupos organizados acataram a idéia de constituir essas organizações, inclusive os Centros de Tradições Gaúchas, espaços que, até hoje, abrigam setores mais conservadores da sociedade sul-rio-grandense. O fato é que, rapidamente, Leonel Brizola obteve uma extraordinária adesão à luta para garantir a posse de Jango. Os partidos políticos de oposição, o próprio arcebispo Dom Vicente Sherer, não esconderam a adesão a Leonel Brizola. Porém, o episódio que mais revela a unanimidade em torno da defesa da posse de Jango foi o pronunciamento conjunto dos dois maiores rivais do futebol gaúcho: o Grêmio e o Internacional (SANTOS, 2002:180).
No dia 28, depois de uma madrugada tensa sob informações de que a capital sofreria ataques militares, Brizola tivera um encontro com o general José Machado Lopes, que lhe transmitia que o III Exército estaria ao lado daqueles que reivindicavam a posse de Jango. A expectativa que se criou na noite sobre um possível ataque só fez a mobilização crescer. De tal modo, que:
Quando o dia amanheceu, multidão só tinha uma direção: a Praça da Matriz. Tranviários, metalúrgicos, bancários, eletricitários, portuários, funcionários públicos, organizados em batalhões operários, carregando faixas, cartazes e estandartes dos seus sindicatos, marcharam para se colocar na frente do Palácio Piratini. […] Os jornais da época flagraram imagens de médicos realizando exames em voluntários para atestar se estavam aptos para participar dos combates. […] Quando o general José Machado Lopes passou pelo meio da multidão para encontrar-se com Leonel Brizola, por alguns minutos fez-se um enorme e angustiante silêncio. A multidão não sabia se o general estava ali para cumprir ordens de seus superiores. Os menos informados achavam que era mais provável que o chefe do III Exército ali estava para dar ordem de prisão à Leonel Brizola. Minutos depois, aparecem na sacada do Palácio Piratini: o governador e o general. A notícia corre: o general aderiu. A multidão entrou num verdadeiro delírio. Não foi preciso derramar sangue. Agora, João Goulart pode retornar para assumir a presidência do país(SANTOS, 2002:182).
A imagem a seguir, ilustra os batalhões operários desfilando pela avenida Borges Medeiros, no centro da capital, avenida onde também ficava o Comitê Central de Resistência Democrática.
Fonte: Última Hora de 31 de agosto de 1961.
A mobilização era forte e a possibilidade de greve continuava em aberto. A envergadura da organização e da mobilização popular gerava receios em parcelas do governo estadual e dos setores mais conservadores. O jornal Diário de Notícias estampava a seguinte nota:
Secretários de Estado e deputados que conversavam no Salão de Honra e em outras dependências do Palácio foram unânimes em afirmar ‘a revolução está nas ruas’. O alarma foi geral no Piratini. O Secretário do Trabalho, professor Clay de Araújo, recebeu comunicação de que os sindicatos estavam prontos para deflagrar uma greve geral em Porto Alegre e no interior do Estado. O governador pediu, então, que os líderes sindicais aguardassem um pouco mais.[8]
Todavia, no exterior estava em curso uma negociação para se instalar o parlamentarismo, onde o presidente deveria dividir o poder executivo com o Congresso Nacional. No dia primeiro de setembro Jango chegava a Porto Alegre. Milhares de pessoas já o aguardavam no aeroporto. A concentração popular era ainda maior na Praça da Matriz, em frente ao Palácio Piratini, onde se vivia a expectativa de um discurso de João Goulart e de que a batalha por sua posse dava largos passos em direção à sua vitória. Embora tenha aparecido na sacada do Piratini, juntamente com Brizola e o general Machado José Machado Lopes, Goulart não discursou.
Leonel Brizola desejava que Jango liderasse uma caminhada até Brasília, para se impor como Presidente do país. Para isto, a multidão mobilizada, que ali estava, tinha alguma importância. Mas, para Jango, que já havia aceitado o parlamentarismo como a única solução para o impasse, aquela mobilização popular, disposta a tudo fazer para garantir a Constituição, representava um empecilho. Algo a ser evitado(SANTOS, 2002:183).
Enquanto João Goulart permanecia em Porto Alegre, o movimento de resistência exigia uma definição do vice-presidente. Esse silêncio de Jango e os rumores crescentes sobre a situação negociada para a crise fizeram surgir um sentimento de frustração, depois de toda a mobilização que fora organizada: “A sacada do Palácio Piratini permaneceu vazia. Ouve-se uma voz: vamos queimar os cartazes! Imediatamente inicia-se a queima de cartazes, de faixas e de tudo que encontrava-se na Praça da Matriz que representasse apoio a João Goulart”(SANTOS, 2002:184). Jango deixou Porto Alegre no dia 04 de setembro em direção à Brasília para tomar posse. Desta maneira,
enquanto Jango, em clima festivo, assumia a presidência no regime parlamentarista, no Rio Grande do Sul pairava uma atmosfera de alívio e de muita frustração. Alívio, porque não foi preciso que as armas falassem. Frustração, porque o desfecho foi interpretado como sinal de fraqueza e capitulação(SANTOS, 2002:185).
3.A relação entre Brizola, a resistência democrática e o movimento sindical
Na avaliação de Santos, “ao perceber o crescimento da mobilização operária e a rapidez da adesão aos comitês de Resistência Democrática, o governador Leonel Brizola procurou, de várias maneiras, controlar os rumos do movimento”. Essa tentativa de controle, segundo Soares, processou-se das mais variadas formas: não permitindo que nenhuma liderança sindical subisse até a sacada do Palácio Piratini – da onde eram realizados muitos dos discursos – e se tornasse assim uma figura de destaque no processo de resistência; articulando lideranças sindicais próximas, e outros aliados, para que não ocorresse uma greve geral que “nos dias de Resistência Democrática – proposta das lideranças sindicais comunistas -, certamente colocaria o palácio e a praça em equivalência” [9]; buscando meios de fazer com que todas as “informações que circulassem no Comitê de Resistência Democrática chegassem até o Palácio Piratini”.
Ferreira afirma que “ao exprimir uma visão coerente e completa do destino histórico, ele [Brizola] transferiu-se, simbolicamente, para o domínio do legendário, elevado ao patamar de Homem providencial e, particularmente, Herói […] (FERREIRA, 1997:11)”. Porém, o processo como Brizola é “elevado” à “herói” é cercado de ambiguidades, contradições e conflitos. É importante salientar que Brizola movimentava-se para que não tivesse que dividir esta condição com muitas outras lideranças, sobretudo as operárias que visavam desvincular o movimento sindical de qualquer tipo de paternalismo. As imagens a seguir, talvez, retratem essa tentativa de evitar que lideranças sindicais e populares fossem alçadas a condição de “líderes da legalidade”.
Fonte: Última Hora de 31 de agosto de 1961.
A imagem à esquerda é da sacada do Palácio Piratini, que fica alta do chão, de onde Brizola, o General José Machado Lopes e outras figuras próximas ao governador apareciam para a multidão. É desta sacada que Brizola também fizera alguns dos seus discursos. Porém, nesta tribuna não há espaço para lideranças operárias e sindicais que construíram a Resistência Democrática. À direita, em frente ao Piratini, e ocupando a Praça da Matriz, a concentração popular com cartazes, faixas e organizada nos Comitês de Resistência Democrática. A legenda da segunda imagem leva o seguinte texto: “O povo, embaixo, aplaudiu os líderes da Legalidade, em cima”.
Os comitês de Resistência Democrática representavam órgãos populares com significativa capacidade organizativa e com múltiplas tarefas de mobilização. Dentre estas, a comunicação também recebeu dedicação especial dos comitês. É comum falar do papel das rádios que formaram a rede da Legalidade, sob o comando de Brizola e que obtiveram reconhecidos resultados. Mas as organizações populares também buscaram construir seus meios de comunicação, embora seja difícil dimensionar a importância e o êxito que conquistaram. Um desses meios de comunicação foram os boletins dos comitês, como o apresentado nas imagens abaixo:
Fonte: Consulta ao http://sul21.com.br/jornal/2011/08/comite-de-resistencia-publicou-jornal-mimeografado/ em 07 de setembro de 2011. O jornal está arquivado no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul.
O boletim se chamava “Resistência” e este era o seu primeiro número, datado em 29 de agosto e denominado como “órgão do primeiro Comitê de Resistência Democrática”. Para os redatores do jornal, a “Resistência Democrática significa a organização de todo o povo em torno de comitês verdadeiramente democráticos […]” e a mais adiante seguem afirmando que o significado do movimento de resistência “não é apenas [de] declarar-se a favor da legalidade democrática e do respeito a Constituição, mas também e fundamentalmente tomar iniciativas concretas, formar comitês, esclarecer os amigos e vizinhos, fazer abaixo-assinados, desmascarar os intrigantes e boateiros, participar e organizar passeatas, comícios e concentrações”.
O primeiro comitê possuía uma diretoria formada inicialmente por cinco membros eleitos de maneira “revolucionária”, segundo o Resistência. Através do jornal, também é possível identificar que os comitês organizavam a arrecadação de recursos financeiros que serviriam para “fazer faixas, cartazes, condução, alto-falantes, impressos, etc.”. É provável que os demais comitês possuíssem uma organização semelhante, embora o primeiro comitê tenha tido um papel de “órgão central” da resistência democrática. Nas passagens do jornal fica evidente, mais uma vez, o papel organizador e mobilizador que os comitês protagonizavam.
No dia 06 de setembro, as lideranças sindicais se reúnem para discutir qual seria a futura atuação do movimento. As deliberações deste encontro foram: “realizar, no dia 07 de setembro, um desfile dos batalhões operários; não desmobilizar os comitês de Resistência Democrática; pleitear a permanência do Comando Sindical Unificado na sede do Mata Borrão e promover uma conferência sindical dos três estados da região Sul (SANTOS, 2002:186)”. O desfile dos batalhões operários foi transferido para o dia 20 de setembro, depois de uma visita pessoal de Leonel Brizola e do general Machado Lopes sob a argumentação de que a data posterior seria transformada em uma grande homenagem a todos que contribuíram na luta pela defesa da legalidade. Embora, houvesse uma grande manifestação popular por ocasião do dia 20 de setembro, contando com a participação dos batalhões operários, a organização dos Comitês de Resistência Democrática entrou em declínio. Segundo Santos, as razões para tal acontecimento estão
na rapidez das ações, sob os auspícios do Palácio Piratini, a falta de unidade do Comando Sindical Unificado e uma certa perplexidade com o desdobramento dos acontecimentos que impediram que o movimento de resistência democrática fosse capitaneado pelos setores mais avançados do sindicalismo e do Partido Comunista. Concretamente, a partir de 20 de setembro de 1961, o movimento de resistência democrática foi estrangulado(SANTOS, 2002:188).
O movimento de Resistência Democrática surgiu como uma iniciativa autônoma da classe trabalhadora e de outros setores populares, enquanto o governo do Estado e outros atores organizavam o movimento da Legalidade. Pode-se afirmar que os dois processos não eram independentes e desligados entre si, pelo contrário, tinham profundos vínculos, porém é um equívoco a interpretação reducionista de que foi Brizola quem “organizou o povo de Porto Alegre”. Essa ideia de uma grande liderança carismática organizando e mobilizando as massas populares é resultante de um paradigma interpretativo clássico do populismo.
Esse paradigma serve, para muitos, como um arcabouço explicativo para compreender o sindicalismo do período populista e a derrota da classe trabalhadora e da esquerda com o golpe militar em 1964. Essa derrota derivaria, em grande medida, do caráter passivo dos trabalhadores perante o patronato e do atrelamento de suas organizações ao Estado. Assim, salienta-se a fragilidade do sindicalismo, o qual é considerado é “populista” ou “pelego”. Para muitos, o movimento sindical estaria preso a uma espécie de “camisa de força”. De um lado, a ação dos trabalhadores estaria submetida a uma estrutura sindical corporativista que inviabilizava uma atuação autônoma; e por outro lado, o populismo político, através da demagogia e da manipulação, teria orientado os trabalhadores e suas organizações para uma política de colaboração de classes.
Entretanto, ao analisarmos de modo concreto alguns dos processos históricos, como a Resistência Democrática, acreditamos ser possível demonstrar que existiram momentos em que a ação dos trabalhadores foi além da estrutura sindical corporativa que, por si só, não impedia a mobilização dos trabalhadores no enfrentamento por demandas econômicas e políticas.
Portanto, o que queremos afirmar é que o populismo em nosso país é um fenômeno histórico marcado por intensas ambiguidades e contradições. Por um lado, é notório que havia um Estado e um patronato que buscavam manter uma dimensão de controle através das polícias políticas, das intervenções aos sindicatos, da manutenção do PCB na ilegalidade, das restrições a participação política dos trabalhadores. Igualmente, havia uma ideologia dominante que “pregava a virtude da harmonia de classes, a necessidade de subordinar interesses dos trabalhadores aos da nação e a importância de obedecer com disciplina ao Estado paternalista(JAMES, 2001:2017)”.
Porém, por outro lado, isto não significou um controle onde a classe trabalhadora não fosse capaz de criar experiências e a ações coletivas orientadas por uma consciência de classe. Apesar de atuarem em uma arena que era “restrita e regulada pelo alto”, eles conseguiram criar experiências que revelavam uma consciência de classe e, igualmente, uma capacidade de obterem conquistas.
Acreditamos ser possível subscrever a ideia do populismo entendido como uma contradição centrada na proposta de incorporação controlada dos trabalhadores urbanos ao processo político que, entretanto, “abria espaços de mobilização autônoma não comportados pelos canais de participação restritos criados(MATTOS, 2003:34)”; e é também, portanto, “um espaço de lutas políticas e econômicas dos trabalhadores, tornando-se um campo, portanto mais complexo e dinâmico do que as teses que reforçavam a imagem de uma classe trabalhadora passiva e manipulada pelo Estado (SILVA, 2001:211)”.
Desta forma, se não podemos deixar de evidenciar os limites da autonomia e da resistência dos trabalhadores e seus sindicatos durante o populismo, tampouco podemos caracterizar a classe trabalhadora e o sindicalismo daquele período exclusivamente pela heteronomia. Desta maneira, acreditamos que o protagonismo e a iniciativa dos trabalhadores no processo de Resistência Democrática demonstra esta complexidade da luta política e social daquele contexto histórico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FERREIRA, Jorge. A legalidade traída: os dias sombrios de agosto e setembro de 1961. Tempo[on line], Rio de Janeiro, Vol. 2,n°3,1997.
JAMES, Daniel. apud SILVA, Fernando Teixeira da; COSTA, Hélio da. Trabalhadores urbanos e populismo: um balanço dos estudos recentes. In FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2001.
MATTOS, Marcelo Badaró (org.). Os historiadores e os operários: um balanço. In: Greves e repressão policial ao sindicalismo carioca:1945-1964. Rio de Janeiro: Aperj/ Faperj, 2003.
SANTOS, João Marcelo Pereira dos. Os herdeiros de Sísifo: a ação coletiva dos trabalhadores porto-alegrenses nos anos 1958 a 1963. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas:2002.
SILVA, Fernando Teixeira da; COSTA, Hélio da. Trabalhadores urbanos e populismo: um balanço dos estudos recentes. In FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2001.
OUTRAS FONTES CONSULTADAS
Entrevista com Ony Nogueira realizado por João Marcelo Pereira dos Santos em outubro de 1999.
Ultima Hora, Porto Alegre, 26 de agosto de 1961.
Diário de Notícias, Porto Alegre, 30 de agosto de 1961.
Anais da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, sessão de 26, 27 e 28 de agosto de 1961.
http://sul21.com.br/jornal/2011/08/comite-de-resistencia-publicou-jornal-mimeografado/
[1] Professor e mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense-UFF.
[2] Entrevista com Ony Nogueira realizado por João Marcelo Pereira dos Santos em outubro de 1999.
[3] Diário de Notícias, Porto Alegre, 30 de agosto de 1961.
[4] Anais da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, sessão de 27 de agosto de 1961.
[5] Idem, sessão de 28 de agosto de 1961
[6] Ibidem, sessão de 26 de agosto de 1961
[7] Idem.
[8] Diário de Notícias, Porto Alegre, 29 de agosto de 1961.
[9] Idem, p.185.