Criadores de sacis lutam para mantê-los “vivos” no Brasil

No Dia do Saci, entenda como criadores e observadores trabalham para a preservação dessa lenda brasileira

por Paula Brasileiro qui, 31/10/2019 (em www.leiaja.com)

A cultura do Halloween, importada dos países de língua anglo-saxônica, como Estados Unidos, Canadá e Reino Unido, vem ganhando cada vez mais espaço no Brasil.  Porém, o dia 31 de outubro, em que é celebrado o Dia das Bruxas mundo afora, tem um outro motivo para ser comemorado em terras tupiniquins. Por essas bandas de cá, este é o Dia do Saci, um dos personagens mais famosos e, por que não dizer, queridos do folclore nacional. O negrinho de uma perna só e gorro vermelho, famoso por suas traquinagens, é tão unânime entre os brasileiros que existem até aqueles que criam ou apenas observam os sacis num esforço para manter vivo e preservado esse mito no imaginário dos brasileiros.

Conta a história que o saci surgiu no sul do Brasil, influenciada por elementos das culturas africana, indígena e européia. Ele é descrito como um moleque zombeteiro, que gosta de pregar peças nas pessoas, além de ser muito inteligente. Segundo a lenda, o saci é um ser pequeno, com cerca de um metro e meio de altura, negro e tem uma perna só, o que não lhe impede de ser muito rápido e ágil. Eles vivem nas florestas, usam gorro vermelho e gostam muito de fumar cachimbo. Diz-se sacis, no plural, pois acredita-se haver diversas espécies desse ser mítico, como o Saci-Taterê, Saci do Poá e Saci Sacerê.

A lenda foi espalhada inicialmente, como toda boa história da cultura popular,  através da transmissão oral, contada por ex-escravos e moradores de sítios e fazendas nos interiores do país. Mas foi o escritor Monteiro Lobato quem ajudou a disseminar o personagem por todo o Brasil. Em 1918, Lobato publicava seu livro de estreia, O Saci-Pererê: resultado de um Inquérito, que reunia diversos relatos – primeiramente publicados no jornal O Estado de São Paulo -, de pessoas que haviam tido alguma proximidade ou experiência com sacis. 

Ferrenho defensor das tradições e cultura brasileiras, Monteiro Lobato abriu uma espécie de ‘caixa mágica’ ao solicitar aos leitores do Estado seus testemunhos sobre o lendário ser. Choveram cartas, a maioria vindas de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. E é em São Paulo que é possível encontrar outros tantos simpatizantes das lendas ‘sacizisticas’, como eles costumam falar, através da Associação de Criadores de Saci e da Sociedade dos Observadores de Saci. 

Essas são duas das diversas organizações de apaixonados pela lenda que existem no Brasil. A Sociedade dos Observadores do Saci, Sosaci, tem como objetivo manter acesa a chama da cultura brasileira. A missão dos observadores é entender os sinais da presença do ser de uma perna só reunindo os interessados em valorizar e difundir os mitos brasileiros. Para isso, os integrantes promovem festas, palestras, seminários, sobretudo em escolas para levar esse conhecimento às crianças.

O jornalista e geógrafo, hoje aposentado, Mouzart Benedito, é um dos fundadores da Sosaci. Ele conta que, no final dos anos 1990, ao perceber a cultura estrangeira do Halloween se impondo na sociedade brasileira, sentiu-se incomodado e decidiu fazer algo. “A gente começou a ficar invocado com isso, nessa época surgiu a Associação de Criadores de Saci em Botucatu (SP) e eu comecei a fazer coisas protestando contra o Halloween, falando sobre o folclore nacional”. 

O observador então buscou no interior paulista os modelos para criar a Sosaci. Mas, com um diferencial: “Lá eles têm o negócio de criar o saci em gaiola e eu não gosto de prender nada, só observar”. A partir daí ele reuniu um pequeno grupo e deu início aos trabalhos da associação em São Luiz do Paraitinga, outra cidade interiorana de São Paulo. A Sosaci já chegou a ter mais de mil integrantes com membros de todo o Brasil e até do Chile, Estados Unidos, Itália e Argentina. 

Para ver os sacis é preciso ir para o meio do mato, mas o negrinho não se deixa observar com facilidade assim. Traquina, ele gosta de brincar com quem o procura e tampouco se deixa fotografar ou filmar de maneira que ninguém consegue registrar as imagens do serzinho. Reza a lenda, que ao capturar a imagem de um saci ele acaba morrendo. Mouzart até relembra um caso de uma emissora de televisão que tentou fazer uma matéria sobre a lenda e acabou tendo os equipamentos danificados. “Quando vai escurecendo, ele aparece lá no meio do bambuzal, mas aconteceu que eles largaram toda a aparelhagem, queimou tudo”.

Mouzart conta que as pessoas ainda se admiram de sua adoração pelo saci e já houve quem perguntasse se ele é “devoto” do personagem do folclore. Mas o interesse do aposentado mesmo é perpetuar essa tradição oral do nosso país, com esforços do próprio bolso – assim como os demais associados da Sosaci. Este ano, o grupo promoveu a 17ª edição da Festa do Saci, em São Luiz do Paraitinga (SP), com direito a três dias de programação de oficinas, brincadeiras, lançamento de livros, exposições e espetáculos.

Mouzart, da Sosaci, observa sacis há mais de 30 anos. Foto: cortesia.

Criadores de Saci

Já na Associação de Criadores do Saci, a ASCSACI, de Botucatu (SP), também criada no fim da década de 1990, o trabalho de manutenção e preservação da mítica do saci é um pouco diferente. A iniciativa de abrir a associação foi do engenheiro José Oswaldo Guimarães. Interessado no tema, há mais de 30 anos, ele tomou conhecimento de um senhor, morador de Minas Gerais, criador de sacis e foi até lá pedir alguns negrinhos para serem criados em sua cidade, no interior paulista, já que por lá eles andavam em falta. 

“Esse senhor falou pra mim que os sacis estavam diminuindo por causa do desmatamento, da luz elétrica – eles odeiam claridade -, então eu pedi pra ele me dar alguns sacis pra eu reintroduzir na mata, em Botucatu, e lá a gente iria cuidar deles”, conta o presidente da ASCSACI. Para cuidar de um saci é preciso alimentá-lo, garantir-lhe o que beber e cuidar do seu habitat natural, de modo que os criadores acabam se tornando verdadeiros protetores da natureza. “Esse senhor criava eles em viveiros, mas não queríamos criar assim, quando a gente levou esses sacis pra lá (a mata) nosso trabalho foi levar frutas, bambu, frutas da região, pequenos frutinhos do cerrado e a gente foi alimentando, dando água e fomos abrindo esse viveiro para que eles começassem a sair, depois de um tempo eles foram saindo se ambientando, então hoje a gente não precisa ir na mata pra cuidar deles, mas eles estão lá”.

Outra forma de preservar os sacis é cuidar do imaginário das pessoas, o segundo local, além das matas, onde esses seres ganham vida. Oswaldo explica, que o simples fato de pensar e falar sobre o saci, já garante a existência de um novo ser. “A partir do momento que a pessoa faz algo que um novo saci se desperta, ela é tão criadora quanto a gente. Tem a gente, os que cuidam dos sacis na mata, e também tem as pessoas que criam o saci no sentido de você ter ele nascendo na mente das pessoas, então esse saci é tão importante quanto o outro”. 

José Oswaldo é o presidente da Associação dos Criadores de Saci. Foto: Divulgação/Isabela Sanatore

Saci Urbano

O crescimento desmedido das áreas urbanas acabou promovendo uma mudança nos hábitos de alguns sacis. Já é possível encontrá-los nas cidades grandes, em locais mais arborizados como jardins e praças. Como conta Mouzart, da Sosaci. Ele mora na capital de São Paulo e já encontrou diversos sacis em plena metrópole. “Aqui em casa, comecei a perder óculos, falei pra minha mulher: ‘acho q tem um saci aqui’, desci pra praça e encontrei vários orelha-de-pau”. O orelha-de pau é um cogumelo que nasce nos troncos das árvores. Segundo a lenda, ao completar 7 anos o saci não morre, mas se transforma nesse tipo cogumelo. 

O observador diz que no Parque da Água Branca, espaço de mais de 13 hectares de vegetação localizado no bairro da Barra Funda, também na capital, a população de sacis é bastante numerosa. Segundo ele, há relatos de frequentadores e funcionários do parque que garantem terem vistos redemoinhos ‘estranhos’, os ovos das aves residentes do local são trocados, e os cavalos amanhecem com nós nas crinas. Tudo ‘trela’ dos sacis, garante Mouzart. “Ele se urbanizou”, diz. 

Dia do Saci

O Dia do Saci foi criado, no início dos anos 2000, como uma resposta à quase imposição da celebração do Halloween no Brasil. A data, no entanto, divide a opinião dos criadores e observadores que são contra a promoção de qualquer embate entre as culturas distintas. “A gente achava que não deveria se sobrepor a uma outra cultura, todas as culturas cabem no seu espaço, a cultura do Halloween é muito bonita. Na época, tivemos uma reunião com a Unesco, com a Comissão Nacional do Folclore e a ideia era que não fosse colocado esse dia como o Dia do Saci porque o único objetivo que se tinha era combater o Halloween, estamos bombardeando uma cultura com outra, vamos criar um outro dia, a gente sugeriu o dia 13 de agosto”, conta o presidente da Associação de Criadores de Saci, José Oswaldo. 

Em 2003, dois projetos de lei de autoria de Ângela Guadagnin e Aldo Rebelo foram propostos para instituir o Dia do Saci no calendário oficial do país, mas ficaram arquivados. Em seguida, no ano de 2004, o estado de São Paulo oficializou a data 13 de janeiro como sendo o dia exclusivamente dedicado ao saci. A importância de celebrar e reverenciar esse ser lendário está em sua brasilidade e no poder de encantamento que ele possui, como bem sintetiza Mouzart. “A gente brinca muito com isso porque o saci junta os três povos que formaram o brasileiro, então ele é o mais brasileiro de todos os mitos além de ser o mais popular, as crianças gostam muito. Já rodei o Brasil inteiro dando palestras e nunca precisei explicar quem era o saci. Todo mundo sabe quem é o negrinho que tem o gorrinho mágico e uma perna só”.

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