Enegrecimento físico e a derrota do branqueamento

Por  Fausto Antonio (*)

Epigrafia da branquitude textualizada ,  contextualizada, refutada  e derrotada

Na  abertura  do  romance  Macunaíma, somos  informados  que  “o herói de nossa  gente”  é  “preto retinto e filho do medo da noite”.  No capítulo V,  Piaimã, Macunaíma  toma banho em uma água mágica e sua pele fica branca, os olhos azuis e os cabelos loiros. Um  Brasil branco em  100  anos, por  sua  vez, João Batista de   Lacerda  preconizava, no Pprimeiro Congresso Universal das  Raças , em 1911, em Londres.  

Segundo os  dados  do IBGE de  2023, o  número  de  pardos  superou, sem  contar com a  soma  com pretos,  o  contingente branco da população brasileira.

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IBGE  e  o  branqueamento persistente na Região Sudeste

 O  número inferior    dos  chamados  “pardos” (as) e  de  pretos (as)   na  Região  Sudeste, conforme dados  do IBGE em 2023, está  intimamente  relacionado   ainda  e  infelizmente  à  política  e  ideologia de  embranquecimento físico e mental  ou  do  imaginário, que  retroalimenta o racismo.  De  acordo  com o  critério  de  identificação, dados anatômicos expressos pela cor da  pele , corpo e  traços físicos , cabelo e  território usado,    e não  de  identidade, autodeclaração,  São  Paulo, Minas  Gerais  ,  Rio  de  Janeiro e  Espírito  Santo , estados  com maioria  negra (“parda”)  nos  territórios  segregados e destituídos  de  recursos  sociais, revelam  a  força do  racismo  e  da  esquizofrenia  racial. Na  Região Sudeste, a  despeito de uma  visível  maioria  negra nos  territórios e processos  culturais de rua, predomina  a autodeclaração que  reafirma o branqueamento e branquitude.

Apesar de persistir a  política  e  ideologia  do  branqueamento na  região Sudeste e  país, os  dados revelam, no  geral,  que as previsões , que davam como certa a vitória do branqueamento, foram derrotadas e prevalece e prevalecerá o  enegrecimento físico  como referencial majoritário do  conjunto da população brasileira. As  políticas e ideologias  de branqueamento  fizeram escola e sistematizaram  formulações de  Estado,  governo e artísticas. As políticas de limpeza étnicorracial  de  Estado e governos são visíveis na  ação da violência  policial, esquadrão da  morte, encarceramento racializado e bloqueios  racistas implícitos e  explícitos no acesso ao trabalho, salário, representações e, numa  síntese conclusiva, no  acesso  aos  bens materiais e  imateriais.

 Previsões “científicas”  manipuladas  pelo oráculo da branquitude

A  previsão feita  numa  comunicação, que  o desaparecimento físico  da  população negra ocorreria  num espaço temporal de 100 anos, fracassou  completamente.  A  previsão, um oráculo da branquitude totalitária, foi feita  pelo  cientista , médico,  antropólogo e ex-diretor do Museu Nacional, João Batista de Lacerda.  A  comunicação,   apresentada no Primeiro Congresso Universal das Raças, realizado em 1911, na cidade de Londres,  previa, antes desejava,  o desaparecimento da raça negra no Brasil, em um prazo de cem anos.  Diferentemente do  que vaticinou o cientista, no século  XX, na  realidade brasileira, assistimos  ao enegrecimento físico da população  do  país, em oposição às  imagens impostas da brancura e ao imaginário recalcado pela branquitude e branqueamento.  No século XXl, chegaram, no  final de 2023,  os  dados do IBGE de 2022, que  informam   que  o  enegrecimnto físico, impulsionado por  relativo crescimento imagético e  do  imaginário da  negrura e/ou do  antirracismo , está  em alta e supera numericamente o  contigente branco superestimado pela ideologia  e  política orientadora do racismo no Brasil.

A  água  mágica  que  transforma  negro em  branco

A  metáfora  da  água  mágica é um dos  meios  para confrontarmos  o  branqueamento  e  a branquitude.  Além  das  metáforas, as   sistematizações orientadoras da branquitude  totalitária estão nas estruturas materiais, imateriais  e nas    artes em geral, com especial destaque para a  literatura.

Um  exemplo quase  intocado, na  literatura  brasileira,  é  o de Mario de Andrade , no  romance Macunaíma.

Mário de Andrade, no celebrado  romance, apresenta um herói que  nasce negro retinto e, no  transcurso  da  narrativa, vira branco. Nada  de  mais  para a recepção universalizante branca e brancocêntrica.  Na  contramão da realidade  concreta brasileira que, desde os  primórdios do  advento da  política  de  branqueamento no século XlX,  diz  que dias  negros virão, Mário  de Andrade repetiu a ideologia e  política perversa  do branqueamento físico e de imaginário  naturalizadas no Brasil. O autor do herói sem caráter, no discurso de  certa crítica mediadora da recepção branca universalizante, não assimilou o branco “universal” como definidor indevido  do tal  caráter inconcluso da identidade brasileira. Estamos  diante  das ciladas e  gradações do racismo  consciente  e  do racismo inconsciente que  revelam, numa igual medida, a  esquisofrenia  etnicorracial do  autor cansagrado e hegemônica no país.  A propósito dos traços anatômicos, pode-se  dizer que Mário de Andrade é   quase um negro, com o perdão do  anacronismo , nos termos  atualizados no século XXl.

Duas  rapsódias dialogam   em posições contrárias. No  romance  em pauta, o personagem  negro  retinto, depois  de  um simples  banho na  água  mágica, vira branco e  ostenta os  traços de  olhos  azuis  e  cabelos  loiros; aliás,  estado físico idealizado e  repetido  à  exaustão pela branquitude  totalitária.

Nos  lugares brasileiros, espaços  de  pacto com o útero negro,  há  a  evolução dura e gradativa de pardos  que  são  negros fisicamente e no território. Na  rapsódia concreta do Brasil, pardos  são  negros. Os  dados relativos às  desigualdades ocupacionais, locacionais , institucionais e  estruturais, em concordância  com o IBGE em   2022, dizem que  sim.  A rigor, os dados do  IBGE 2022  revelam um país profundamente   racista no  quesito dos  acessos desiguais e racializados, mas impotente, a  despeito das chacinas, genocídios e esquadrão da morte, diante da  força e capacidade  de luta e  reexistência negra no país.  A  política  racista, que visava e visa ao extermínio de negros e à total invisibilidade  da  herança  africana, foi  derrotada . Derrotada?  Sim, não obstante o  herói branco que  emerge no final do  romance Macunaíma e, por  igual  equivalência  opressiva,   na  realidade  concreta e imaginário nacional. A  política   foi derrotada  no  século XX   e será, no  contínuo  do  século XXl,   derrotada demograficamente. A  branquitude  totalitária  sera derrotada, vale  aqui  a ênfase,  primeiro  numericamente e, no segundo momento, no plano político e de  poder antirracismo. O  enegrecimento físico  da população  brasileira, em  conformidade com  dados  do IBGE de 2022, será também  uma  arma contra a burguesia  branca e  racista  brasileira?  Certamente será!  Para tanto, cara leitora e leitor,  além do  enegrecimento físico, é  preciso uma  maioria  política para enfrentar o esquadrão da  morte e  a segregação  espacial, que  oprimem, desorganizam  e  matam  negros  em  favelas, morros e bairros populares.

(*) Fausto Antonio é  escritor,  poeta, dramaturgo e professor  da Unilab  – Bahia

 

3 respostas

  1. Excelente prof Fausto!
    Os números não mentem e para a branquitude esse deve ser o sinal de alerta das mudanças que ocorrem na sociedade e um golpe no pensamento eurocentrico. Nós negros sobrevivemos e daqui p frente iremos cobrar a reparação p a população negra.
    Parabéns prof Fausto!
    Axé ✊

  2. Pensar o resultado do censo do IBGEcomo uma mudança na auto.imagem da população brasileira que está, com alto índice demográfico, se declarando como parda. Ou seja nem preto, nem branco. Estamos no caminho do meio. Favorável no sentido de sabermos que a população do Brasil sabe que é negra tbm. A partir disso , constatamos, ainda, que o percurso da luta anti racista é longo. Mas, o primeiro passo foi dado.

  3. Olá, Prof. Fausto.
    A reflexão é necessária, à luz dos novos dados do IBGE. O brasileiro enegreceu o corpo. Agora falta emagrecer a mente. Estamos mais próximos dessa virada. Parabéns.

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