Europa: terra de conflitos e contrastes

Nunca se mente tanto,

como depois de uma caçada,

durante uma guerra

e antes de uma eleição.

 

Otto von Bismarck,

o conservador Chanceler de Ferro

do Império Alemão.

 

Artigo publicado na edição 14 da revista Esquerda Petista

Por Flavio Aguiar (*)

Uma guerra de longo alcance

“(…) Estamos lutando uma guerra contra a Rússia, não de uns contra os outros”: esta declaração, feita no Parlamento Europeu, em Estrasburgo, pela ministra de Relações Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock, deveria explodir como uma bomba na mídia mainstream do Ocidente. Entretanto, provocou apenas algumas marolas secundárias, apesar do governo de Moscou ter pedido explicações à embaixada alemã. Em primeiro lugar, porque essa mídia vem seguindo uma política explícita de minimizar as contradições deste Ocidente frente e dentro da guerra que se disputa na Ucrânia. Em segundo lugar, porque ela reflete o óbvio, aquilo que todo mundo sabe, embora meio mundo procure ignorar: esta guerra é uma guerra terceirizada entre o Bloco Ocidental e a Rússia. A Ucrânia desempenha vários papéis: é seu tabuleiro, o devastado palco do conflito; é a peonada, bucha de canhão, boi de piranha jogado às feras dos bombardeios; seu presidente, Volodymyr Zelensky parece o cavalo saltitante, embora toque uma nota só: armas, armas e mais armas; a União Europeia parece um bispo de apoio, com cortes enviesados, por vezes decididos, por vezes hesitantes, contra as pedras pretas da Rússia (claro, porque o Bloco Ocidental se reveste com a “pureza” das brancas);  há o outro bispo de apoio, mais decidido, o agressivo Reino Unido, protegido do outro lado do canal da Mancha; já o rei, a rainha e as poderosas torres estão além-mar, nos Estados Unidos, seus serviços de inteligência e sua indústria bélica.

Do outro lado do tabuleiro, está a Rússia, com o apoio discreto e de vez em quando crítico da China.

A declaração da ministra se refere, de um lado, à discussão sobre a entrega ou não dos tanques Leopard 2, fabricados na Alemanha, e, do outro, à necessidade, a seu ver, de que a União Europeia atuasse com a força de seu conjunto. E era uma declaração de todo favorável à entrega dos tanques ao governo ucraniano. A decisão, depois de muita hesitação por parte do chanceler alemão, o social-democrata Olaf Scholz, foi de entregar um certo número de tanques (inicialmente 14) e de liberar outros países da U.E. que possuam esses blindados, como a ávida Polônia, para os repassarem à Kiev.

Comemoração guerreira

A decisão foi comemorada pelos novos falcões guerreiros que povoam a geopolítica hegemônica na U.E. e na mídia mainstream do continente. Esta ainda se afinca, predominantemente, na ideia de que o governo de Kiev deve “ganhar a guerra”. É difícil precisar o que isto quer dizer: expulsar os russos, retomar a Crimeia, derrubar Putin? Comentaristas mais equilibrados põem em dúvida a viabilidade de qualquer desses objetivos. Mas são vozes abafadas pelo vozerio de que uma “vitória” da Ucrânia é o único final viável e possível para o conflito. Chegou-se a dizer que os tanques germânicos, aliados aos Abrams que os Estados Unidos prometem entregar à Ucrânia, poderiam “mudar o curso da guerra”. Entretanto, o apoio não foi unânime. Curiosamente, houve algumas discretas vozes discordantes do entusiasmo geral. Parte da mídia francesa manifestou um certo ceticismo: devido ao treinamento necessário para seus futuros tripulantes, os Leopard 2 só poderão adentrar o campo de batalha dentro de três a seis meses. Outras vozes nada entusiasmadas partiram do próprio Exército alemão, alertando que os compromissos assumidos com estas entregas, que incluem a reposição dos tanques dos outros países, prejudicariam seu próprio esforço de reequipar-se.

Esta última reticência se refere ao fato de que a guerra na Ucrânia deflagrou uma nova corrida armamentista no continente. A Alemanha anunciou o investimento de 100 bilhões de euros na reequipagem de suas Forças Armadas; a França, 400 bilhões em sete anos. A extensão dessa escalada a outros países é uma questão de tempo.

Ainda uma observação sobre esta guerra, por parte de quem já cobriu muitas desde a Guerra do Vietnã. Jamais vi uma guerra tão recoberta de mentiras. A acreditar-se na mídia europeia, a Ucrânia dá um banho de bola na Rússia e vai vencer o conflito. Segundo os comunicados do Exército russo, o seu inimigo ucraniano está destruído e a presença das tropas russas na Ucrânia é um passeio. Como diz um poema de Fernando Pessoa em outro contexto, “a verdade nem veio/nem se foi, o erro mudou”. Poderíamos acrescentar, glosando o mesmo poema, inspirados por Bismarck, o conservador chanceler que inaugurou os direitos trabalhistas na Alemanha: “Nasce aqui uma nova mentira/E é sempre melhor a que os outros fira”.

Corrida armamentista

Uma outra questão aberta pelo conflito é o renascimento de uma retórica guerreira e belicista em todo o continente. O Parlamento Europeu aprovara por uma maioria esmagadora de 459 votos contra 93, mais algumas dezenas de abstenções), uma moção pedindo que a Alemanha entregasse os tanques. O Partido Verde alemão, de que a ministra Baerbock faz parte, de tradição ecológica e pacifista, mostra-se hoje uma entusiasta da OTAN e do confronto armado com a Rússia, pelo menos no que toca a sua liderança. A tal ponto chegou este entusiasmo que na mídia alemã apareceram comentários de que o Partido Verde se transformara no Partido Verde-Oliva. E muitas pessoas que, no passado recente, compareciam a manifestações pela paz, cantando Bella Ciao e Where Have All the Flowers Gone, hoje clamam que a guerra é a única solução para a Ucrânia, almejando derrotar a Rússia.

Do lago de tranquilidade a um mar de turbulências

Um grande número de brasileiras e brasileiros ainda vê a Europa como um manso lago de tranquilidade em meio às convulsões mundiais.

É verdade que se há conflitos raciais, eles não são tão dramáticos como o dos Estados Unidos. Se há violência armada, ela não é tão comum como, de novo, a dos Estados Unidos. Se há tensões sociais, pobreza e desigualdades, não são tão gritantes como na América Latina e na África. Se há polarização política, ela não é tão grande como a que existe no Brasil, e assim por diante.

Mas o fato é que a temperatura das tensões e conflitos está subindo no continente europeu. No passado recente, o principal foco de turbulência residia na questão dos refugiados. A política em relação a eles opunha dramaticamente partidos e governos nacionais. Alguns destes últimos eram opositores ferrenhos de qualquer tolerância para com eles, como os da Grécia e da Hungria, que apontavam o dedo para a Alemanha da então chanceler Angela Merkel, acusando-a de ser demasiado tolerante. Em parte, a guerra mudou este cenário: os refugiados ucranianos são, no fim de contas, europeus, ao invés “outsiders” de pele mais escura, vindos do distante Oriente Médio ou da empobrecida África.

Da guerra à economia

Da guerra, passemos a uma de suas consequências, embora ela não seja a única responsável: a inflação. Os preços continuam pressionando o continente. É verdade que a presidenta do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, reconheceu no Fórum Econômico de Davos, na Suíça, que a taxa média de inflação caiu um pouco neste começo de 2023, ficando em 9,2% anuais. Mas ela se distribui de modo muito desigual entre os países. Em 2022, a média europeia foi de 11,1%, variando de 6,7% na Espanha a 23,1% na Hungria, entre os países da União Europeia. Ampliando o espectro, se ela ficou entre 9% e 11% no Reino Unido, conforme o índice da medida, ela subiu a quase 85% na Turquia.

Além disto, a inflação se distribui desigualmente entre as mercadorias e serviços. Por exemplo: em 2022, a Alemanha teve uma média de inflação de 11,3%. Mas o preço dos alimentos subiu em 20%, e o da energia, em mais de 40%, o que penaliza os mais pobres. Estes aumentos mais dramáticos estão ligados à guerra, com a crise no fornecimento do gás russo e dos insumos para a agricultura, além da queda no fornecimento de trigo e milho por parte da Ucrânia.

A pobreza e as tensões sociais

Falando em pobres, o índice de pobreza vem subindo no continente. As estatísticas da União Europeia dizem que 21,7% da sua população vive em situação de pobreza ou próxima dela, de 10,7% na República Tcheca a 34,4% na quase vizinha Romênia. Na Alemanha, o índice de pobreza é menor do que a média da União Europeia, mas cresce o número de famílias que dependem do auxílio alimentação das cozinhas comunitárias, sobretudo nas cidades grandes, como Berlim.

Junto com a pobreza, crescem as tensões sociais. Em vários países, os movimentos sindicais e grevistas vêm crescendo sistematicamente. Um dos países mais afetados foi o Reino Unido. Uma categoria que há um século não fazia uma greve, a da enfermagem, já fez duas nos últimos meses. No setor da educação, as mobilizações são constantes. Na França, as centrais sindicais promoveram gigantescas manifestações contra a projetada reforma da previdência pelo governo de Emanuel Macron. Na Alemanha e na Holanda, cresceram movimentos de paralisação na área portuária.

Depois de um longo período de declínio nestes movimentos paredistas, eles voltaram a uma curva de ascensão. Esta tendência abrange países de forte tradição de mobilização, como França, Espanha e Itália, mas em 2021e 2022 ela subiu muito em países como a Bélgica, Dinamarca, Finlândia e Noruega, segundo o European Trade Union Institute, uma espécie de DIEESE continental.

Na frente política

Instabilidade social é igual a instabilidade política. Em toda a Europa crescem movimentos e partidos de extrema-direita, considerados como “eurocéticos”. Estes conquistaram o governo na Itália e tornaram-se um núcleo decisivo de apoio ao novo governo de direita da Suécia, um país que era de forte tradição social-democrata. Marine Le Pen ameaçou seriamente a reeleição de Emanuel Macron na França, em 2022. O partido Vox, herdeiro do franquismo na Espanha, está consolidado em várias regiões da Espanha; igualmente o Chega, de extrema-direita, em Portugal. Além disto, a extrema-direita permanece firme nos governos da Polônia e da Hungria.

As instituições centrais da União Europeia permanecem sob uma hegemonia que pode ser caracterizada como conservadora na economia e mais liberal no que se refere a direitos humanos. Embora não haja conflitos maiores, há uma tensão contínua entre os centros de decisão da U.E., em Bruxelas e Estrasburgo, e governos como os das já mencionadas Polônia e Hungria, acusados de transgressões graves neste último quesito e também como ameaçadores da independência do Poder Judiciário.

E as esquerdas?

As esquerdas, com poucas exceções, permanecem divididas e na defensiva. A chamada centro-esquerda, socialista ou social-democrata, permanece nos governos da Espanha e de Portugal. Na França, ela se revitalizou, e foram seus votos que deram a vitória a Macron contra Le Pen no segundo turno eleitoral, em abril de 2022. Na Alemanha, o governo é uma salada de arestas, entre o Partido da Social-Democrata, os belicistas Verdes e o francamente neoliberal FDP, uma espécie de antigo PFL brasileiro, sem coronelismo rural e mais liberal no que toca aos costumes e direitos humanos. No Reino Unido, o Labour Party vem se mantendo à frente do Partido Conservador nas últimas pesquisas de intenção de voto.

Costumo dizer que, na Europa, só há dois governos à esquerda: em Portugal, com Partido Socialista do primeiro-ministro António Costa, embora contestado por alguns de seus ex-aliados mais radicais; e… o Vaticano do Papa Francisco I. A situação dos socialistas na Espanha é complicada, tendo sempre nos seus calcanhares a oposição conservadora que se alia cada vez mais ao Vox franquista, que se diz herdeiro dos Cavaleiros Templários da Idade Média!

Dois fatores podem fortalecer as esquerdas no futuro. Um é aquele renascimento do movimento sindical. Outro, curiosamente, é a mudança de governo no Brasil, pois Lula, hoje uma liderança mundial, é de momento uma unanimidade na Europa. A tentativa de golpe de 8 de janeiro foi repudiada por todos os governos europeus, incluindo os de extrema-direita, como os da Polônia e da Itália. Bolsonaro, suas gafes, suas investidas contra o meio-ambiente e os povos originários, sua diplomacia primitiva e antidireitos humanos, e sua interface com o crime organizado e o desorganizado foram uma overdose para todos.

Uma nota final

Para encerrar este levantamento, lembremos que a guerra de que falamos inicialmente despertou o risco de um conflito nuclear na Europa e no planeta. Embora no momento este risco permaneça mais retórico do que factual, ele saiu do baú onde cochilava e hoje paira sobre nossas cabeças durante o dia, fazendo a ronda em nossos pesadelos noturnos.

(*) Flavio Aguiar é professor, autor, jornalista, tradutor brasileiro, organizador e colaborador de dezenas de livros. Vive em Berlim, onde é correspondente de publicações brasileiras.

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