Por Valter Pomar (*)
Em 1987, o Instituto Cajamar realizou um seminário dedicado a debater “70 anos de tentativas de construção do socialismo”.
O resultado do seminário pode ser lido aqui: https://fpabramo.org.br/2017/06/19/fundacao-perseu-abramo-reedita-1917-1987-socialismo-em-debate/
Como subsídio para o seminário, a Secretaria de relações internacionais do PT elaborou uma série de pequenos textos, contendo informações sobre a Revolução Russa.
Um dos responsáveis por elaborar estes textos era um cidadão chamado Luís Favre, que salvo engano estava transitando de O Trabalho em direção à Articulação dos 113.
Neste contexto, Favre me propôs que publicássemos juntos um texto acerca da Revolução Russa. Mas o texto nunca saiu, devido a falta de acordo quanto aos fundamentos, digamos assim.
Me lembrei deste episódio, ao deparar com uma postagem do Henrique Carneiro reproduzindo um texto assinado pelo Luís Favre, intitulado “Stalin e o Despreparo da URSS Frente à Invasão Nazista”.
Alguém algum dia vai escrever uma biografia do Favre. Ou pelo menos assim espero. Mas voltemos ao texto, datado de 8/05/2025.
Nele, Favre exibe pequena parte de sua notável erudição. Eu ia arriscar polemizar com algumas afirmações, mas aí deparei com a seguinte frase: “Segundo o Becker Friedman Institute, expurgos ideológicos como os realizados por Stalin prejudicam gravemente a capacidade de dissuasão e a prontidão militar”.
Isto posto, deixarei para a IA polemizar com os detalhes eruditos do texto de Favre e me concentrarei no seu despropósito: aparentemente foi escrito para colocar Stálin no seu verdadeiro lugar, mas na verdade busca exaltar o papel dos imperialismos europeus.
O próprio Favre reconhece o lugar de Stálin, ao dizer que a vitória soviética não foi “obra exclusiva” dele. Ou seja: não foi exclusiva, mas foi obra dele também. E se faz algum sentido chamar o cidadão de “ditador”, então não dá para exagerar a margem de manobra de seus generais. Nem dá para apagar da história os “verdadeiros heróis” do povo, que também lutaram e morreram pela URSS e “por Stalin”.
Entretanto, na minha opinião isto tudo é uma homenagem que Favre concede a seu passado de esquerda. O que importa mesmo em seu texto é sua postura frente aos imperialismos europeus.
Favre diz que o mundo da época da Segunda Guerra era “multipolar”. Esquece de dizer que quase todos os “polos” eram imperialistas. Aliás, ele usa o termo “imperialismo” ou “imperialista” unicamente para para falar da Alemanha e do stalinismo.
Favre lembra do “estalido da guerra novamente no solo europeu”, esquecendo que antes da Segunda Guerra começar oficialmente, tivemos a Guerra Civil na Espanha e a agressão japonesa contra a China.
Favre fala da capitulação de Chamberlain e Daladier frente a Hitler, mas omite um dos objetivos de ambos: empurrar a Alemanha Nazista a atacar a URSS.
Favre reconhece a “centralidade do front oriental”, mas destaca que “a vitória sobre o nazismo foi resultado de uma coalizão global”, uma “conquista coletiva dos povos que se uniram contra a tirania”. O que é verdade, como reconhece aliás o belo vídeo divulgado nesses dias pela mídia russa.
Mas a “centralidade” foi a luta travada na URSS (o eufemismo front oriental é do bilubilu).
O arremate do texto de Favre é o seguinte: “os verdadeiros herdeiros da vitória contra o nazismo são os povos da Europa que, a partir das ruínas da guerra, construíram a paz e a democracia no continente. A União Europeia, com seus 27 países pacificamente unidos em uma entidade comum, é um dos frutos mais notáveis dessa vitória”.
Tem um gap imenso nessa versão da história apresentada por Favre: a chamada Guerra Fria. De toda forma, é realmente notável que a Alemanha tenha conseguido pelo caminho pacífico o que tentou duas vezes através da guerra. E também é notável que só tenha conseguido fazer isso depois que a URSS deixou de existir.
Mas notável mesmo é que – como me lembrou um amigo – Favre omite o papel da “pacífica União Europeia” e/ou de grande parte de seus integrantes em inúmeras intervenções imperialistas mundo afora, na destruição da Iugoslávia, na cumplicidade com o genocida Estado de Israel, para não falar no apoio ao ditador Zelensky.
Enfim, é Favre.
(*) Valter Pomar é professor e membro do diretório nacional do PT
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Segue abaixo o texto comentado acima
Stalin e o Despreparo da URSS Frente à Invasão Nazista.
LF
8/05/2025
Após Chamberlain e Daladier ter cedido a Hitler nos Sudetos, e aceito a anexação da Áustria, em vã tentativa de preservar a paz a custa do direito de povos soberanos, Hitler e o imperialismo alemão ficaram mais à vontade para levar adiante a pretensão de redefinir em seu favor o mundo multipolar da época. A paz não foi preservada por muito tempo e levou ao estalido da guerra novamente no solo europeu.
A Segunda Guerra Mundial, porem, teve início com uma aliança surpreendente entre dois regimes ditatoriais distintos: o de Adolf Hitler e o de Josef Stalin. O Pacto Molotov-Ribbentrop, assinado em 23 de agosto de 1939, foi um tratado de não agressão que incluía protocolos secretos nos quais Alemanha e União Soviética dividiram a Europa Oriental em zonas de influência. Poucos dias depois, Hitler invadiu a Polônia pelo Oeste, e em 17 de setembro, cumprindo sua parte no acordo, o Exército Vermelho invadiu a Polônia pelo leste. Assim, os dois regimes dividiram o país em comum acordo.
Enquanto o Reino Unido e a França declararam guerra à Alemanha em defesa da Polônia, a URSS colaborava com o regime nazista, fornecendo matérias-primas como petróleo, grãos e minerais estratégicos. Com o flanco oriental assegurado, Hitler voltou-se contra França e Inglaterra, “ocidente decadente controlado pelos banqueiros e a mídia judia”. Em 1940, derrotou rapidamente a França e lançou pesadas ofensivas aéreas contra o Reino Unido.
O 1º de Maio de 1941: O Desfile da Vergonha
Em 1º de maio de 1941, uma delegação oficial da Alemanha nazista participou das celebrações do Dia do Trabalho em Moscou, na Praça Vermelha. Oficiais do Terceiro Reich foram recebidos por Stalin e assistiram ao desfile do Exército Vermelho. Esse evento insólito, documentado por registros fotográficos, simboliza o ponto mais alto da colaboração entre os regimes de Hitler e Stalin antes da invasão alemã à URSS, em junho do mesmo ano. Esta colaboração se acompanhou da entrega de comunistas alemães refugiados na URSS para a Alemanha nazista.
Os Expurgos e a Fragilidade Interna da URSS
Entre 1937 e 1938, Stalin promoveu expurgos massivos que dizimaram miles de comunistas e a cúpula do Exército Vermelho. Marechais, generais e milhares de oficiais experientes foram executados ou enviados aos campos de trabalho forçado. O resultado foi um exército fragilizado, desorganizado e sem liderança confiável às vésperas do maior conflito da história soviética.
Segundo o Becker Friedman Institute, expurgos ideológicos como os realizados por Stalin prejudicam gravemente a capacidade de dissuasão e a prontidão militar.
A Espionagem Ignorada: Sorge, Trepper e a Orquestra Vermelha
Mesmo com o aparato repressivo e de inteligência da URSS, Stalin ignorou diversos avisos sobre a iminente invasão alemã. Sua desconfiança paranoica levou a erros catastróficos.
A rede de espionagem conhecida como Orquestra Vermelha (Rote Kapelle), coordenada por o comunista polonês Leopold Trepper na Europa Ocidental, enviou informações detalhadas sobre os preparativos da Wehrmacht. Um de seus agentes mais valiosos era Willi Lehmann, oficial da Gestapo que repassava dados diretamente à NKVD.
Outro herói do serviço de inteligência soviético foi Richard Sorge, agente do GRU baseado em Tóquio. Sorge conseguiu acesso a informações diretas da embaixada alemã no Japão e alertou repetidamente Moscou sobre a data exata da Operação Barbarossa. Todos os seus relatórios foram desconsiderados. Sorge seria preso em 1941 e executado em 1944, sem jamais ser reconhecido por Stalin em vida.
Ivan Proskurov, chefe do GRU, também advertiu sobre os riscos de uma traição alemã e foi punido com a demissão e, mais tarde, a execução. Após a guerra, Trepper foi preso pelo NKVD e passou anos detido antes de ser libertado. A negligência de Stalin diante desses alertas custou à URSS milhões de vidas.
A Tentativa de Stalin de Aderir ao Eixo
No auge da cooperação com a Alemanha nazista, Stalin chegou a explorar a possibilidade de adesão formal da União Soviética ao Eixo junto com Alemanha, Itália e Japão.
A proposta soviética de ingresso no Eixo, apresentada por Molotov em Berlim (novembro de 1940), revelava a natureza imperialista do stalinismo: não se tratava apenas de uma manobra tática, mas de um projeto concreto de partilha territorial às custas de nações soberanas. Os documentos mostram que Stalin exigia o controle dos Bálcãs, bases no Estreito de Bósforo (Turquia) e influência no Golfo Pérsico – ambições que ecoavam o expansionismo nazista, ainda que sob retórica ‘anti-imperialista’. A recusa de Hitler não decorreu de princípios, mas do cálculo de que a URSS, como sócia, seria mais perigosa que como presa. O episódio expõe a hipocrisia de um regime que, enquanto combatia o ‘fascismo’ na retórica, praticava a realpolitik mais brutal, disposto a sacrificar povos inteiros (como finlandeses, poloneses e bálticos) em seus jogos geopolíticos.
Hitler, desconfiado das ambições soviéticas, considerou a proposta inaceitável e, em segredo, já havia decidido invadir a URSS. O memorando soviético com as condições para entrada no Eixo foi encontrado nos arquivos alemães após a guerra e confirma a tentativa de Stalin de manter a aliança estratégica mesmo diante da crescente tensão.
O Inferno da Invasão e a Resistência Soviética
Em 22 de junho de 1941, a Alemanha rompeu o pacto e invadiu a União Soviética com uma força sem precedentes. A Operação Barbarossa foi um golpe brutal: milhões de soldados soviéticos foram mortos ou capturados nos primeiros meses. As regiões da Bielorrússia e da Ucrânia foram devastadas, e estima-se que a URSS tenha perdido cerca de 27 milhões de vidas durante a guerra. A Ucrânia perdeu 16,3% de sua população, entre civis e militares na luta contra Hitler, a Bielorrússia 25,3%, a Federação Russa 12,7%.
A resistência começou a se consolidar com a Batalha de Moscou, mas o grande ponto de virada foi Stalingrado. De agosto de 1942 a fevereiro de 1943, em combates urbanos de intensidade inédita com a participação da população da cidade, o Exército Vermelho cercou e derrotou o 6º Exército alemão. A vitória, conquistada com enorme sacrifício humano, representou o começo da contraofensiva soviética que culminaria na tomada de Berlim em 1945.
Apesar dos erros catastróficos de Stalin no pré-guerra e nos primeiros meses da invasão nazista, a vitória soviética não foi obra exclusiva do ditador, mas sim dos povos da URSS e de comandantes como Georgy Zhukov, que reorganizaram a defesa após os desastres iniciais.
Enquanto Stalin hesitava diante dos alertas de invasão, foram soldados, operários, camponeses e mulheres nas fábricas de armamentos que sustentaram o esforço de guerra. A defesa heroica de cidades como Leningrado (sitiada por 872 dias) e Stalingrado (onde combates casa a casa aniquilaram o 6º Exército alemão) foi conquistada com sangue e sacrifício coletivo, não por decreto do Kremlin.
Os verdadeiros heróis de Stalingrado foram:
Georgy Zhukov (Coordenador estratégico) – Planejou a contraofensiva (Operação Urano) que cercou os alemães. Aleksandr Vasilevsky (Chefe do Estado-Maior) – Ajudou a elaborar a operação de cerco. Vasily Chuikov (Comandante do 62º Exército) – Liderou a defesa urbana, com táticas de combate próximo que desgastaram os alemães. Nikolai Voronov – Responsável pelo uso maciço de artilharia no cerco. Andrei Yeryomenko e Konstantin Rokossovsky – Comandantes das frentes que executaram o cerco.
Stalin, é verdade, centralizou o poder e usou a propaganda para associar a vitória ao seu culto à personalidade, mas a história real pertence aos milhões que morreram, aos generais que corrigiram seus erros e aos cidadãos comuns que resistiram à máquina de guerra nazista. A narrativa oficial soviética — e, hoje, a da Rússia de Putin — tenta apagar essa complexidade, transformando a guerra em um mito monolítico onde apenas o “líder” importa.
Assim como Stalin instrumentalizou a vitória para justificar seu culto, Putin hoje distorce a memória da guerra para legitimar invasões como a da Ucrânia em 2022 – traindo os milhões de ucranianos e demais povos da URSS que morreram para derrotar a ideologia expansionista e colonialista que ele agora emula.
Mas os verdadeiros heróis foram aqueles que lutaram não por Stalin, mas apesar dele.
Uma Vitória Coletiva Contra o Eixo
Apesar da centralidade do front oriental, a vitória sobre o nazismo foi resultado de uma coalizão global. Desde 1940, o Reino Unido resistia heroicamente aos bombardeios da Luftwaffe. A liderança de Churchill e o esforço britânico impediram a dominação completa da Europa Ocidental. A entrada dos Estados Unidos, após o ataque a Pearl Harbor, deu nova escala ao conflito. No Norte da África, no Pacífico, na Itália e na França ocupada, os aliados abriram múltiplas frentes de batalha.
A resistência popular nos países ocupados também foi crucial. Partisans na Iugoslávia, sabotadores na França, guerrilheiros na Grécia e na Itália, além de combatentes na Polônia e na China, mantiveram viva a luta contra o Eixo mesmo sob ocupação brutal.
O Brasil, por sua vez, contribuiu com a Força Expedicionária Brasileira, que combateu na Itália ao lado das forças aliadas . Apolônio de Carvalho, um dos fundadores do PT, foi dos primeiros, na brigada de republicanos espanhóis a entrar em Paris e consolidar o levante parisiense contra os alemães.
8 de Maio: Memória, Alerta e Compromisso
Neste 8 de maio, Dia da Vitória dos Aliados na Europa, recordamos que a derrota do nazismo foi uma conquista coletiva dos povos que se uniram contra a tirania. Foi uma vitória da democracia sobre o fascismo, da solidariedade internacional sobre o ódio nacionalista.
Os verdadeiros herdeiros dessa vitória não são aqueles que hoje exaltam líderes autoritários, que manipulam comemorações para defender a invasão da Ucrânia, que reabilitam Stalin ou aqueles que relativizam Hitler. No caso dos neofascistas da AfD na Alemanha e de outras forças da extrema direita na Europa, são ao mesmo tempo, apoiadores da guerra imperialista de Putin e herdeiros políticos e defensores de Hitler.
Os verdadeiros herdeiros da vitória contra o nazismo são os povos da Europa que, a partir das ruínas da guerra, construíram a paz e a democracia no continente. A União Europeia, com seus 27 países pacificamente unidos em uma entidade comum, é um dos frutos mais notáveis dessa vitória.
Luis Favre
8 de maio 2025
FOTO: A parada do dia 1 de maio de 1941 em Moscou, na praça Vermelha, com a liderança da URSS presente, em peso, no topo do mausoléu do Lênin. A II Guerra Mundial decorre por quase dois anos, a Alemanha nazista invadiu a metade da Europa e o próprio marechal e comissário popular (ministro) da Defesa da União Soviética, Semyon Timoshenko, cumprimenta calorosamente os representantes do aliado da URSS, os oficiais do Wehrmacht: general Ernst-August Köstring; coronel (mais tarde general, POW dos americanos, em 1945, morreu em 1953) Hans Krebs (que se suicidou 4 anos mais tarde, exatamente no dia 1 de maio de 1945 em Berlim) e outros militares germânicos ao serviço do nazismo alemão. A II Guerra Mundial já decorria por 608 dias.