Por Fausto Antonio (*)
Epigrafia do modo de produção restitutivo
A ausência de propriedade privada da terra, nos quilombos, é decorrente do modo de produção restitutivo e/ou ancestral. O ato de restituir, conforme a base filosófica e política ancestral derivada do ebó, como conceito, não admite acúmulo, dominação, opressão, desigualdade e violência.
Quadro introdutório
O HQ Territórios negros é um artefato político e pedagógico. A apresentação do material, de acordo com o gênero textual HQ, é bem didática a respeito dessa delimitação:
Territórios Negros, Nossos Passos Vêm de Longe, é uma publicação de iniciativa do mandato da vereadora Guida Calixto, que tem o objetivo de homenagear espaços, organizações, manifestações e fatos históricos do povo negro (HQ Territórios Negros, 2024, p. 3)
No gênero História em Quadrinhos, na síntese HQ, há balões compostos por imagens e palavras. Os textos apresentam, na edição que contém 30 páginas, a partir de variados tipos e formas, os processos políticos, em Campinas, SP, na escala temporal, passado, presente e futuro e, no quadro de vida, prevalece a escala do território usado, do lugar e das relações esquizofrênicas.
A categoria território usado é uma chave e direção interpretativa das relações esquizofrênicas. Para ajustar a interpretação é necessário, no entanto:
[…] insistir na relevância, hoje, do papel da ciência, da tecnologia e da informação. Tratando de território, não basta falar de mundialização ou globalização, se desejamos aprofundar o processo de conhecimento desse aspecto da realidade total. O território são formas, mas o território usado são objetos e ações, sinônimo de espaço humano, espaço habitado (SANTOS, 2005, p.255)
Os conflitos de classe, raça e gênero, entre outros, são percebidos no território usado, base da existência e abrigo. É por tal razão que, antes da abordagem do gênero textual HQ, é útil informar que as categorias analíticas território e lugares esquizofrênicos significam que:
O território tanto quanto o lugar são esquizofrênicos, porque de um lado acolhem os vetores da globalização, que neles se instalam para impor sua nova ordem, e, de outro lado, neles se produz uma contra-ordem, porque há uma produção acelerada de pobres, excluídos, marginalizados (SANTOS,2000, p.57)
Para o nosso foco de análise, gostaríamos de enfatizar que se instala também, no território e nos lugares, a violência do racismo e, na encruzilhada, a luta antirracismo e contra o genocídio de negros.
Mas o HQ, o que é?
Feito o quadro introdutório, é necessário compreender, na forma e no conteúdo, o gênero discursivo HQ. Trata-se de um artefato que revela, numa sequência de textos híbridos, imagens e palavras, autorias negras territorializadas e, ao mesmo tempo, concebe uma recepção aberta e à disposição de todos os indivíduos e notadamente dos mais variados grupos étnicos, em cuja empatia sistêmica e epistêmica estão confiados o acesso e a ressignificação dos signos da negrura e da política antirracismo.
A despeito da metáfora homenagear, assentada pelo texto, a centralidade do espaço, conforme enunciado pelo HQ, possibilita recuperar, no trabalho pedagógico, a história e a socioespacialidade negra da cidade de Campinas-SP e da anterioridade e continuidade sustentada e ativada pela parelha África e Diáspora. Na abertura do HQ, a unicidade da parelha, empiricizada pela História, território e sistema cultural, é muito bem salientada no que concerne à construção de uma sociedade antirracismo: “que conheça, reconheça e valorize a história e cultura da população negra na cidade, no Brasil e na Diáspora” (HQ, p. 3).
A propósito da relação África e Diáspora, o HQ identifica as operações de invisibilidade e de apagamentos, substanciados pela historiografia hegemônica da branquitude, da História da África e do continente como espaço geográfico. O apagamento do continente tem desdobramentos e, no Brasil, Diáspora, resulta na invisibilidade da socioespacilidade legada pela herança negro-africana. O apagamento, derivado da produção de ignorância urdida pelo racismo, tem implicação para a devida e impostergável efetivação pedagógica e social das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008.
Contribuem para a política de apagamento, nos sistemas públicos e privados de ensino, os processos educativos formais. Nos espaços não formais, são produtores e reprodutores da invisibilidade de negros (as) e da África, compreendida a partir dos países e dos lugares, entre outros, os sistemas de comunicação branco, burguês e, no conjunto, especialmente o televisivo. Os processos racistas em pauta ignoram olimpicamente o que há, no Brasil, das portentosas heranças e elaborações civilizatórias, culturais, filosóficas e políticas africanas.
Nas páginas 4 e 5 do HQ, as enunciações alusivas à África enfatizam primeiro que: “ O Egito antigo foi negro e fonte para as sociedades gregas e romanas, que tiveram contato com a vasta produção de conhecimento dos egípcios em variadas áreas (HQ, 2024,p. 5).
E, segundo, que “A Núbia, situada no alto Nilo, dominou, por várias dinastias, o Egito antigo, sendo uma importante rota comercial e cultural entre a África profunda e o Mediterrâneo (HQ, p. 5).
As anterioridades históricas devem, em concordância com o desmonte das invisibilidades, além da valorização das origens e de feitos civilizatórios do Egito e antes ainda da Núbia, ressaltar e utilizar o método que articule, na dinâmica dos processos, a presença da África e de africanos na história da humanidade e no contínuo das suas Diásporas.
O território usado e praticado é a encruzilhada
Podemos nos referir ao enunciado relativo à encruzilhada e ao território de outro modo. Dessa perspectiva, a encruzilhada é o território usado e praticado. No HQ temos exemplos, em profusão, da encruzilhada como definidora de território usado e praticado. São emblemáticas, a propósito dessa socioespacialidade, as entidades seguintes: “Machadinho, Casa de Cultura Tainá, Academia Coquinho Baiano, Jongo Dito Ribeiro, Maracatu Urucungos, Afoxé Ylê Ogum, Banda dos Homens de Cor, Liga Humanitária dos Homens de Cor, Movimento Capoeira nas Escolas, MNU, Escolas de Samba Estrela Dalva e Rosa de Prata, Seminário Rap em Trânsito, Grupo Laudelina de Campos Melo”, entre muitos outros agentes culturais apresentados pelos balões do HQ.
O HQ possibilita o entendimento da encruzilhada, conceito e lugar, como círculo dinâmico e restitutivo do uso e igualmente da prática do território. A encruzilhada é o próprio território usado e tecido pela prática; o que resulta na inseparabilidade do território usado e do praticado pelas manifestações culturais negro-brasileiras. A encruzilhada é sinônimo de território concebido, vivido e entrelaçado por tudo que há no mundo secular; o espaço com limites: ayiê, e tudo que existe no espaço sem limites; orun, liame ancestral que define o território praticado.
Os processos educativos estabilizados e expandidos pelos lugares são meios para a aplicação das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008
Na argumentação posta aqui, inferida pela relação indissociável e dinâmica dos “movimentos, organizações e fatos históricos do povo negro” (HQ, 2024, p. 3), o espaço, a mesma perspectiva se aplica ao sistema cultural negro-brasileiro, é considerado uma instância social. Além da inferência contida na malha discursiva e imagética apresentada pelo HQ Territórios Negros, é indispensável a apropriação da conceituação, relativa ao espaço geográfico, formulada por Milton Santos que assinala: o objeto da geografia “é um conjunto indissociável e contraditório de sistemas de objetos e ações” (SANTOS, 2006, p. 12).
Por igual importância no uso pedagógico e derivada da concepção de espaço geográfico, a apresentação ressalta a nuclear força dos fatos históricos. É útil rever e utilizar, conforme propõe o HQ, os fatos históricos do povo negro de modo retrospectivo e prospectivo? Sim, para tanto utilizaremos, como chave interpretativa e de intervenção, com especial ênfase, a relação de inseparabilidade do “estágio de desenvolvimento dos sistemas técnicos e da política” (SANTOS, 2000, p. 12). Política entendida como modo de produção da existência e de acesso aos meios de produção e, na mesma lógica, de produção e de acesso ou não aos sistemas técnicos industriais, de transporte, hospitalares, médicos, habitacionais, viários, rodoviários, educacionais, jurídicos, militares, parlamentares e informacionais.
O objetivo da reflexão é, de um lado, apresentar uma conceituação de espaço geográfico e, de modo indissociável da socioespacialidade, negritar que os currículos são bases materiais, artefatos, e não se limitam aos espaços formais de ensino, aprendizagem e pesquisa. Em concordância com os embates por hegemonia, os currículos dos estabelecimentos formais serão, como sistemtiza o HQ Territóios Negros, questionados e renovados pelos currículos estabilizados e expandidos pelos processos educativos dos lugares. De outro modo, os processos educativos não formais, estabilizados e expandidos pelos lugares, são meios para a aplicação das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008 e, ao mesmo tempo, são recursos teóricos, conceituais, metodológicos e sistemáticos para a renovação de todas as disciplinas históricas existentes na grade oficial de ensino. É fundamental igualmente o ingresso, no sistema formal de ensino, de novas disciplinas estabilizadas e expandidas pelos lugares. Dentre muitas sistematizações estabilizadas e expandidas pelos lugares destacamos: os fundamentos filosóficos e práticos do samba e da capoeira; Grafite, Pichação e Poesia Visual, A História das Manifestações Culturais Negras em Campinas e Classe, Raça, Gênero e Território Usado como Conjunto Indissociável.
Os currículos são totalidades
Os currículos são totalidades. Sendo constituídos como um todo, eles estão na sociedade e não tão-somente nos espaços e processos educativos formais. A referência à totalidade é, a rigor, o entendimento da centralidade dos processos educativos formais e igualmente dos processos educativos não formais. Em outros termos, o reconhecimento histórico dessa totalidade é, mediante a relação dialógica e de embates por hegemonia nos processos de ensino e aprendizagem, nuclear para compreensão da sociedade e também da natureza do currículo.
A disputa curricular não se limita, portanto, aos espaços formais de ensino, aprendizagem e pesquisa. Temos, então, na disputa por hegemonia curricular, os processos educativos estabilizados e expandidos pelos lugares. Ilustrativos dessa categoria curricular são o Dia Nacional da Consciência Negra e a releitura historiográfica e política do 13 de maio de 1888, Dia Nacional de Luta e Denúncia do Racismo no Brasil.
No contexto dos países africanos, temos as línguas estabilizadas e expandidas pelos lugares, por exemplo, em Cabo Verde e Guiné Bissau. No entanto, os chamados crioulos e/ou línguas cabo-verdianas e guineense não estão presentes na alfabetização e menos ainda no letramento, que é verticalizado pelo português; o que gera uma profunda esquizofrenia linguística nos lugares cabo-verdianos e guineenses.
As formulações estabilizadas e expandidas pelos lugares estão, ou melhor, só existem e têm eficácia em confrontação com os currículos esquizofrênicos persistentes nos espaços educativos formais e também nos não formais. É assim, nos embates, que a totalidade social se historiciza e/ou se empiriciza. Dentro desses limites, por equivalência, temos os meios e os recursos sistêmicos e epistemológicos para entender a razão pela qual se apresenta, como categoria analítica, o enunciado que salienta que o currículo, produção dos processos educativos formais e não formais, é tudo aquilo que há na sociedade.
Além da centralidade dos processos educativos formais e dos processos educativos não formais, é objetivo deste artigo apresentar categorias curriculares que revelem, sem menosprezar as abstrações, as bases materiais e, sobretudo, espaciais e/ou socioespaciais dos currículos. Podemos afirmar que não mudamos o mundo com educação; mas sim com processos educativos que assegurem, do ponto de vista teórico, conceitual, metodológico, filosófico e político, sobretudo, os meios ou recursos para as transformações estruturais da sociedade.
O lugar é uma categoria espacial . Na obra de Milton Santos ( 2001,p.108), há uma formulação que enuncia o lugar como espaço do acontecer solidário é homólogo e, no contínuo da compreensão, o autor diz que o lugar pode ser também comandado por uma força externa: E há, também, o acontecer hierárquico, resultante das ordens e da informação provenientes de um lugar e realizando -se em um outro, como trabalho.
Maria Adélia de Sousa[1], de modo distintivo e, no entanto, complementar, afirma “ o lugar como espaço que possibilita o pacto político”. É útil acompanhar a reflexão da geógrafa no vídeo em destaque. Nas minhas sistematizações, a respeito dos currículos estabilizados e expandidos pelos lugares, afirmo que há currículos dessa natureza quando as sistematizações (os currículos) “universais”, a rigor universalizantes, são refutados e neutralizados (ANTONIO, 20152021). Aportes dessas sistematizações, na lógica do uso interdisciplinar dessa categoria de análise, foram feitas pelo geógrafo Milton Santos (2006) e pela geógrafa Maria Adélia de Sousa[2] para teorizar e empiricizar o espaço como instância social.
Respeitando as formulações seminais dos geógrafos em pauta, os currículos estabilizados e expandidos pelos lugares, como categoria curricular, existem somente quando neutralizam os currículos esquizofrênicos e alheios às realidades dinâmicas dos lugares (ANTONIO, 2021). Os currículos esquizofrênicos, intrusos e verticais, são, portanto, aqueles derivados do universalizante racista, ocidental, branco, burguês, imperialista” e sionista; o que significa levar em conta “o estágio da globalização como perversidade” (SANTOS, 2000, p.19).
O HQ Territórios Negros é tributário dessa categoria curricular que, estabilizada e expandida pelos lugares, expulsa os currículos verticais, naturalizadores do racismo, produtores da invisibilidade teórica e socioespacial de negros(a), trabalhadores (as) e segmentos populares.
Currículos estabilizados e ancestrais
A categoria currículos estabilizados e expandidos pelos lugares é central para a leitura e uso, a propósito de aplicação das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, do HQ dos Territórios Negros, artefato pedagógico e político sistematizado pelo participativo e articulado mandato da vereadora Guida Calixto, PT, Campinas, SP.
Os currículos estabilizados e expandidos pelos lugares só existem e têm eficácia quando refutam e, a rigor, expulsam e desmontam teórica e politicamente os currículos universalizantes; verticais, típicos da perspectiva totalitária eurocêntrica. Os currículos estabilizados expandidos pelos lugares são, em concordância com um pacto e/ou acordo político, dinamizados pela aproximação horizontal fertilizada pela comunicação e consequente e subsequente solidariedade. Desse modo, a contrapelo das verticalidades impostas por processos de informação e, notadamente, de contracomunicação contínua fragmentada, eles revelam o chão da sociedade; espaço no qual a relação encruzilhada e indissociável de classe, raça, gênero e território usado (SANTOS, 2005, p. 255) se fazem e se refazem como socioespacialidade ancestral ativa. Em outros termos, há nos lugares a força da horizontalidade e da relação compartilhada pela aproximação histórica. A aproximação implica, necessariamente, num dinâmico e circular grau de solidariedade, exusisticamente viabilizado pela aproximação espacial, corporal e do tempo vivido e/ou, numa síntese, empiricizado pela concretude socioespacial.
O que significa, então, a categoria socioespacialidade ancestral ativa e/ou quilombola? Para compreendê-la, exercício semelhante ao entendimento do complexo, dinâmico e milenar, como contínuo africano, sistema cultural negro-brasileiro, há necessidade do uso metodológico, interdisiciplinar e interpretativo do motor filosófico e do motor político. Os dois motores exúsicos asseguram a compreensão da ancestralidade como categoria filosófica e modo de produção da existência. A ancestralidade, além do vínculo relativo à herança veicular familiar de sangue biológico e/ou de sangue espiritual, é base para a produção teórica, conceitual e, como motor político restitutivo, é sistematizadora de um modo de produção, o ancestral, contrário ao acúmulo e, sendo assim constituído, se define e funciona como modo de produção restitutivo e/ou anticapitalismo. A ausência de propriedade privada da terra, nos quilombos, é decorrente do modo de produção restitutivo e/ou ancestral.
O ato de restituir, conforme a base filosófica e política ancestral derivada do ebó; como conceito, não admite acúmulo, dominação, opressão, desigualdade e violência.
A ancestralidade, como categoria curricular, exige um salto além dos currículos de projeção. Conceitualmente, os currículos projetivos, desconsiderando os motores exúsicos impulsionados pela filosofia e pela política, ficam apenas na superfície da realidade social e, fundamentalmente, do sistema cultural negro-brasileiro. Assim articulado, o currículo projetivo não vai além do aspecto imediato e externo do samba, da capoeira, do maracatu, do afoxé e de tantas outras manifestações negras e populares. Há, então, uma redução das manifestações culturais ao canto, dança e música e a invisibilidade urdida, sistematizada e ideologizada da fundamental totalidade desse sistema e, principalmente, dos motores filosóficos e políticos, que se definem respectivamente como modo de produção de ideias, teorias, conceitos e de produção da existência restitutiva.
(*) Fausto Antonio é escritor, poeta, dramaturgo e professor da Unilab, Bahia.
Referências
ANTONIO, Carlindo Fausto. Descolonização dos currículos escolares. In: SILVA, Geranilde Costa; LIMA, Ivan Costa; MEIJER, Rebeca Alcântara da Silva (org). Abordagens políticas, históricas e pedagógicas de igualdade racial no Brasil. E-Book. Fortaleza: Unilab, 2015.
ANTONIO, Carlindo Fausto. A língua usada como produção do território, do lugar, do cotidiano e do sistema cultural. Revista Capoeira Humanidade e Letras, vol. 7 n. 2, 2021.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 30ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2000.
SANTOS, Milton et al. Território e sociedade: entrevista com Milton Santos. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo. 2001.
SANTOS, Milton. O retorno do território. En: Observatorio Social de América Latina. Año 6 no. 16 (jun. 2005). Buenos Aires: CLACSO, 2005.
SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica, Razão e Emoção. 3ª Edição. São Paulo: Edusp, 2006.
[1] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=S6zn7FW3KQg. Acesso em: 19 de agosto de 2024.
[2] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=S6zn7FW3KQg. Acesso em: 19 de agosto de 2024.