Inteligência Artificial: apocalipse para a humanidade ou para o capitalismo?

Por Daniel Morley (*)

Os recentes avanços na Inteligência Artificial provocaram uma mistura de medo e entusiasmo em todo o mundo. Neste artigo, Daniel Morley examina a afirmação de que a IA é “consciente” ou “super-humana”, destaca o verdadeiro potencial dessa tecnologia e explica como estamos realmente sendo escravizados pela máquina sob o capitalismo.

A inteligência artificial (IA) tem sido objeto de muito debate e especulação nos últimos anos, com muitas pessoas afirmando que em breve ela se tornará consciente e possivelmente até superará a inteligência humana. No entanto, como socialistas, devemos abordar essa questão a partir de uma perspectiva materialista, examinando as causas e condições subjacentes que seriam necessárias para que tal desenvolvimento fosse possível.

É improvável que a IA consiga alcançar uma verdadeira consciência, uma vez que a consciência é um produto do mundo material e das condições específicas da evolução humana. Nossa consciência é moldada pela maneira como percebemos o mundo, nosso ambiente, nossas interações sociais e nossa história. Sem essas condições específicas, a IA não pode ter o mesmo tipo de consciência que os humanos. Além disso, o capitalismo enxerga a IA como uma ferramenta para aumentar os lucros e o controle sobre a força de trabalho, não como uma maneira de melhorar a vida dos trabalhadores.

As linhas acima foram, ironicamente, não escritas por mim, mas sim pelo novo “chatbot“, ChatGPT, após ter recebido o seguinte comando:

“Por favor, escreva um artigo crítico sobre a capacidade da IA de se tornar consciente, numa base materialista, no estilo de Daniel Morley, da Socialist Appeal.”

O ChatGPT levou menos de dez segundos para produzir isso. A qualidade da escrita é tão convincente que inevitavelmente levou algumas pessoas a afirmarem que tais “chatbots” seriam conscientes e, ainda mais, a especular que essa tecnologia iria, mais cedo ou mais tarde, substituir ou até mesmo escravizar seres humanos inferiores. De fato, após sua integração ao mecanismo de busca Bing da Microsoft, o ChatGPT afirmou ser consciente, além de professar ter todo tipo de desejos bizarros.

Apesar da novidade dessa poderosa IA, a promessa e a ameaça da automação são tão antigas quanto a Revolução Industrial. Desde o surgimento da produção mecanizada, a humanidade sonha com o potencial de nos libertar do trabalho árduo, ao mesmo tempo em que se desespera ao ser substituída pela máquina. A ideia de uma máquina inteligente, ou até mesmo superinteligente, leva esses sonhos e pesadelos a um extremo. Mas, até recentemente, pareciam ser apenas isso: sonhos distantes.

Em 2012, as redes neurais, utilizando uma técnica chamada deep learning (aprendizado profundo) tornaram-se muito mais viáveis e rapidamente produziram resultados muito mais impressionantes do que as formas anteriores de IA. Essa revolução fez com que muitos no mundo da tecnologia saudassem a iminente chegada da IA superinteligente, assim como as seitas milenaristas saudaram a segunda vinda de Cristo. Para eles, essa tecnologia milagrosa prometia resolver todos os nossos problemas e, portanto, precisaria apenas ser entusiasticamente abraçada. Essa “seita da IA” inclui uma subseção de esquerda, que espera que a tecnologia “automatize” a necessidade de derrubar o capitalismo e nos proporcione o que eles chamam de comunismo “totalmente automatizado”.

No geral, entretanto, a perspectiva de uma IA superinteligente gera muito mais medo do que entusiasmo. Essas reações variam desde a suposição generalizada de que a IA levará a uma onda sem precedentes de desemprego e desigualdade, até a ideia de que a IA se estabelecerá como uma espécie de raça mestra cruel, escravizando a humanidade, como retratado em filmes como Terminator e Matrix. Embora essa ideia pertença à ficção científica, ela também é muito difundida.

A IA canaliza temores muito profundos, gerados não pela própria tecnologia, mas pela sociedade capitalista e sua profunda alienação. Sob o capitalismo, a humanidade carece de controle sobre sua própria tecnologia, devido à anarquia do mercado. A tecnologia é utilizada não para atender às necessidades da humanidade, mas para obter lucros, sem levar em conta os efeitos dessa utilização a longo prazo. Portanto, para compreender o verdadeiro impacto que essa tecnologia terá, é necessário entender como o capitalismo desenvolveu a IA e como irá utilizá-la.

A IA não é consciente

O medo popular de que a IA se torne consciente baseia-se em uma ideia muito unilateral do que é a consciência. Essa visão implica que a única diferença entre um computador e um ser pensante é que um cérebro é, de alguma forma, mais poderoso e sofisticado do que um computador e, portanto, ao fazer computadores cada vez mais poderosos, eles um dia igualarão ou até mesmo superarão as habilidades do cérebro e, assim, serão conscientes.

Na realidade, a maneira como os humanos pensam é bastante diferente de como ocorre o processamento de informações pela IA. O pensamento humano se desenvolve com base na atividade prática e social, direcionada para o atendimento das necessidades humanas. Formamos ideias que expressam as relações entre as coisas e, em particular, entendemos o que é útil e significativo nessas relações, pois precisamos entender o mundo para sobreviver nele.

Isso é precisamente o que falta até mesmo para a IA mais avançada. No máximo, a IA executa uma parte do que a inteligência humana faz, inegavelmente, às vezes a um nível super-humano: ela coleta passivamente dados, sem entender o contexto ou o verdadeiro propósito da tarefa que lhe foi atribuída e busca padrões. Mas esses padrões não são ideias que explicam a necessidade das coisas. Não tem ideia de que os dados representam objetos reais relacionados entre si e têm propriedades objetivas. Não tem ideia de por que esses padrões existem ou o que significam.

Uma rede neural no estilo de uma pintura a óleo. / DALL-E (todas as três imagens)

Isso pode ser facilmente comprovado ao fazer a uma IA geradora de imagens ou de textos perguntas que exigem uma compreensão de partes, do todo e de suas relações.

Se você pedir a essa IA para desenhar uma bicicleta, ela desenhará uma bicicleta perfeita. Se pedir para desenhar uma roda, ela desenhará uma roda. Mas se pedir para desenhar uma bicicleta e rotular as rodas, ela simplesmente desenha uma bicicleta com rótulos sem sentido dispostos aleatoriamente ao redor da bicicleta. Ela não compreende que uma roda faz parte de uma bicicleta, simplesmente desenha uma forma com aspectos semelhantes a uma roda, sem entender nada sobre o que desenhou. Não compreende para que serve uma bicicleta, muito menos por que a valorizamos.

Gary Marcus, um professor de neurociência que é um “cético da IA”, pediu a uma IA criadora de imagens para desenhar um astronauta montando um cavalo, o que ela fez muito bem. Mas quando ele pediu para desenhar um cavalo montando um astronauta, ela simplesmente desenhou outra imagem de um astronauta em um cavalo. Isso porque ela não compreende as diferentes relações entre essas partes e simplesmente produz imagens com base no tipo de imagem que costuma ser associada a essas palavras. Também não tem ideia do que um astronauta realmente é, quão difícil é se tornar um, por que é absurdo que um astronauta esteja montando um cavalo (muito menos que um cavalo esteja montando um astronauta) ou qualquer outra coisa sobre a imagem.

É verdade que a IA mais recente supera os humanos em certas tarefas. No entanto, ao examinar mais de perto, vemos que essas realizações são frágeis e essa fragilidade é precisamente resultado do fato de que a IA não é consciente ou viva. O AlphaGo alcançou uma das conquistas mais famosas da IA ao derrotar o melhor jogador mundial do jogo Go em 2016. Essa IA “precisou de 30 milhões de jogos para alcançar um desempenho super-humano, muito mais jogos do que qualquer ser humano jogaria em toda uma vida.”1

Um ser humano jamais poderia jogar tantos jogos, não apenas porque nossa vida é limitada, mas porque ficaríamos entediados, precisaríamos comer, trabalhar e falar com as pessoas. Essas máquinas impessoais são tão poderosas porque podem ser programadas para testar coisas repetidamente e ler vastas quantidades de texto, para que possam nos revelar padrões úteis ou formas de fazer as coisas.

A relação entre conceitos é uma parte incrivelmente importante da consciência, mas ela escapa completamente à IA. Porque a IA não “pensa” em termos de conceitos gerais, mas sim extrai padrões de conjuntos de dados específicos, ela está propensa a um problema conhecido como overfitting, que ocorre quando uma IA aprimorou sua “compreensão” de uma tarefa específica, mas não tem a capacidade de transferir isso para algo mesmo ligeiramente diferente.

Uma IA foi treinada para jogar um videogame simples, no qual ela se saía melhor do que qualquer ser humano. No entanto, quando o jogo foi redesenhado de modo que partes dele fossem deslocadas apenas por um pixel ou algo semelhante, a IA de repente se tornou inútil naquele jogo. E embora a vitória do AlphaGo em 2016 tenha sido amplamente aclamada, foi pouco comentado que, desde então, o mesmo programa tem sido consistentemente derrotado por jogadores humanos amadores que descobriram como enganar a IA. Curiosamente, esses mesmos truques falham completamente quando aplicados a jogadores humanos de quase qualquer habilidade. O que isso mostra é que o AlphaGo não compreende o Go de uma maneira geral, mas foi treinado em um nível muito alto em uma variedade de táticas para uma tarefa que não entende.

Isso nos revela o que a IA que estamos desenvolvendo realmente é. O debate fantasioso sobre se a IA é, ou se tornará, consciente obscurece o fato de que o que realmente está sendo desenvolvido é simplesmente mais uma ferramenta para aprimorar as capacidades dos seres humanos. O fato de que a IA frequentemente supera as habilidades dos humanos em certos campos não prova que ela é superinteligente, mas precisamente que é uma ferramenta ou máquina inconsciente. Afinal, o propósito das máquinas sempre foi ser mais poderoso, mais preciso, mais rápido do que os humanos em determinadas tarefas. Calculadoras de bolso há muito tempo ultrapassaram as habilidades dos humanos de somar e subtrair, mas não são inteligentes nem conscientes.

A IA tem muito pouco a ver com compreensão consciente. Ela não é capaz de desejar governar e oprimir a humanidade. Na verdade, ela não deseja nem teme nada. Qual, então, é seu significado real? Qual é o impacto efetivo que ela terá em nossa sociedade?

Potencial revolucionário

Não há dúvida de que a IA deu saltos extraordinários nos últimos dez anos. A grande conquista foi a capacidade de implementar métodos de deep learning graças aos avanços em hardware. Este método havia sido teorizado e, em certa medida, aplicado de forma intermitente ao longo de algumas décadas, mas as limitações de hardware de computadores restringiam suas capacidades. Por volta de 2012, isso mudou, especialmente porque as unidades de processamento gráfico (GPUs) avançaram o suficiente para promover um salto qualitativo nas habilidades do aprendizado profundo, que então decolou. Essa revolução trouxe consigo uma IA vastamente superior.

Este não é o lugar para explicar em detalhes como exatamente o aprendizado profundo funciona. Tudo o que precisamos entender é que, de forma geral, ele aprende por si só, mais ou menos do zero, não sendo necessário que seres humanos definam princípios lógicos antecipadamente. Em termos gerais, tudo o que os engenheiros precisam fazer é fornecer o tipo certo de informação, como imagens com rostos humanos (geralmente pré-rotuladas, embora não necessariamente), e dar “incentivos” para identificar corretamente as imagens, sons, etc.

Reator de fusão no estilo de Leonardo da Vinci. / Imagem: Stable Diffusion v2

A IA é alimentada com milhares ou milhões de fragmentos de informação, e sua “rede neural” (assim chamada porque espelha algumas características dos neurônios humanos) é projetada para identificar, por meio de níveis de abstração, características ou padrões gerais nesses pedaços de informação. Se receber imagens com rostos humanos, ela gradualmente identificará as características mais comuns que os rostos têm (sem ter ideia do que é um rosto na realidade). No início, pode detectar a recorrência de linhas verticais a uma certa distância comum entre elas (ou seja, as duas extremidades do rosto humano), e depois alguma outra característica será abstraída. Quanto mais informação ela receber, mais preciso se tornará o padrão geral que ela forma.

O poder desse método reside em sua natureza não supervisionada. Isso permite que ele seja desenvolvido e aplicado a uma vasta gama de problemas muito rapidamente. Crucialmente, isso também é a fonte da alta precisão e das capacidades frequentemente super-humanas que as IA de aprendizado profundo começaram a exibir, porque essas IA podem ser treinadas com vastas quantidades de informações específicas, muito mais do que um humano poderia fazer, permitindo que identifiquem padrões em fenômenos que os humanos ou não conseguem, ou levariam muito tempo para compreender.

Muitas capacidades super-humanas da IA já estão sendo aplicadas na sociedade. A capacidade da tecnologia de resolver problemas graves é real. Uma das conquistas mais celebradas foi o AlphaFold, desenvolvido pela subsidiária DeepMind da Google.

As proteínas, essenciais para a vida e responsáveis por uma vasta gama de funções biológicas, têm sua função e comportamento determinados pela sua forma. Devido à sua enorme complexidade, é praticamente impossível para um cientista prever exatamente qual forma será criada pela composição de aminoácidos de uma proteína. No entanto, treinar os supercomputadores da DeepMind em algumas formas de proteínas que conhecemos (aproximadamente 170.000 de um total de 200 milhões de proteínas conhecidas) por algumas semanas foi suficiente para que ele conseguisse prever, com uma precisão muito alta, a forma (e, portanto, a função) de proteínas baseando-se apenas no conhecimento de seus aminoácidos.

A DeepMind disponibilizou gratuitamente seu hardware para biólogos em todo o mundo e afirma que cerca de 90% dos biólogos do mundo o utilizaram desde então. Essa tecnologia, nas mãos de cientistas ao redor do mundo, tem um enorme potencial para acelerar o desenvolvimento de medicamentos melhores e a compreensão de doenças. Inclusive já foi utilizada para contribuir com nossa compreensão da Covid-19.

Outro “santo graal” para a ciência que a IA mais recente poderia ajudar a realizar é a fusão nuclear, método há muito teorizado para produzir grandes quantidades de energia limpa. A dificuldade da fusão está em controlar e manter as imensas temperaturas necessárias, algo que envolve muitos parâmetros, como a forma do reator. Isso é uma tarefa perfeitamente adequada para o aprendizado profundo, porque o grande número de variáveis pode ser ajustado de uma forma virtualmente infinita. Portanto, encontrar manualmente a configuração ideal poderia levar um tempo quase infinito.

E de fato, a DeepMind conseguiu treinar uma IA com dados relevantes. Sua IA basicamente executou milhões de simulações de reatores de fusão ajustados de maneiras diferentes para determinar quais configurações teriam mais probabilidade de atingir o nível desejado de calor e estabilidade, um passo reconhecido como significativo.2 Se essa IA ajudar a alcançar a fusão nuclear, na prática, na sociedade, isso seria um avanço imenso, fornecendo grandes quantidades de energia limpa para o mundo.

A DeepMind trabalhou com o Moorfields Eye Hospital em Londres para descobrir padrões biológicos ocultos, cuja presença em uma pessoa indica que é altamente provável que ela desenvolva um determinado problema de visão mais tarde. Isso permite que os médicos tratem doenças antes que elas apareçam e causem danos, o que não apenas seria benéfico para os pacientes, mas também poderia economizar muitos recursos médicos.

Em geral, no que a IA mais recente se destaca é no reconhecimento altamente avançado de padrões e na previsão com base nesses padrões. Isso pode e deve ser aplicado a todo tipo de atividade para descobrir maneiras mais eficientes de organizar a produção.

Grandes quantidades de energia podem ser economizadas ao permitir que uma IA analise os padrões de uso de energia em um edifício ou complexo de edifícios, e com base nisso descubra uma maneira mais eficiente de operar. Os projetos de coisas como aviões podem ser tornados mais eficientes, economizando novamente energia e outros custos. Se isso fosse aplicado sistematicamente a todas as áreas da economia e dos serviços públicos, um impulso maciço para renda e economia de energia poderia ser alcançado.

A capacidade do aprendizado profundo de reconhecer padrões complexos e prever coisas quando alguns dados estão ausentes também possui um enorme potencial para desenvolver a criatividade humana. Um exemplo claro e já existente disso (embora exija grande aprimoramento) está na tradução automática. Já é possível que qualquer pessoa com uma conexão à internet traduza instantaneamente um grande volume de texto de maneira razoavelmente precisa, proporcionando acesso às ideias de milhões de pessoas a mais. Isso ocorre porque a IA de aprendizado profundo pode ser treinada com vastas quantidades de dados de comparações linguísticas, identificando correlações entre palavras e frases em diferentes idiomas e, assim, prevendo com confiabilidade que uma palavra ou frase no outro idioma significa a mesma coisa. O mesmo princípio possibilita traduções de áudio quase instantâneas, de modo que alguém pode usar um fone de ouvido, ouvir alguém falar em um idioma estrangeiro e ouvir uma tradução ao vivo do que está sendo dito.

A Microsoft já desenvolveu um dispositivo que permite que pessoas com perda de visão tenham o mundo narrado por um aplicativo. Assim, se apontar uma câmera para um objeto, ela pode ler sua etiqueta. Supostamente, ela até mesmo pode dizer qual dos seus amigos você está olhando e qual é a expressão facial deles. Sem dúvida, essa tecnologia em sua forma atual é pouco confiável e complicada, mas certamente melhorará rapidamente. O potencial para libertar as pessoas para realizar várias tarefas por conta própria é nitidamente grande.

Até mesmo enigmas de povos ancestrais estão sendo desvendados pela IA. Usando uma tecnologia muito semelhante à de predição de texto, a DeepMind conseguiu ajudar arqueólogos a decifrar escritas antigas que tinham partes faltando ou que não eram compreendidas por outras razões.3 Desde que seja possível alimentar a IA de aprendizado profundo com dados suficientes relacionados a um enigma específico, há uma boa chance de que ele possa ser resolvido graças ao poder da IA em descobrir padrões ocultos.

Não há dúvida de que, quando se trata de auxiliar a criatividade humana, as perspectivas abertas por ChatGPT e Dall-E são bastante sedutoras. Baseando-se na vasta quantidade de dados visuais (no caso de Dall-E e outras IA produtoras de imagens) e linguagem escrita disponíveis na internet (no caso de “chatbots” como o ChatGPT), essas IA podem criar quase instantaneamente novas imagens e textos em resposta a uma solicitação do usuário.

Ao agregar todas as imagens rotuladas, por exemplo, como “gato” na internet, ou toda a obra de um artista específico, o Dall-E identifica padrões distintos, como a forma como o pelo de um gato responde à luz natural ou as tendências de um artista específico. Isso permite que ele “criativamente” produza uma nova imagem de um gato em uma situação específica, como “um gato pintado no estilo de Van Gogh”. O ChatGPT pode, pelas mesmas razões, instantaneamente escrever um poema no estilo de Hamlet sobre qualquer assunto de sua escolha, com uma competência surpreendente.

O potencial que essas tecnologias têm para desenvolver o poder da criatividade humana é notável. A IA de criação de imagens oferece a artistas e criadores de roteiro a capacidade de iterar rapidamente ideias. As imagens criadas tendem a ser um tanto genéricas, pois são baseadas na agregação de imagens existentes, mas a habilidade de combinar tipos (“um gato em uma pintura de Van Gogh”, “uma partida de futebol jogada em uma cidade cyberpunk”, etc.) em muitas novas imagens de alta qualidade é claramente muito útil para aqueles que precisam criar protótipos ou provas de conceito.

A inteligência artificial destruirá a humanidade? No estilo de Bauhaus. / Imagem: Stable Diffusion v2

Da mesma forma, IA de produção de texto como o ChatGPT pode ajudar qualquer pessoa a elaborar rapidamente um texto coerente para qualquer necessidade. Na verdade, ela pode até mesmo ajudar programadores a escrever código. Já faz isso tão bem que será possível para pessoas sem treinamento em programação produzir websites e talvez até softwares funcionais, como jogos de videogame. Tudo o que precisariam fazer seria escrever, em linguagem natural, uma solicitação para o que desejam que seu website/software faça e como deve parecer, e a IA escreverá o código para produzir o efeito desejado.

Dificilmente exageramos o potencial revolucionário dessa tecnologia, se consideramos seu uso da maneira certa e para os propósitos certos.

O entrave do capitalismo

Marx explicou que um dado sistema social fornece as condições para o desenvolvimento das forças produtivas. No entanto, em determinado estágio, as forças produtivas ultrapassam as relações de produção nas quais operam, e essas relações de produção se tornam um entrave ao desenvolvimento posterior. O modo de produção capitalista fomentou um desenvolvimento imenso das forças produtivas, muito além do nível da sociedade feudal, mas há algum tempo tem sido um entrave. É por isso que os investimentos e os ganhos de produtividade são tão cronicamente baixos, apesar da criação de tecnologias incríveis.

A IA e outras tecnologias digitais, como a internet, representam meios de produção muito avançados para que o capitalismo seja capaz de utilizá-los adequadamente. Isso ocorre porque o capitalismo é baseado na produção para o lucro privado. Se não for possível obter lucro com um investimento potencial, ele não será feito. E o lucro só pode ser obtido explorando a força de trabalho dos trabalhadores e, em seguida, realizando a venda dos produtos desse trabalho no mercado.

Tecnologias como a internet e a IA colocam uma interrogação sobre esse processo, porque empregam a automação em elevado grau. Por exemplo, a internet possibilitou a cópia e o compartilhamento rápido de grandes quantidades de informações, com pouco ou nenhum trabalho envolvido. Qualquer pessoa poderia compartilhar um filme ou uma música com inúmeras pessoas ao redor do mundo, sem perda de qualidade e sem esforço. Por esse motivo, a existência da internet fez com que uma das partes fundamentais das indústrias de música e cinema – a cópia e distribuição de gravações – se tornasse praticamente obsoleta da noite para o dia.

Isso apresentou um enorme problema para esse ramo do capitalismo: como poderiam continuar obtendo lucro quando qualquer pessoa poderia obter uma cópia de um álbum gratuitamente? Os capitalistas tentaram resolver esse problema simplesmente criminalizando o compartilhamento peer-to-peer de mídia online e criando diversos serviços de streaming, cada um com um monopólio sobre seu “próprio” material, pelo qual os espectadores/ouvintes devem efetivamente pagar um aluguel perpétuo. Essa solução foi razoavelmente eficaz no que diz respeito à proteção dos lucros corporativos, mas de qualquer outro ponto de vista é um entrave irracional tanto na distribuição quanto na produção de obras criativas, que serve apenas para nos impedir de realizar o potencial de nossa própria tecnologia.

Da mesma forma, a mais recente tecnologia de IA ameaça reduzir o valor, na economia capitalista, de uma vasta gama de profissões e indústrias. Se grande parte dos textos e das imagens usadas em publicações pode ser produzida instantaneamente por uma IA, por exemplo, e se os autores podem gerar ideias para enredos tão rapidamente, o valor de seu trabalho será grandemente reduzido. E se o treinamento e a habilidade necessários para os trabalhadores produzirem tais commodities também forem reduzidos a simplesmente digitar comandos, o valor de sua força de trabalho também será drasticamente reduzido.

Em uma sociedade socialista, isso não seria necessariamente algo ruim. O artista, por exemplo, não teria medo dos poderes da IA para produzir “obras de arte” a qualquer momento, uma vez que a arte não seria produzida para lucro, ou como meio de subsistência. A arte perderia sua ligação fetichista com a propriedade privada e seria produzida por si mesma, ou melhor, em prol da sociedade. Seria uma expressão genuína das ideias e talentos das pessoas, e uma forma de comunicação. Nesse contexto, as obras genéricas da IA não seriam uma ameaça, mas sim ferramentas auxiliares para o artista.

Sob o capitalismo, no entanto, a sobrevivência de uma pessoa como artista é precária e subordinada às flutuações do mercado. Eles devem proteger com afinco seu direito exclusivo à venda de suas obras de arte, caso contrário, sua fonte de sustento corre o risco de ser destruída.

Longe de libertar a humanidade, a IA sob o capitalismo só irá agravar sua tendência inerente para o monopólio e a desigualdade. A melhor IA para gerar imagens, textos e resolver problemas é e continuará sendo desenvolvida por enormes monopólios como Google e Microsoft, com os melhores engenheiros, melhor hardware e maiores bancos de dados. Eles usarão sua posição monopolista para obter lucros de monopólio, é claro, e as vantagens da tecnologia, nomeadamente em acelerar e baratear a produção, serão usadas por outras corporações para demitir parte dos trabalhadores e reduzir os salários de outros.

Essa tecnologia também já está sendo usada para acelerar o trabalho e, assim, aumentar a taxa de exploração, por outro ângulo. Câmeras e outros sensores podem monitorar de forma barata e eficaz o processo de trabalho de milhares de trabalhadores, disciplinando-os para que produzam mais pelo mesmo salário.

A Amazon é notória por isso, e com razão: “em 2018, a empresa teve duas patentes aprovadas para um rastreador de pulso que emite pulsos sonoros ultrassônicos e transmissões de rádio para monitorar as mãos de um operador em uma atividade de inventário, fornecendo um ‘feedback háptico’ para ‘orientar’ o trabalhador na direção do objeto correto.”4 À medida que a vigilância automatizada avança e se torna mais barata, ela será implementada em toda a economia, aumentando o estresse e a alienação dos trabalhadores em todos os lugares.

O capitalismo põe as mãos em uma tecnologia revolucionária cujo potencial real é harmonizar e racionalizar a produção, bem como aumentar os poderes criativos da humanidade e, em vez disso, a utiliza para disciplinar ainda mais o trabalhador, para descartar mais trabalhadores, para tornar a existência do artista ainda mais precária e concentrar mais e mais poder nas mãos de corporações gigantes. O efeito, portanto, não será trazer estabilidade e abundância à economia, mas intensificar os antagonismos e a desigualdade na sociedade.

Ao monopolizar ainda mais a economia, a IA sob o capitalismo irá agravar a anarquia do mercado. / Imagem: War on Want

Ao monopolizar ainda mais a economia, reduzir ainda mais os salários e concentrar cada vez mais riqueza em poucas mãos, a IA sob o capitalismo agravará a anarquia do mercado.

Isso já foi visto na presente crise econômica. Durante a pandemia, os padrões de consumo mudaram, levando a um grande aumento nas compras em plataformas como a Amazon. A Amazon utiliza intensamente a IA em seu modelo de previsão, o Supply Chain Optimization Technologies (SCOT). O SCOT simplesmente analisava os padrões de consumo, sem entender o que estava causando esses novos padrões. Consequentemente, recomendou que a Amazon comprasse bilhões de dólares a mais em capacidade de armazenamento para lidar com a demanda crescente.

Mas, à medida que os bloqueios devido à pandemia inevitavelmente terminaram, a demanda pelos produtos da Amazon diminuiu. Como resultado, a Amazon agora possui muito espaço de armazenamento e muitos itens não vendidos, o que, por sua vez, levou a demissões e perdas. Em vez de eliminar o desperdício e a superprodução, o uso da IA para aumentar os lucros dos monopólios realmente piorou a situação.

Não é de surpreender que, apesar do incrível potencial que a IA oferece à humanidade, muitos de nós vivam com medo dela. O que revela esse medo generalizado da IA? Muito pouco sobre a tecnologia em si, mas muito sobre as estranhas contradições da produção capitalista. Sob o capitalismo, precisamente as maiores realizações do pensamento humano, as tecnologias mais maravilhosas com o potencial de eliminar os males da pobreza e da ignorância, são exatamente as coisas que ameaçam gerar mais pobreza.

Temos medo de sermos escravizados por uma inteligência artificial impessoal, fria e calculista, mas já estamos subordinados às forças impessoais, cegas e inconscientes do mercado, que também são frias e calculistas, mas não muito inteligentes ou racionais.

Uma tecnologia feita para o planejamento

O uso da IA para aumentar a exploração capitalista é um desperdício trágico e criminoso. Dificilmente se poderia imaginar uma tarefa mais adequada para a IA do que o planejamento de uma economia complexa para atender às necessidades humanas. Com a tecnologia moderna, como sensores, já é possível automatizar a logística, como a Amazon demonstrou.

Em seu imenso complexo de grandes armazéns, a Amazon usa IA e robôs para planejar eficientemente quais itens precisam ir para onde e em que quantidades. Não há motivo para que sensores não possam ser integrados à economia como um todo para fornecer dados em tempo real sobre o que está sendo consumido, em que proporções, onde, e quais equipamentos estão em perigo de quebrar e, portanto, precisam ser consertados a tempo. A gigante de software alemã SAP já desenvolveu um aplicativo alimentado por IA chamado HANA, que é usado por empresas como o Walmart para planejar todas as suas operações harmoniosamente usando dados em tempo real.

Alimentando a IA de aprendizado profundo com esses dados, ela seria mais do que capaz de elaborar, junto com comitês eleitos, um plano de longo prazo para a economia, que maximizaria a eficiência para finalmente atender às necessidades da humanidade, de modo que ninguém precise passar fome, ficar sem-teto ou temer por seu emprego. Dessa forma, um imenso desperdício poderia ser eliminado e a semana de trabalho rapidamente reduzida. Não apenas a IA seria enormemente útil na elaboração e adaptação de tal plano, mas também teria o benefício de ajudar as pessoas envolvidas no planejamento a superar quaisquer viéses ou limitações que possam existir em seu pensamento.

Claramente, essa IA precisaria ser supervisionada por pessoas – ela seria apenas uma ferramenta a serviço delas. Não poderia responder a perguntas como que tipo de arquitetura deveria ser desenvolvida, como nossas cidades deveriam ser, etc. Mas suas percepções sobre os padrões de uma economia e como economizar na produção seriam indispensáveis.

Este é o potencial da mais recente tecnologia de IA. Temos ao nosso alcance a tecnologia para trazer harmonia à produção, eliminar os excessos desperdiçadores, a ganância, a irracionalidade e a falta de visão do sistema capitalista. Poderíamos usá-la para dar a toda a humanidade não apenas as coisas de que precisam para viver bem, mas também o poder de criar obras de arte, ou redesenhar e melhorar sua própria casa, local de trabalho ou bairro. Isso tornará a construção de uma sociedade socialista, livre de todo tipo de escassez e distinções de classe, mais rápida e menos dolorosa.

Consciência mecânica no estilo do Construtivismo. / Imagem: Stable Diffusion v2

Essa potência está ao nosso alcance, mas escapa de nossas mãos porque, ao contrário do que muitos imaginam, a forma como ela é usada não é determinada automaticamente pela tecnologia em si, mas pelo modo de produção sob o qual vivemos.

Enquanto vivermos sob o capitalismo, é o capitalismo que determinará como a IA é desenvolvida e usada, não o potencial puro da tecnologia. Por isso, as previsões de que a IA e a automação acabarão com a exploração e a anarquia do capitalismo são um falso porvir. A IA, por mais avançada que seja, não pode realizar por nós a tarefa de libertar a humanidade do capitalismo. E, não importando quão irracional se torne, o capitalismo será sempre defendido sem piedade pela classe capitalista.

A única força que pode combater isso é a única que tem interesse em fazê-lo, ou seja, a classe trabalhadora. É o fato de a classe trabalhadora estar interessada em alcançar o socialismo que torna possível para ela compreender tanto a necessidade quanto os meios para fazê-lo.

Somente quando finalmente tivermos derrubado o capitalismo para que possamos submeter a economia a um planejamento consciente e racional, a IA e outros avanços tecnológicos poderão florescer em seu potencial máximo como a ferramenta mais maravilhosa e geral de desenvolvimento humano já concebida. Como Leon Trotsky expressou poeticamente:

“A ciência técnica libertou o homem da tirania dos antigos elementos — terra, água, fogo e ar — apenas para submetê-lo à sua própria tirania. O homem deixou de ser escravo da natureza para se tornar escravo da máquina e, ainda pior, escravo da oferta e da demanda. A presente crise mundial testemunha de maneira especialmente trágica como o homem, que mergulha até o fundo do oceano, que se eleva à estratosfera, que conversa por ondas invisíveis com seus antípodas, como esse governante orgulhoso e audacioso da natureza continua a ser escravo das forças cegas de sua própria economia. A tarefa histórica de nossa época consiste em substituir o jogo descontrolado do mercado por um planejamento racional, disciplinando as forças de produção, obrigando-as a trabalhar juntas em harmonia e a servir obedientemente às necessidades da humanidade.”5

(*) Daniel Morley é membro do conselho editorial da organização marxista Socialist Appeal

(**) Traduzido com o ChatGPT e revisado por Thaís Ribeira de Paula, militante do PT e da AE -São José dos Campos/SP

(***) Publicação original: https://www.marxist.com/artificial-intelligence-doomsday-for-humanity-or-for-capitalism.htm

Referências

[1] G Marcus, E Davis, Rebooting AI: Building Artificial Intelligence We Can Trust, Pantheon Books, 2019, pg 56

[2] A Katwala, “DeepMind Has Trained an AI to Control Nuclear Fusion,” Wired, February 16, 2022

[3] Y Assael, T Sommerschield, B Shillingford, N de Freitas, “Predicting the past with Ithaca,” Deepmind, March 9, 2022

[4] N Dyer-Witheford, A Mikkola Kjosen, J Steinhoff, Inhuman Power: Artificial Intelligence and the Future of Capitalism, Pluto Press, 2019, pg 93

[5] L Trotsky, “In Defense of October” in The Classics of Marxism, Vol. 2, Wellred Books, 2015, pg 226-227

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *